(Púglia, Itália) – Em meio à imensidão dos campos agrícolas de Puglia, no sul da Itália, vivem centenas de escravos do novo milênio. Quase todos imigrantes africanos ou do leste europeu. Deixaram suas casas por motivos econômicos ou para fugir da guerra. Esperavam encontrar trabalho digno e um pouco mais de respeito à vida. Hoje, sobrevivem em barracas de papelão e plástico, erguidas em guetos escondidos, de difícil acesso. São explorados por capatazes ligados à máfia que dominam a organização do trabalho e a rotina. Ali, tudo tem um preço. Lugares invisíveis que abrigam pessoas invisíveis. Um mundo onde os direitos não existem.
[g1_quote author_name=”Ali C.” author_description=”Imigrante de Serra Leoa” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Não temos contrato, não temos garantias trabalhistas, somos explorados pelos capatazes que cobram por tudo. Veja, trabalhei uma semana e, após ter pago tudo o que devia, me sobraram 15 euros. Ficamos doentes e precisamos ir ao hospital. Mas onde está o hospital? Fora daqui, longe, na cidade. Ninguém chega lá a pé, precisamos que nos levem e pagamos por isso. Não existe liberdade dentro do gueto.
[/g1_quote]Segundo o relatório “Agricoltura e lavoro migrante in Puglia” elaborado pela Federazione Lavoratori Agroindustria (FLAI) e pela Confederazione Generale Italiana del Lavoro (CGIL), a colheita de tomate em Puglia é um negócio que rende algo entre 21 a 30 milhões de euros por ano. Fruto do esforço de quase 50 mil trabalhadores que vivem em condições análogas à escravidão em 55 guetos espalhados pela região. O mais famoso deles é o de Rignano Garganico, que fica aos pés do santuário de Padre Pio, no meio do nada. Todos que vivem em Rignano têm conhecimento de sua existência, mas são poucos os que sabem exatamente onde fica.
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Segundo o relatório da CGIL e da FLAI, no gueto passam cerca de 15 mil pessoas por ano, grande parte vindo da África Subsaariana. No fim de agosto, quando a reportagem do #Colabora esteve no local, cerca de três mil indivíduos moravam lá. Cada “escravo” diariamente enche dezenas de caixas de tomate com cerca de 380 kg e recebe entre 400 e 500 euros por dois meses de trabalho.
O lugar esconde o descaso da política e da sociedade. Uma estrada de terra batida adentra por campos imensos de plantação de tomate, longe de tudo. No meio do caminho, casas velhas e abandonadas que foram ocupadas por imigrantes. No final de uma estrada sem saída, outra casa e um incrível acúmulo de lixo. Estamos a dois passos da entrada. O cenário é desolador. Carros desmanchados dividem o espaço com barracas de papelão e plástico. Sob um guarda-sol perto da entrada, um homem de camisa verde aberta, usando correntes douradas, sentado ao lado de duas mulheres, indica-nos que estamos no lugar certo. “Bem-vindos ao inferno”, faltou dizer.
Rignano, onde tudo tem um preço
Ao percorrer os becos nota-se um vaivém de gente, a todo momento. “Hoje não conseguiram trabalho, então não há o que fazer além de ficar por aqui”, diz Mohamed, 25 anos de idade. Natural de Gâmbia e com visto regular de trabalho, viveu na Áustria e na Alemanha antes de vir para a Itália. Diz que trabalhar nas fazendas italianas é mais fácil do que nas alemãs e austríacas, pois lá ele sentiu o peso do racismo. “Na Itália não encontrei muitas situações de racismo, aqui até o capataz é negro.”
Mohamed estava no gueto há cinco dias. Apesar do pouco tempo, já tinha conseguido um teto para dormir. Um trailer abandonado que dividia com outros dois compatriotas. Sua casa, como ele chamava, ficava no fundo, em um dos últimos becos. Na verdade, ele não sabia, mas era um privilegiado; seu cafofo ficava a dez passos das benditas torneiras de água potável, bem em frente à Rádio Gueto. Sim, ali existe uma rádio clandestina, ainda que limitada porque deve seguir as regras dos capatazes. Mesmo assim, um suspiro de liberdade para quem esqueceu o que é vida.
[g1_quote author_name=”Soumbill Guene” author_description=”Imigrante de Burquina Faso” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Vim em busca de trabalho. Estive dois dias inteiros no campo colhendo tomate, e o patrão ainda não me deu o dinheiro. Se não conseguir trabalhar mais, não sei o que será de mim, não tenho dinheiro para sair daqui.
