ExxonMobil consolida ‘petroestado’ em meio a denúncias ambientais na Guiana

ExxonMobil consolida ‘petroestado’ em meio a denúncias ambientais na Guiana

Por InfoAmazonia ODS 15ODS 7

Petroleira norte-americana transforma país em um dos maiores produtores de petróleo do mundo. No entanto, a expansão veio à custa do aumento da desigualdade, da flexibilização de regras ambientais, da queima irregular de gás e da crescente influência estrangeira sobre o país.

Publicada em 8 de abril de 2025 - 09:01 • Atualizada em 11 de abril de 2025 - 10:05

(Fábio Bispo*) – Em Georgetown, capital da Guiana, o rangido dos caminhões pesados carregando materiais para obras faraônicas ecoa incessantemente por toda a cidade. Uma nova ponte sobre o rio Demerara, uma ilha artificial, prédios modernos e hotéis luxuosos se erguem como símbolos da riqueza prometida pela indústria petrolífera. Estrangeiros de empresas recém-estabelecidas ali já a apelidam de “nova Dubai”.

A ExxonMobil, petroleira norte-americana, domina a produção de petróleo na Guiana. Em 2015, ela anunciou uma das maiores reservas mundiais da última década, e desde então sua subsidiária, Esso Exploration and Production Guyana, lidera o consórcio do bloco petrolífero Stabroek. Essa uma área de 26.800 km² na costa guianense, que inclui também a norte-americana Hess Corporation e a chinesa CNOOC. Mas enquanto expande sua presença no país, a ExxonMobil enfrenta acusações de ambientalistas e ações na Justiça. 

Leu essas? As reportagens do projeto jornalístico transfronteiriço ‘Até a Última Gota’ – sobre a exploração de petróleo na Amazônia

Segundo as denúncias, a empresa desrespeitou licenças ambientais para aumentar a produção e os lucros nos três campos ativos dentro do bloco: Liza (Fase 1 e 2) e Payara, que, juntos, produzem 650 mil barris por dia. Com outros três campos já aprovados, a estimativa é dobrar a extração para 1,3 milhão de barris diários, quando eles começarem a operar em 2027. 

Cuspidor de fogo faz performance em evento da ExxonMobil em shopping em Georgetown: petroleira norte-americana transformou a Guiana em um dos maiores produtores de petróleo do mundo em meio a denúncias ambientais (Foto: Victor Moriyama / InfoAmazonia)
Cuspidor de fogo faz performance em evento da ExxonMobil em shopping em Georgetown: petroleira norte-americana transformou a Guiana em um dos maiores produtores de petróleo do mundo em meio a denúncias ambientais (Foto: Victor Moriyama / InfoAmazonia)

Em novembro de 2024, a equipe da InfoAmazonia esteve em Georgetown e arredores para entrevistar os principais denunciantes das petroleiras e examinar processos judiciais e relatórios que expõem as violações ambientais da ExxonMobil no país. Essa apuração integra o projeto transfronteiriço Até a Última Gota, um esforço jornalístico que há um ano explora os impactos da extração de petróleo na Amazônia.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

A investigação mostra que o governo da Guiana tem flexibilizado normas ambientais, firmado contratos que favorecem as petroleiras em prejuízo da população e apoiado essas companhias em disputas judiciais. “Nossas instituições foram capturadas pelos interesses estrangeiros. A Exxon não é a única, mas com certeza é a mais flagrante”, disse a ambientalista Sherlina Nageer, fundadora do Greenheart Movement, iniciativa que defende alternativas ao setor, e uma das principais vozes contrárias à exploração do petróleo na Guiana. 

Leu essa? Petroleiras criam ‘cortina de fumaça’ para viabilizar exploração na Amazônia brasileira

Nageer considera “tolice” confiar em uma empresa cujo lucro anual supera o Produto Interno Bruto (PIB) da Guiana. Em 2022, a ExxonMobil registrou uma receita global de US$ 413 bilhões, quase 28 vezes superior ao PIB do país no mesmo ano, estimado em US$ 14,7 bilhões, segundo dados do Banco Mundial.

O país se consolida como um “petroestado”, onde a economia, as decisões políticas e as instituições são cada vez mais atreladas à indústria petrolífera. E fica cada vez mais difícil saber onde termina o Estado e começa a ExxonMobil.

