Sessenta. Esse foi o número de socos dados durante o espancamento cometido por Igor Cabral, ex-jogador de basquete de 29 anos, contra a então namorada, Juliana Garcia, de 35 anos, no último sábado em Natal, Rio Grande do Norte. Cabral foi preso em flagrante por tentativa de feminicídio, sem nenhum arranhão da Polícia. A violência intrínseca a esse ato, gerado pelo homem após ver mensagens no celular da companheira, nos lembra da brutalidade que se mantém viva e que, neste caso, só ganhou visibilidade pelas câmeras de segurança do elevador.
Leu essa? “Ninguém corta a cara apenas de uma mulher; corta a de todas as mulheres do mundo”
Mas essa barbárie não é isolada. O Rio Grande do Norte, como tantos outros estados brasileiros, carrega o fardo pesado da violência contra a mulher. Segundo números do Radar da Violência, que tem como base a plataforma Marias.TJRN, o estado registrou 45.086 casos de agressões físicas contra mulheres entre 2020 e 2025.
Estes dados ajudam a evidenciar os alarmantes números trazidos pelo mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que desnudam um aumento vertiginoso de agressões contra mulheres, nas suas mais variadas formas. Só em 2024, foram registrados mais de 778 mil casos de ameaça, além de 258 mil de violência psicológica, 83 mil estupros e o crescimento nas tentativas de feminicídio. Dessas vítimas, 63,6% eram mulheres negras, de 18 a 44 anos, com tiveram suas vidas ceifadas dentro da própria casa.
A realidade do parágrafo anterior ecoa nas histórias contadas com maestria pela jornalista Ana Paula Araújo em seu livro “Agressão – a escalada da violência doméstica no Brasil“, da Editora Globo. Embora a obra, lançada em junho, não trate especificamente o episódio recente, ela disseca, com sensibilidade e rigor jornalístico, a dinâmica perversa da violência doméstica.
Sombra constante em minha vida, como na de muitos brasileiros, a violência coabita o país. Pude presenciar, em diversas ocasiões, a brutalidade nos seus mais variados contextos, neste país em que a cada 17 horas, ao menos uma mulher foi vítima de feminicídio no ano passado.
A função do novo livro de Ana Paula, sequência da obra Assédio, de 2020 – reflete a realidade e, apesar de retratar situações pretéritas ao caso de Juliana, são um lembrete doloroso de que o ciclo da violência se repete, dia após dia, em lares Brasil afora. São histórias que se assemelham, se conectam, e que também se interligam seja pela dor ou pelo medo. E de alguma forma, provoca uma transformação em que lê.
Esta agressão em Natal é mais um capítulo trágico nesse enredo que parece não ter fim. É fundamental que a justiça seja feita e que o agressor responda pelos seus atos com todo o rigor da lei. Mas, para além da punição, precisamos de uma mudança cultural profunda. E digo isso sendo homem negro. É preciso quebrar o silêncio, incentivar as denúncias e garantir que as vítimas tenham amparo e segurança.
Na publicação que traz sobre a vaquinha mobilizada para custear o que for preciso a Juliana coube a ela apenas reiterar um desejo pessoal. ‘’Tudo isso vai passar e terei minha vida de volta’’. Que a tragédia sirva como mais um doloroso lembrete da urgência em erradicar essa chaga social. E que o país, através de leis e justiça, faca concretizar o anseio de Juliana e de todas as suas cidadãs que atravessam a triste experiência.