O que une as histórias de Francisco das Chagas da Silva Lira, trabalhador rural de 38 anos que morava no Pará, região norte do Brasil, e Abdullah Muhammed, 47 anos, um imigrante do Sudão que vivia na Itália? Ambos foram vítimas da escravidão moderna. Francisco foi resgatado da fazenda Brasil Verde, no Pará, por fiscais do Ministério do Trabalho no ano de 2000. Abdullah não teve a mesma sorte, seu frágil coração não aguentou e, em 2015, após mais um dia de trabalho sob o sol inclemente da Puglia, parou de bater. Ele recolhia tomates e passava dez horas diárias trabalhando por míseros dois euros a hora, sem direito a um chapéu ou uma simples garrafa d´água.
[g1_quote author_name=”Antonio Carlos de Mello” author_description=”OIT” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Uma das maiores dificuldades para os países é assumir que em seu território existe exploração, pois hoje temos uma comunidade internacional que prioriza um consumo consciente e usa mecanismos como o acesso a informação para fazer pressão
[/g1_quote]Duas vidas traçadas, em dois países distantes, marcadas pela exploração da mão de obra e pela ganância humana. Francisco foi resgatado porque no Brasil existe uma política de combate ao trabalho escravo que já foi tida como referência no mundo, mas que por recentes escolhas políticas, corre o risco de ser sucateada. Isto porque o presidente Michel Temer, para se livrar das investigações de corrupção, atendeu aos pedidos da base ruralista e aprovou a toque de caixa a portaria que muda a definição de trabalho escravo, dificultando seu combate. Uma das principais mudanças diz que é preciso ocorrer a privação da liberdade para que haja a identificação de trabalho forçado, o que no Código Penal não é obrigatório.
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Veja o que já enviamosA portaria foi suspensa pela ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber. “Foi suspensa, mas não cancelada. Existe uma preocupação se a vigência da restrição da liberdade for mantida pela possível fragilização do processo de fiscalização e pela piora da vulnerabilidade do trabalhador”, diz Antonio Carlos de Mello, coordenador interino do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Assim como Francisco, de 2003 a 2017, segundo dados do Ministério Público do Trabalho, 43.428 brasileiros foram resgatados do trabalho em condição análoga à escravidão.
Seguir o dinheiro? Não, o tomate. Abdullah morreu porque na Itália faltavam políticas públicas que evidenciassem o problema. Somente após a morte do imigrante, o governo italiano acordou do estado de transe profundo em que vivia e começou a dar os primeiros passos para combater o trabalho análogo à escravidão e aprovou em 2016 um protocolo nacional assinado por três ministérios (Interior, Trabalho e Agricultura) e uma lei que combate o aliciamento e a exploração do trabalho agrícola.
Pela morte de Abdullah, o Ministério Público de Lecce, responsável pelo caso, denunciou pelos crimes de aliciamento e homicídio culposo Giuseppe Mariano, proprietário da fazenda onde trabalhava, e Mohamed Elsalih, o aliciador (também conhecido como gato). Porém, a procuradora Paola Guglielmi aprofundou a investigação e em vez de seguir o dinheiro para achar provas de crimes de corrupção, reconstruiu o caminho do tomate para entender quem estava por trás, mesmo que indiretamente, da morte de Abdullah e da escravidão que afetava centenas de trabalhadores braçais.
Multinacionais. Antes de chegar às mesas para ser devorado num suculento prato de espaguete, o tomate percorre uma intrincada cadeia de abastecimento. Ele é recolhido, processado e vendido por multinacionais até chegar na rede de distribuição que preenche as prateleiras dos supermercados. Seguindo os rastros do tomate, a seção anticrime dos Carabinieri (polícia) de Lecce chegou a nomes de famosas indústrias italianas como Mutti, Conserve Italia (responsável pela marca Cirio) e La Rosina. A procuradora, porém, esclarece que “essas empresas apenas fazem parte da investigação que tem como intuito entender o caminho do produto”. As empresas negaram qualquer responsabilidade.
Giuseppe Mariano já era conhecido no tribunal da região de Puglia. Ele foi absolvido em um processo que condenou, em julho deste ano, treze pessoas (quatro empresários e nove aliciadores) por escravizar imigrantes que entre 2008 e 2011 trabalharam em fazendas na região do Salento recolhendo tomate e melancia. Uma sentença histórica, disseram ativistas de direitos humanos, visto que pela primeira vez na história da Itália uma sentença reconhecia como crime o trabalho análogo à escravidão.
Apesar disso, “pouca coisa mudou, e a luta contra o aliciamento e a exploração do trabalho na agricultura tem demorado para decolar”, diz, em nota, Giovanni Mininni, secretário nacional da Federação de Trabalhadores Agroindustriais ligados a Confederação Geral Italiana do Trabalho. “Nos garantiram que tudo aconteceria em breve, mas parece que o governo está se perdendo em avaliações que não incluem uma lógica política e corremos o risco de perder o momento”. Já Umberto Franciosi, secretário geral da FLAI CGIL da região de Emília Romagna aponta o dedo para um outro problema, o da terceirização que fez nascer cooperativas fantasmas que são encarregadas da contratação de mão-de-obra que será explorada, como o recente caso descoberto na região de Modena, com os pequenos matadouros e produtores de salame, que não pagam impostos, sonegam o fisco e exploram os trabalhadores, na grande maioria imigrantes.
Para Antonio Carlos, da OIT, o primeiro passo no combate a escravidão moderna é reconhecer que o problema existe no próprio território. O Brasil declarou oficialmente a existência de trabalho análogo ao escravo no país em 1995. “Uma das maiores dificuldades para os países é assumir que em seu território existe exploração, pois hoje temos uma comunidade internacional que prioriza um consumo consciente e usa mecanismos como o acesso a informação para fazer pressão.” Para o brasileiro “a sociedade civil precisa dizer ao setor produtivo: olha, estamos de olho em vocês, não queremos tomates manchados de sangue e assim pressionar a cadeia produtiva a comprar tomates que não sejam provenientes de fazendas onde reina o trabalho escravo.” Antonio lembra que no Brasil assim como na Itália, “os imigrantes são os mais vulneráveis nesse processo de exploração e ciclo de desgraça, pois faltam políticas públicas que os alcancem”.
Voltando ao resgate de Francisco, o caso foi parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão jurisdicional da OEA (Organização dos Estados Americanos), e o Brasil foi condenado pela primeira vez numa corte internacional, por omissão e negligência aos trabalhadores. Se a portaria que muda as regras de definição de trabalho escravo não for abortada de vez, o problema voltará à invisibilidade e o próximo Francisco pode ter um fim trágico como o de Abdullah.
Excelente matéria, pois tem o papel de esclarecer e denunciar o trabalho escravo e sua configuração no mundo moderno. Agradeço e repasso a minha rede.
Claudia Lessa