Área de apoio para a produção de petróleo na Guiana: país se consolida como um “petroestado”, onde a economia, as decisões políticas e as instituições são cada vez mais atreladas à indústria petrolífera (Foto: Victor Moriyama / InfoAmazonia)

Gas Flaring irregular na Guiana

Entre as práticas da ExxonMobil questionadas por ambientalistas e pela Justiça está o gas flaring – a queima de gás natural derivado da extração de petróleo. Esse processo despeja na atmosfera o gás excedente das operações quando não há interesse econômico ou infraestrutura para processá-lo. Mas ele libera grandes quantidades de dióxido de carbono (CO₂) e metano, causadores do aquecimento global.

A licença ambiental para o campo Liza Fase 1 – primeira reserva descoberta pela Esso – foi aprovada em 2017 com a proibição do flaring, exceto em casos de manutenção ou emergência. No entanto, entre 2019, quando o campo iniciou sua produção, e 2023, a petroleira registrou 1.298 episódios de queima de gás. A informação é resultado de uma análise do projeto Até a Última Gota com base em dados da SkyTruth, plataforma que utiliza monitoramento via satélite para rastrear atividades prejudiciais ao meio ambiente.

Nossas instituições foram capturadas pelos interesses estrangeiros. A Exxon não é a única, mas com certeza é a mais flagrante

Sherlina Nageer
Fundadora do Greenheart Movement

A partir desse levantamento, a reportagem contou com a consultoria científica do Instituto Internacional Arayara, organização dedicada à defesa dos direitos ambientais, para calcular o impacto dessas ocorrências. A análise revelou que, entre 2019 e 2023, a ExxonMobil queimou 687 milhões de metros cúbicos de gás na costa da Guiana, liberando 1,32 milhão de toneladas de CO₂ na atmosfera. Esse volume equivale às emissões de quase 287 mil carros em circulação por um ano e posiciona a Guiana como o segundo maior emissor de gases de efeito estufa por flaring na Amazônia, ficando atrás apenas do Equador. Saiba mais sobre a metodologia e análise feita na página de transparência desta reportagem

Sherlina Nageer foi uma das três autoras de uma ação judicial contra o flaring nas plataformas da subsidiária Esso. Desde a infância, lembra-se da forte conexão com a natureza, quando se entretia observando formigas no quintal. Essa mesma curiosidade a ajudou a identificar a queima de gás das torres em alto mar. 

O trio de ativistas diz ter conseguido evidências da ilegalidade por meio de imagens de satélite. Em abril de 2021, elas notificaram a Agência de Proteção Ambiental da Guiana (EPA, na sigla em inglês), órgão responsável pelo licenciamento e fiscalização do setor petrolífero no país. 

Mas apenas um mês após a denúncia, a EPA revisou a licença ambiental da petroleira, facilitando as condições para a prática de flaring. A agência permitiu a ampliação do prazo para a queima de gás, que passou de três para até 60 dias consecutivos, com a cobrança de US$ 45 por cada tonelada de CO2 emitida no processo.

Quando o episódio veio à tona, em agosto de 2021, milhões de metros cúbicos de gás já haviam sido queimados. Na Justiça, a Esso justificou o flaring como resultado de uma falha mecânica no sistema de compressão de gás.

O processo transcorreu sem transparência, segundo as ativistas. Por meses, a advogada Melinda Janki — que representou as ambientalistas na ação contra a Esso e foi a principal redatora da legislação ambiental da Guiana em 1996 — tentou, sem sucesso, obter informações sobre o andamento do caso. Diante da opacidade do sistema judicial, ela e as ativistas emitiram um manifesto, cobrando uma decisão urgente em um processo que impacta diretamente o futuro ambiental e social da Guiana.

A presidente da Suprema Corte da Guiana, Roxanne George, acabou emitindo uma decisão favorável à petroleira. “Não foi provado que a modificação da licença tenha provocado ou esteja provocando efeitos adversos adicionais ao meio ambiente”, afirmou em 2023. “Não há nada na lei que impeça a emissão de uma licença modificada”. 

Vincent Adams é especialista em petróleo e gás, com mais de 30 anos de experiência no Departamento de Energia dos EUA, e comandou a EPA da Guiana entre 2018 e 2020. Para ele, a decisão “subverte os princípios ambientais, porque agora o governo está basicamente dizendo: ‘Polua o quanto quiser, desde que possa pagar por isso’”.

