Armas matam mais crianças do que câncer nos EUA

Em um protesto em frente ao Capitólio, em Washington, sete mil pares de calçados lembram as crianças mortas por arma de fogo no país. Foto Saul Loeb/AFP

Estudos científicos e estatísticas das mais diversas confirmam os riscos de se ter um revólver em casa

Por Mônica Medeiros | ODS 3ODS 8 • Publicada em 18 de janeiro de 2019 - 08:46 • Atualizada em 21 de janeiro de 2019 - 12:36

Em um protesto em frente ao Capitólio, em Washington, sete mil pares de calçados lembram as crianças mortas por arma de fogo no país. Foto Saul Loeb/AFP
Em um protesto em frente ao Capitólio, em Washington, sete mil pares de calçados lembram as crianças mortas por arma de fogo no país. Foto Saul Loeb/AFP
Em um protesto em frente ao Capitólio, em Washington, sete mil pares de calçados lembram as crianças mortas por arma de fogo no país. Foto Saul Loeb/AFP

Em 2016, nos Estados Unidos, incidentes com armas mataram mais crianças (3150) do que os casos de câncer (1850), segundo artigo do The New England Journal of Medicine, com base em dados do Centro para Controle de Doenças. Elas são a segunda causa de morte infantil, perdendo apenas para os acidentes de carro, outra praga americana. Cerca de 50 mulheres morrem, por mês, vítimas de violência doméstica em casas onde existe uma arma. Em 80% dos casos de suicídio com arma de fogo, ela pertencia a alguém da família. Em um estudo que entrevistou 14 mil donos de armas, 88% declararam que compraram para se defender de criminosos. No entanto, em menos de 1% de todos os crimes que aconteceram na presença da vítima, ela usou a arma para se defender, observou David Hemenway, diretor do Centro de Pesquisa para Controle de Ferimentos da Universidade de Harvard, depois que sua equipe analisou dados referentes a 5 anos da Pesquisa Nacional sobre Vítimas de Crimes, realizada pelo governo americano.

Nos casos de ataque às escolas, em 2018, o número de intervenções bem-sucedidas de pessoas desarmadas para controlar o atirador (22 casos) foi maior do que o de intervenções de pessoas armadas, que não policiais (7 casos)

A posse de armas é um direito constitucional nos EUA, estabelecido já na primeira constituição do país, através da Lei dos Direitos do Cidadão, em 1791. É uma lei que mesmo aqueles a favor do controle de armas não querem revogar. Isso porque acredita-se ser fundamental para a liberdade dos estados, garantindo o direito de se defender contra uma possível ditadura do governo federal. Tanto o porte como a posse de armas são regulamentados pelos estados. Alguns exigem que o comprador tenha atestado de bons antecedentes e a venda só é permitida em lojas especializadas. Em outros estados, qualquer um pode entrar no Walmart e comprar um rifle, desde que tenha 18 anos. Apesar das diferenças nas regulamentações do acesso às armas, as taxas de crimes violentos nos estados com maior número de armas por habitante não são menores do que em estados onde é mais difícil ter uma arma. Isso indica que o cidadão armado não ajuda na segurança pública, mas torna mais provável que um americano seja atingido por uma bala do que seja atropelado.

A ideia de combater a violência armando o chamado cidadão de bem pode até parecer lógica, no entanto não é comprovada pelos dados oficiais. Diversos estudos conceituados, realizados nos últimos 30 anos, nos EUA, demonstram que o aumento de assassinatos, estupros e outros crimes é diretamente proporcional ao número de cidadãos armados. Um desses estudos, realizado mais recentemente, em 2017, é do economista John Donohue, da Universidade de Stanford, que concluiu que quando se facilita o acesso a armas, as taxas de crimes violentos aumentam e pioram ano a ano. Dez anos depois das medidas que facilitaram o acesso, observou-se que essas taxas estavam entre 13% e 15% mais altas do que antes dessas medidas entrarem em vigor.  Assaltos à mão armada são 6,8 vezes mais comuns nos estados mais liberais com a posse e o porte de armas, segundo pesquisadores do Hospital de Crianças de Boston e da Universidade de Harvard que analisaram em 2015 dados do FBI e do Centro de Controle de Doenças. Nos estados onde matar em legítima defesa não é crime, como a Flórida, os casos de homicídios aumentaram e se mantiveram em aproximadamente 8%, depois que as leis foram aprovadas. Um caso famoso foi o do adolescente Trayvon Martin, negro, que levou um tiro de um morador – George Zimmerman -, num condomínio em Sanford, FL, que o achou suspeito e atirou, alegando legítima defesa. Zimmerman foi absolvido da acusação de homicídio.