[/g1_quote]Simpático, Mohamed convidou a reportagem para almoçar e anunciou o menu do dia: arroz com tomate. Nada de estranho, afinal, em Rignano se vive de tomate. Próximo a nós parou um garoto que dizia ter 20 anos de idade, mas aparentava menos. Curioso, quis saber o que estava acontecendo naquela roda. Ele não era de muita fala, queria mesmo é escutar a conversa. Também era de Gâmbia e tinha acabado de chegar ao gueto. “Estou aqui há uma semana e trabalhei somente dois dias, com o que ganhei não dá para comprar nada nem para mandar dinheiro para casa”.
Após o almoço, o silêncio pairava no ar, quebrado somente pela música africana que saía dos alto-falantes da rádio. E foi nesse silêncio que Soumbill Guene, de 25 anos, apareceu. De Burquina Faso, vivia no gueto há alguns meses e reclamava da falta de trabalho. “Está muito difícil trabalhar, agora eles (os fazendeiros) têm máquinas que colhem o tomate, ficou tudo mais complicado para a gente”, dizia enquanto procurava um metro de sombra para se esconder do sol escaldante.
O impacto da modernização na colheita com a introdução de máquinas, dificultou ainda mais o acesso ao trabalho. Hoje muitas fazendas adotam este método porque, por incrível que pareça, é ainda mais econômico do que contratar mão de obra a preços baixos. Nos dias ensolarados eles sabem que poucos terão a sorte de ir para o campo. Por isso rezam para que chova, porque com o terreno enlameado as máquinas não podem trabalhar.
Guene não é um refugiado. Assim como Mohamed, ele entra na categoria dos imigrantes econômicos, formada por aqueles que deixaram seus países para tentar a sorte em terras estrangeiras. “Vim em busca de trabalho. Estive dois dias inteiros no campo colhendo tomate e o patrão ainda não me deu o dinheiro”. “Patrão” é como eles chamam os capatazes. “Se não conseguir trabalhar mais, não sei o que será de mim, não tenho dinheiro para sair daqui”, diz referindo-se ao gueto.
Por volta das 15h, encontramos Ali C., de 32 anos, de Serra Leoa. Alto, de braços fortes, está na Itália há três anos. Sem papas na língua, entrou imediatamente na conversa. “Você acha digno viver nessa condição? Nem na África vivia assim. As casas não são casas nem barracas, são estruturas de papelão e plástico, não posso chamar aquilo de lar. Vê a terra? Quando chove tudo vira lama e a gente precisa dormir em cima dela, em colchões jogados no chão — os que têm sorte conseguem um trailer, mas custa mais caro o aluguel. Tudo úmido, molhado, insuportável”.
Ali não tem família na Itália nem em seu país. Preferiu não falar de sua história pessoal, e sim apontar o dedo para os problemas, não só do lugar, mas da condição de exploração em que se encontram praticamente todos que vivem no gueto e trabalham nos campos. “Não temos contrato, não temos garantias trabalhistas, somos explorados pelos capatazes que cobram por tudo, pela cama em que dormimos, pelo transporte que nos leva ao trabalho, pela comida que comemos. Veja, trabalhei uma semana e, após ter pago tudo o que devia, me sobraram 15 euros. Como faço para viver com isso? Se não trabalho não como, não tenho um teto porque não tenho como pagar o aluguel da cama. Ficamos doentes e precisamos ir para o hospital. Mas onde está o hospital? Fora daqui, longe, na cidade. Ninguém chega lá a pé, precisamos que nos levem e pagamos por isso. Não existe liberdade dentro do gueto”.
O leonês acusa as associações de ajuda humanitária de não fazerem o suficiente para mudar aquela realidade. “Vê essas associações de ajuda humanitária? Os caras vêm aqui com um papo de ajuda, mas quando cai a noite, todos voltam para suas casas e suas camas quentinhas. Não tem branco aqui no gueto. Aqui quem fica são os negros. Querem ajudar? Querem saber realmente como é viver aqui? Fiquem, durmam, passem a noite e vejam como vivemos. É muito fácil dizer que você entende nossa situação, mas, na verdade, não entende merda nenhuma. Você é só mais um branco querendo mostrar para a sociedade que faz teu dever cristão e ajuda os pobres pretos que estão fodidos e vivem no meio na merda”.