Quando assumiu a agência guianense, Adams conta que se deparou com uma instituição despreparada para lidar com a indústria petrolífera: “Não havia sequer um engenheiro treinado em petróleo”. Ele lembra que o órgão funcionava como mero “carimbador” das solicitações da ExxonMobil e de suas empresas parceiras.

Em 2020, quando a Esso buscou licenciar o campo de Payara, o terceiro no país, Adams afirma ter exigido garantias financeiras para a compensação de acidentes ambientais, o que não havia sido pedido nos dois projetos anteriores. Segundo o especialista, os estudos ambientais apresentados para o licenciamento dos três projetos — praticamente idênticos entre si — indicavam que um vazamento de óleo na região poderia se espalhar por toda a costa da Venezuela e alcançar vários países do Caribe até a altura da Jamaica.

Adams deixou a agência em agosto de 2020, com a troca de governo na Guiana, e relembra que, apenas um mês depois, as licenças foram concedidas. “Quando eu saí, eles tomaram conta”, afirmou o engenheiro, que desde então se tornou um dos principais críticos do atual modelo de exploração de petróleo no país.

Trabalhadores constroem piso de concreto em estabelecimento portuário em Georgetown, Guiana.: contratos com petroleiras questionados na Justiça (Foto: Victor Moriyama / InfoAmazonia)

Contrato desfavorável à Guiana

As controvérsias na exploração de petróleo na Guiana vão além da concessão de licenças e remontam às primeiras negociações. Após a ExxonMobil descobrir a primeira reserva no país em 2015, o governo precisou definir do zero os termos de um contrato de partilha para o bloco Stabroek, estabelecendo prazos para a exploração e os percentuais para a divisão de lucro e recuperação dos custos. 

O acordo entre a Esso e o governo guianense foi negociado a portas fechadas em 2016 e permaneceu em sigilo até 2017. Tornado público apenas após forte pressão externa, o contrato tem sido alvo de intensas críticas, tanto de especialistas quanto da classe política.

O contrato estabelece que até 75% da receita bruta mensal gerada pela extração do bloco seja destinada ao pagamento dos custos de desenvolvimento e operação das empresas. O restante é dividido igualmente entre o governo guianense e o consórcio, resultando em uma participação de 12,5% da receita para a Guiana. 

Além disso, o acordo prevê royalties de apenas 2% sobre o valor do petróleo vendido, um percentual inferior ao praticado em outros países. No Brasil, a alíquota pode chegar a 15%, enquanto nos Estados Unidos a taxa de royalties para exploração em terras públicas foi recentemente atualizada para mais de 16%

Agora a gente está descobrindo que nossas florestas podem estar sendo ‘vendidas’ para as empresas que mais contribuem para os problemas climáticos, que são as de petróleo. Só que nós, indígenas, não sabemos o que foi assinado ou qual foi o acordo, porque não houve consulta adequada

Mario Hastings
Líder indígena e ex-cacique da aldeia Kako

Um relatório do Ieefa, instituto de pesquisa financeira dos Estados Unidos, afirma que o contrato impõe cláusulas desfavoráveis para a Guiana, permitindo que as petrolíferas recuperem de forma excessiva suas despesas. O documento também aponta a existência de “dívidas ocultas” no acordo e alerta que os cofres públicos estão arcando com uma carga tributária desproporcional. Segundo o relatório, entre 2019 e 2021, as empresas petrolíferas receberam US$ 3,6 bilhões, enquanto a Guiana ficou com apenas US$ 607 milhões — uma proporção de 6 para 1 em favor das companhias.

“É um contrato muito ruim, que nos priva de muitos recursos”, afirmou o ex-presidente da Guiana, Donald Ramotar. Durante sua gestão entre 2011 e 2015, a ExxonMobil fez pesquisas na costa do país que levaram à primeira grande descoberta.

Embora seja correligionário do atual presidente Irfaan Ali, ele defende a revisão das cláusulas do contrato. Ali, por sua vez, admite que o acordo é desfavorável, mas argumenta que a “santidade do contrato” deve ser respeitada. 