Flores e ursos de pelúcia em homenagem às 20 crianças de seis e sete anos mortas em um tiroteio numa escola pública em Newtown, Connecticut. Foto Spencer Platt/Getty Images/AFP
Flores e ursos de pelúcia em homenagem às 20 crianças de seis e sete anos mortas em um tiroteio numa escola pública em Newtown, Connecticut. Foto Spencer Platt/Getty Images/AFP

Como todo “remédio”, no combate à violência a arma tem efeitos colaterais importantes e todos devem considerá-los na hora de decidir comprar ou não uma pistola. As famílias que possuem armas têm 7 vezes mais chance de sofrer ou cometer um homicídio, ou alguém da família morrer num eventual assalto. Usar uma arma não é fácil, é preciso muito treinamento e prática. Em caso de assalto, a vítima, sob pressão, tem que pegar a arma guardada, colocar munição, e acertar o assaltante, enquanto o criminoso tem a vantagem da surpresa, experiência usando armas e a frieza para atirar com sucesso no seu alvo. As chances de alguém da família suicidar-se com uma arma que encontrou em casa é onze vezes maior do que a de surgir uma situação qualquer em que a arma seja necessária para se defender.

A política de armar o cidadão para que possa se defender, ajudando no combate à violência, pode ser um tiro que sairá pela culatra, como demonstram os inúmeros dados dos EUA. Quase 100% (99,85% precisamente) dos americanos conhecerão alguém vítima de violência armada, durante sua vida. Nos lugares em que é mais fácil comprar armas o número de casos de roubo de arma é maior. Ou seja, o cidadão de bem acaba armando o bandido aumentando a violência e dificultando a ação da polícia. Outra consideração importante é a possibilidade de a pessoa usar sua arma e matar alguém em situações de intensa emoção que o leve a perder a cabeça, ou em um erro de avaliação da situação ou mesmo porque bebeu mais do que devia. Depois de atirar, não tem como voltar atrás.

A proposta de Donald Trump de dar porte de arma a professores para se defenderem de indivíduos atirando nas escolas não foi bem recebida nem pelos professores nem pelos pais. Nos casos de ataque às escolas, em 2018, o número de intervenções bem-sucedidas de pessoas desarmadas para controlar o atirador (22 casos) foi maior do que o de intervenções de pessoas armadas, que não policiais (7 casos).

A sociedade americana vive um momento de decisão entre sacrificar o direito de possuir armas ou sacrificar sua segurança. Isso em meio a muita desinformação para tentar influenciar essa decisão. O lobby das indústrias das armas é intenso e tem muitos recursos. A promessa da National Rifle Association – ponderosa associação de donos de armas – de destruir a carreira dos políticos que votarem contra o acesso irrestrito de armas não falha e impede que o Congresso e os legisladores estaduais proponham projetos de lei para garantir o uso indevido de armas. Como, por exemplo, não permitir que pessoas com histórico de doenças mentais possam comprar um revólver, mesmo que para a própria defesa. Há indicadores bastante convincentes e suficientes de que a sensação de segurança que a posse de uma arma dá ao cidadão não corresponde à segurança real que uma arma proporciona. Países como Austrália, Inglaterra e Japão já demonstraram isso.

Mônica Medeiros

Mônica é carioca mas expatriada nos EUA, onde fez mestrado em Jornalismo e foi professora de teoria da comunicação. Cobriu política, cidade e meio ambiente para O Globo e Veja. É jornalista freelance com interesse especial por cidadania, feminismo, meio ambiente, e apaixonada pela ideia de lixo zero. É também tradutora e voluntária de Tradutores sem Fronteira.

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