O presidente promete negociar melhores termos para futuros contratos. No entanto, a promessa pode ser inócua. Todos os campos de produção planejados pela ExxonMobil estão dentro do bloco Stabroek, que é protegido pelo contrato de 2016. 

Já o prefeito de Georgetown, Alfred Mentore, opositor de Ali, destaca que a revisão depende de vontade política. “Com a ajuda de bons advogados, é possível chegar a algum tipo de consenso”, Mentore afirmou à reportagem. Embora não seja contrário à exploração de petróleo na Guiana, Mentore cobra uma abordagem mais balanceada: “Precisamos achar um equilíbrio entre nosso impacto no meio ambiente e como lidamos com o desenvolvimento”.

Outro forte opositor do contrato é Frederick Collins, presidente da organização anticorrupção Instituto de Transparência da Guiana. A entidade publicou uma série de análises nos jornais do país, expondo suas fragilidades. Collins classificou o acordo como “fortemente favorável à Exxon” e condenou a decisão do governo de mantê-lo em sigilo. Mas um ponto chamou mais sua atenção: o fato de a EPA não ter exigido garantias financeiras a possíveis vazamentos. 

Diante disso, Collins levou o caso à Justiça — e venceu. Em maio de 2023, a Suprema Corte da Guiana reforçou a urgência de garantias financeiras para a exploração petrolífera do país. A decisão concluiu que a EPA agiu com “complacência e submissão, colocando a nação e seu povo em grave perigo de um desastre calamitoso”. 

A maioria das comunidades na área costeira não está ciente do que pode acontecer se houver um vazamento

Nicholas Peters
Coordenador de políticas e advocacy da Associação dos Povos Ameríndios (APA)

A Esso e o governo da Guiana recorreram da decisão em um tribunal de apelação. Para embasar o recurso, a EPA estimou em US$ 2 bilhões o valor necessário para cobrir possíveis danos ambientais da atividade. Em junho do mesmo ano, o tribunal acatou o argumento e suspendeu a decisão anterior. Collins considerou o valor irrisório para remediar impactos do petróleo. Ele lembrou o vazamento no Golfo do México, em 2010, que levou a petroleira britânica BP e suas seguradoras a desembolsarem US$ 69 bilhões em reparações. 

Em 2024, a Esso foi novamente intimada a responder na Justiça por suspeita de inflacionar o valor de equipamentos para os poços de petróleo, reduzindo ainda mais o lucro destinado ao governo da Guiana. A Autoridade Fiscal do país apontou que a empresa declarou US$ 12 bilhões por máquinas que custam, na realidade, menos de US$ 5 milhões.

Em um comunicado publicado pelos jornais da Guiana, a petroleira afirmou que a importadora dos equipamentos cometeu um “erro administrativo”, mas que isso não resultou em perdas para o governo. Diante do tribunal, a Esso negou responsabilidade pela falha, mas o caso ainda aguarda julgamento.

A reportagem tentou contato diversas vezes com a ExxonMobil e sua subsidiária na Guiana, a Esso, mas não obteve resposta aos pedidos de entrevista. Também enviamos questionamentos às petroleiras Hess e CNOOC, que até a publicação desta matéria não haviam respondido. O governo da Guiana também foi procurado, mas não se manifestou sobre os pontos levantados pela reportagem.

Pescador na comunidade de Hope Beach: local parece um cemitério de embarcações, abandonadas frente à queda da oferta de peixes com exploração de petróleo no país (Foto: Victor Moriyama / Infoamazonia)

Comunidades estão apreensivas

Moradores de comunidades costeiras e indígenas no entorno de Georgetown estão divididos e apreensivos sobre o avanço da indústria petrolífera no país. Na praia de Hope Beach, a 25 km da capital, um verdadeiro cemitério de embarcações expõe o declínio da pesca. “Eram barcos usados na pesca, mas o pessoal colocou tudo à venda, e ninguém quis comprar”, disse o pescador Amran Samad.

Os pescadores locais relatam que a extração de petróleo trouxe uma série de desafios à atividade. Eles citam que o intenso tráfego de navios e a vibração causada pelas operações offshore (em alto mar) afastam os cardumes, enquanto a entrada massiva de peixe importado com a chegada de mais estrangeiros, oferecido a preços muito baixos, intensificou a concorrência desleal e reduziu a demanda pelo pescado local.

Na comunidade de Anna Regina, a 60 km de Georgetown, uma placa alertava: “Os manguezais nos protegem e resguardam nossas produções do mar. Vamos protegê-los”. 

Lá, Doodneith Mdehnai, que vende verduras e peixes em uma pequena banca, expressa sentimentos antagônicos. “Eu acho que o petróleo é bom porque traz dinheiro e empregos”, ele afirmou. Mas logo depois hesitou ao considerar um potencial impacto ambiental: “O mangue é a nossa fonte de vida. Se um vazamento atinge o mangue, acaba com tudo”.

Vista aérea da comunidade pesqueira Hope Beach, banhada por um mangue, próxima a Georgetown, Guiana: ameaça ambiental Foto: Victor Moriyama /Infoamazonia)

Na comunidade indígena de St. Denny’s, a cerca de 100 km de Georgetown, a conselheira Donnet Frederick mostrou uma estufa de hortaliças construída com recursos da venda de créditos de carbono. “Nossa comunidade recebeu 80 milhões de dólares guianenses [R$ 2 milhões] dos projetos de créditos de carbono. Essa verba foi usada para criar uma granja, construir uma estufa e renovar nossa produção”, disse.

Em dezembro de 2022, o governo da Guiana firmou um acordo com a Hess Corporation, integrante do consórcio liderado pela ExxonMobil, para a venda de 37,5 milhões de créditos de carbono ao longo de uma década. O projeto talvez seja o primeiro no mundo a lançar créditos no mercado voluntário em escala nacional. 

Ele abrange todas as florestas do país, que somam 180 mil km² e cobrem quase 90% do território nacional. Nessas áreas, vive a maior parte dos indígenas do país, que representam 10% da população da Guiana. Até 2032, a Hess deve pagar um total de US$ 750 milhões ao governo da Guiana, com a promessa de que 15% desse valor seja destinado exclusivamente aos povos tradicionais.

Mas o líder indígena Mario Hastings alega que as comunidades foram seduzidas pelas promessas financeiras e não foram devidamente consultadas sobre o projeto.  Hastings foi por vários anos cacique (toshao) da aldeia Kako, na região de Essequibo, que esteve envolvida em uma recente disputa territorial com a Venezuela.

Não se pode simplesmente despejar dinheiro nas comunidades sem considerar os impactos culturais e ambientais

Trevon Baird
Antropólogo, pesquisador e professor da Universidade da Guiana

Ele contou que, em 2022, quando ainda estava no cargo, participou de uma reunião do Conselho de Toshaos na capital, onde a proposta do projeto de carbono foi levantada. “Recebemos um calhamaço de páginas em inglês, com linguagem muito técnica, e pediram que déssemos uma resposta imediata”, disse Hastings. As comunidades indígenas da Guiana não têm o inglês como primeira língua, utilizando seus idiomas nativos no dia a dia. “Não pudemos retornar ao nosso povo para mostrar a proposta. Eu disse não, disse que não poderia fazer isso com meu povo”, lembra. No fim, Hastings foi voto vencido pelo conselho.

O coordenador de políticas e advocacy da Associação dos Povos Ameríndios (APA), Nicholas Peters, disse que as comunidades indígenas não têm recebido informações suficientes sobre o projeto de mercado de carbono ou a exploração de petróleo. “A maioria das comunidades na área costeira não está ciente do que pode acontecer se houver um vazamento”, afirmou Petters, que defende discussões mais amplas sobre o assunto dentro das comunidades. 

O projeto propõe comercializar o carbono das florestas para compensar as emissões da indústria petrolífera na Guiana. No entanto, uma análise do Instituto Internacional Arayara, realizada a pedido da reportagem, aponta que boa parte dessa compensação seria anulada. Isso porque as florestas abrigam um estoque de carbono estimado em 4,25 gigatoneladas (Gt) — o equivalente a 15,6 Gt de CO₂ –, enquanto que a queima das reservas de petróleo já identificadas poderia liberar até 4,09 Gt de CO₂ na atmosfera — uma verdadeira bomba de carbono. 

Outros fatores como o desmatamento e as mudanças no uso da terra já têm impactado as florestas e gerado emissões na Guiana. Se novas reservas forem encontradas, as emissões da atividade somadas às da cadeia produtiva, podem pressioná-las ainda mais. “Surge a dúvida se, no futuro, ela será suficiente para equilibrar esse impacto”, questionou Joubert Marques, engenheiro ambiental no instituto que foi consultor científico da reportagem.

Em 2024, a APA e outras organizações publicaram um relatório denunciando as violações do projeto de carbono do governo da Guiana. O documento destaca que o processo de certificação “violou as salvaguardas” dos povos indígenas ao conceder todas as florestas do país ao programa. “Agora a gente está descobrindo que nossas florestas podem estar sendo ‘vendidas’ para as empresas que mais contribuem para os problemas climáticos, que são as de petróleo. Só que nós, indígenas, não sabemos o que foi assinado ou qual foi o acordo, porque não houve consulta adequada”, disse Hasting.

O projeto Até a Última Gota também identificou que, além da produção offshore, há áreas reservadas para a exploração em terra que estão sobrepostas a 13 terras indígenas e uma unidade de conservação na Guiana.

Trevon Baird, professor da Universidade da Guiana, questiona a noção de “progresso” baseada em créditos de carbono. “Não se pode simplesmente despejar dinheiro nas comunidades sem considerar os impactos culturais e ambientais”, afirma o antropólogo, que pesquisa os efeitos dessas transformações nas comunidades indígenas e afrodescendentes da Guiana e do Caribe.

O pesquisador diz que os povos indígenas e as populações mais vulneráveis são “alvos fáceis dos projetos” e também serão os mais impactados pelas mudanças climáticas. 

Território indígena Mainstay/Whyaka, na floresta amazônica da Guiana: carbono das florestas para compensar as emissões da indústria petrolífera na Guiana (Foto: Victor Moriyama / InfoAmazonia)

Da colônia ao petróleo: exploração estrangeira

Por séculos, a Guiana foi explorada por potências coloniais sem que encontrasse um caminho sólido para o desenvolvimento econômico. Após 467 anos de colonização europeia e 26 de ditadura, o país permaneceu pobre e dependente da agricultura, mesmo com a redemocratização em 1992.

A busca por petróleo na costa guianense seguiu a mesma lógica exploratória. Antes de encontrar reservas viáveis, as petroleiras estrangeiras perfuraram mais de 40 poços secos, sem indício de petróleo, ao longo de décadas. A ExxonMobil quase desistiu, relegando o país a segundo plano por alguns anos. A Shell, que detinha metade do bloco Stabroek, abandonou o projeto em 2014, pouco antes da perfuração decisiva.

Foi apenas em maio de 2015, logo após uma eleição presidencial, que a ExxonMobil revelou sua grande descoberta. Desde então, já foram feitas mais de 30 descobertas, com um volume de petróleo estimado em 11 bilhões de barris, avaliados em US$ 1 trilhão. 

O governo da Guiana passou a tratar o petróleo como o caminho para a redenção econômica do país. O início da produção, em 20 de dezembro de 2019, foi instituído como o Dia Nacional do Petróleo.

Desemprego em alta na Guiana mesmo com aumento na produção de petróleo (Arte: InfoAmazonia)

Embora o setor tenha impulsionado significativamente a economia, com o PIB batendo uma taxa de crescimento anual de 65% em 2022, a pobreza segue alta na Guiana. Em 2022, o Conselho Econômico da ONU apontou que 43% da população vivia com menos de US$ 5,5 diários por pessoa – abaixo da linha da pobreza. 

O índice de desemprego de 14% é um dos mais altos da América Latina. As grandes obras, como a construção da ponte sobre o rio Demerara e os modernos prédios no centro de Georgetown, são tocadas por empresas chinesas que contratam, principalmente, trabalhadores asiáticos.

Com a descoberta de petróleo, a ExxonMobil passou a investir pesado em publicidade para moldar sua imagem no país. No estacionamento de um shopping no centro de Georgetown, um comediante anunciava que a petroleira distribuiria 100 mil dólares guianenses (cerca de R$ 2,8 mil) para cada cidadão adulto do país — menos de dois salários mínimos na Guiana. 

“Eu quero uma salva de palmas para a Exxon porque ela está transformando esse país. Por isso, teremos 100 mil no bolso de cada um de vocês”, disse ele em um evento que a reportagem presenciou em novembro de 2024.

Na verdade, o depósito foi feito pelo governo da Guiana, como uma espécie de “bolsa petróleo” a partir do valor arrecadado com os lucros da produção no país. Era o primeiro repasse de recursos direto à população desde o início das operações da Esso no país, mais de cinco anos antes, e o último planejado até então. 

Era véspera de Natal e de ano eleitoral – as eleições presidenciais ocorrem este ano, ainda sem data definida. O evento no shopping também contava com a presença de estrelas do críquete, esporte popular no país, cuja principal liga agora se chama ExxonMobil Guyana Global Super League. Ali, os jovens ganharam óculos escuros e as crianças ursos de pelúcia, todos estampando a marca da empresa. 

Escritório da Exxon Mobil em Georgetown: empresa e governo da Guiana prometem “cidade do futuro a 40 quilômetros da capital (Foto: Victor Moriyama / InfoAmazonia)

Silica City: a cidade prometida 

As quedas de energia são constantes em Georgetown. Em um único dia, a equipe de reportagem experimentou três interrupções. Apesar das grandes reservas, a maior parte do petróleo extraído na Guiana vai para os Estados Unidos e países da Europa“Nós já estamos acostumados com as quedas de energia, só que com o passar dos anos elas estão ficando mais frequentes”, disse a moradora Minerva Cort. 

O governo da Guiana, em parceria com a ExxonMobil, está desenvolvendo o projeto Gas-to-Energy, que pretende canalizar o gás das plataformas para suprir a eletricidade do país. O empreendimento vai custar cerca de US$2 bilhões e é anunciado pela ExxonMobil como uma alternativa para reduzir suas emissões. 

O plano prevê a construção de um gasoduto que parte da área de extração em águas profundas, percorre aproximadamente 200 km até a costa e segue por mais 30 km em terra até a usina termelétrica na região de Wales.

Na verdade, um dos projetos mais ambiciosos é a construção da Silica City, anunciada pelo governo como a “cidade do futuro”. O projeto está sendo desenvolvido a 40 km de Georgetown, em parceria com a Universidade de Miami, dos Estados Unidos, mas pouco se sabe realmente sobre ele. 

Lixão municipal de Georgetown: saneamento precário na capital da Guiana (Foto: Victor Moriyama / InfoAmazonia)

A propaganda institucional exibe uma metrópole futurista, com prédios modernos e tecnologia avançada integrada ao cotidiano dos moradores. Em um evento, em agosto de 2024, o presidente Ali apresentou sua visão do projeto: “Uma cidade com resiliência sustentável; uma cidade que é naturalmente bela, moderna e inovadora; uma cidade que é avançada em seu tempo”. 

Mas enquanto a “cidade prometida”, com seus prédios altos e modernos não se concretiza, o futuro grandioso vendido pelo governo nacional e pelas petroleiras contrasta com a realidade diária de grande parte da população guianense. 

Mais de 90% dos habitantes do país continuam vivendo abaixo do nível do mar. As canaletas que cortam Georgetown, projetadas para controlar os efeitos das marés na cidade, estão entupidas de esgoto e repletas de embalagens de fast food e refrigerante. A água encanada apresenta altos índices de contaminação

Por enquanto, o lugar mais alto da cidade segue sendo a pilha de lixo que cresce incessantemente no aterro sanitário. Do alto da montanha de dejetos, é possível ter uma vista privilegiada do futuro que nunca chega.

*Fábio Bispo é repórter investigativo da InfoAmazonia e se concentra em cobertura política, transparência pública, jornalismo de dados e questões ambientais. Com mais de uma década de experiência, já colaborou como freelancer para diversas publicações, como Estadão, Folha de S. Paulo, Revista Piauí, Intercept Brasil, Congresso em Foco e Agência Pública

**Esta reportagem faz parte do especial Até a Última Gota, produzido com o apoio da Global Commons Alliance, um projeto patrocinado pela Rockefeller Philanthropy Advisors. Foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o suporte do Instituto Serrapilheira

 

InfoAmazonia

InfoAmazonia é um veículo independente que utiliza dados, mapas e reportagens geolocalizadas para contar histórias sobre a maior floresta tropical contínua do planeta. O cruzamento das notícias com os dados pretende melhorar a percepção sobre os desafios para a conservação da floresta.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile