América Latina será decisiva para descarbonizar economia global, diz relatório

Agência Internacional de Energia avalia que região tem potencial para impulsionar transição energética, mas ainda vê grandes desafios socioeconômicos e políticos

Por Diálogo Chino | ODS 7 • Publicada em 24 de novembro de 2023 - 06:02 • Atualizada em 29 de novembro de 2023 - 08:56

Usina solar Cerro Dominador, no deserto de Atacama, norte do Chile. A região do Atacama recebe um dos mais alto níveis de radiação solar no mundo e é central na expansão da energia solar no Chile (Foto Tamara Merino/ Fundo Monetário Internacional, CC BY-NC-ND)

(Patrick Moore e Fermín Koop*) – A América Latina pode desempenhar um papel cada vez mais influente na transição global para a energia limpa, diz um novo relatório da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês). O Panorama Energético da América Latina, da IEA, ressalta os sucessos da região na geração de energia renovável e como seus abundantes recursos naturais poderiam acelerar as transições energéticas local e global.

Atualmente, os combustíveis fósseis respondem por dois terços da matriz energética da América Latina — abaixo da média global de 80% —, e 60% da eletricidade provém de fontes renováveis. Isso coloca a região “na dianteira” para impulsionar a adoção de energias mais limpas no mundo, avalia o diretor-executivo da IEA, Fatih Birol.

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Lar de mais de um terço das reservas mundiais de cobre e lítio, essenciais para a transição energética, e com um potencial “enorme” para o desenvolvimento das energias solar e eólica, a América Latina “pode desempenhar um papel descomunal na nova economia global”, acrescenta Birol.

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Por outro lado, o relatório também enfatiza o papel notório dos combustíveis fósseis nas atuais economias latino-americanas. O documento alerta que ainda há lacunas de políticas públicas a serem preenchidas e investimentos necessários para que a região aproveite todo seu potencial de geração de energia limpa e conduza transições justas nos países mais dependentes de combustíveis fósseis.

Casa próxima ao Complexo Eólico Folha Larga Norte, em Campo Formoso, na Bahia. O desenvolvimento das energias solar e eólica apresenta grandes oportunidades para a região, mas também pode trazer conflitos com comunidades. Foto Camilo Lobo/ Diálogo Chino
Casa próxima ao Complexo Eólico Folha Larga Norte, em Campo Formoso, na Bahia. O desenvolvimento das energias solar e eólica apresenta grandes oportunidades para a região, mas também pode trazer conflitos com comunidades. (Foto: Camilo Lobo/ Diálogo Chino)

Energias renováveis impulsionam a mudança

O relatório da IEA é o primeiro a avaliar em profundidade o contexto do setor energético na América Latina, apresentando também três cenários para o futuro: um que reflete as políticas atuais, com um aumento de 2,4 °C na temperatura média global até 2100 em relação aos níveis pré-industriais; outro que pressupõe o cumprimento das metas climáticas de cada país, como os objetivos do Acordo de Paris e os compromissos de 16 dos 33 países da região para zerar emissões líquidas de carbono; e um último cenário mais ambicioso, no qual as emissões líquidas são zeradas até 2050 e o aumento da temperatura média global se mantém em 1,5 °C até 2100.

A América Latina, diz o relatório, tem um dos setores elétricos mais limpos do mundo: as hidrelétricas compõem a maior parte (45%) da eletricidade gerada na região. Além disso, a participação das fontes renováveis na matriz elétrica deve se expandir nos três cenários, passando dos atuais 60% para 80% até 2050 mesmo com as políticas atuais.

A energia hidrelétrica está na base das redes elétricas de muitos países latino-americanos, mas a IEA defende que sua expansão seja limitada daqui para frente, principalmente em razão dos conflitos socioambientais ligados à construção das barragens — com muitas áreas cobiçadas na vulnerável bacia amazônica. A agência também alerta para os riscos que mudanças nos padrões de chuva em um contexto de crise climática representam para a geração hidrelétrica.

Já o desenvolvimento das energias solar e eólica, tanto em terra firme quanto offshore, apresenta grandes oportunidades para a região, diz a IEA. Nos últimos anos, países como o Brasil e o Chile têm aparecido na vanguarda dessa tendência e, junto a México, Colômbia e Peru, tiveram um aumento na capacidade de energia solar maior do que a África, o Oriente Médio, a Rússia e a Ásia Central juntos. Sozinho, o Brasil tem uma expansão mensal de um gigawatt de capacidade solar desde julho de 2022.

Esse potencial de energia renovável na América Latina também pode alavancar a produção de hidrogênio de baixa emissão a um custo menor do que em outras partes do mundo, projeta a IEA. Esse combustível, muitas vezes obtido como subproduto de outros processos de geração de energia, pode ajudar a descarbonizar setores como a indústria e o transporte.

Alguns países da região — como Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Panamá, Uruguai e Brasil — já se movimentam rumo ao novo mercado de hidrogênio verde. Porém, a história de outras formas de geração de energia se repete: comunidades e ambientalistas temem que esses projetos façam uso desmedido da água em áreas propensas ao estresse hídrico.

Combustíveis fósseis seguem no comando

Apesar do progresso e do potencial da América Latina em relação às energias renováveis, os combustíveis fósseis ainda são a principal fonte energética na região, e o petróleo segue como o combustível dominante em muitos países, principalmente no transporte e na indústria.

O relatório da IEA diz que a região detém 15% das reservas globais de petróleo e gás natural e menos de 1% das de carvão. Entre esses recursos, há campos de gás de xisto, como os da Argentina, país que já mira na exportação do gás.

O Brasil, a Venezuela e a Colômbia estão entre os principais exportadores de petróleo da América Latina. Já o Chile, a República Dominicana e o Panamá estão entre os mais dependentes das importações de petróleo e gás para suprir a demanda interna. A IEA observa que a produção de petróleo e gás na região aumentou 5% em 2022, e estima-se um novo crescimento este ano; até 2030, a produção de petróleo da região deve superar o crescimento da demanda interna, com um excedente voltado para a exportação.

Embora a demanda energética na América Latina aumente em todos os cenários apresentados pela IEA, a forma de supri-la varia muito. Com base nas políticas atuais, a agência projeta que os combustíveis fósseis seguiriam atendendo à demanda de energia da região, embora com uma leve queda na participação da matriz energética, passando de 67% em 2022 para 63% em 2030.

Agora, se as metas climáticas forem cumpridas, o consumo de combustíveis fósseis deve chegar ao seu auge em meados da década, com uma subsequente redução, atingindo 57% de participação da matriz energética. Já no cenário mais ambicioso, com zero emissões líquidas, a adoção mais rápida de energias renováveis e uma maior eficiência energética colocariam a participação dos combustíveis fósseis em 50% até 2030.

Comunidade de Puerto Chuvica, às margens do Salar de Uyuni, na Bolívia. Os planos para impulsionar a extração de lítio na área geraram preocupações sobre os impactos no abastecimento de água. Foto Ernst Udo Drawert/Diálogo Chino
Comunidade de Puerto Chuvica, às margens do Salar de Uyuni, na Bolívia. Os planos para impulsionar a extração de lítio na área geraram preocupações sobre os impactos no abastecimento de água. (Foto: Ernst Udo Drawert/Diálogo Chino)

Minérios latino-americanos: a nova fronteira

As projeções da IEA ressaltam o papel relevante que a América Latina pode desempenhar na transição energética por meio da produção de componentes essenciais para tecnologias de energia limpa, como baterias elétricas — a região tem metade das reservas globais de lítio e mais de um terço das reservas de cobre e prata.

A agência também vê um potencial na região para produzir um volume significativo de grafite, níquel, manganês e outros elementos conhecidos como terras raras, essenciais para a transição energética. O Brasil detém um quinto das reservas globais de cada um desses recursos, embora sua produção atual seja relativamente pequena. O país também possui grandes reservas de bauxita, usadas na produção de alumínio, componente usado nas linhas de transmissão de energia.

A IEA pede ainda que os governos fiscalizem o cumprimento dos padrões socioambientais das empresas, reconhecendo o surgimento de um movimento “antimineração” após os desastres ambientais vistos na última década — entre eles, o rompimento das barragens de rejeitos em Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. O relatório ainda cobrou mais diálogo entre as partes envolvidas, de investidores a comunidades.

A região também deve aumentar os esforços para ir além da extração mineral e garantir o refino de matérias-primas, um movimento importante para aumentar o valor agregado da indústria extrativista e garantir mais empregos. Alguns países já exploram esse caminho na industrialização do lítio, aumentando o financiamento para a pesquisa e construindo instalações para produção local, como a nova fábrica de baterias de lítio perto de Buenos Aires, na Argentina.

Stephanie Bouckaert, principal autora do panorama da IEA, disse no lançamento do relatório, em 8 de novembro, que concentrar as cadeias de produção extrativistas na América Latina traz “uma oportunidade para o mundo”, já que o processamento e o refino em uma região com eletricidade de baixa emissão de carbono significa que “os minerais essenciais serão mais verdes”.

Mulher e criança do povo Wayuu andam de moto nas salinas de Manaure e Mayapo, Colômbia. Na região da Guajira, uma das mais pobres do país, as comunidades sofrem com a falta de acesso à eletricidade e à água potável. Foto Andrea Puentes / Presidência da Colômbia, CC0
Mulher e criança do povo Wayuu andam de moto nas salinas de Manaure e Mayapo, Colômbia. Na região da Guajira, uma das mais pobres do país, as comunidades sofrem com a falta de acesso à eletricidade e à água potável. (Foto: Andrea Puentes / Presidência da Colômbia, CC0)

Desafios para a transição

Apesar do potencial enorme, a IEA observa que a América Latina ainda enfrenta enormes desafios em sua transição energética, principalmente devido à falta de investimentos. A agência informa que a região apresentou um dos níveis mais baixos de investimento em energia proporcionais ao PIB, abaixo de 3% entre 2014 e 2022, inferiores aos da Rússia e da Ásia Central (5%) e da África Subsaariana (4%) no mesmo período.

Para cumprir as metas climáticas, o financiamento de energias renováveis na América Latina precisaria dobrar para chegar a US$ 150 bilhões ao ano até 2030 e quintuplicar até 2050, calcula a IEA. O relatório faz menção especial aos bancos de desenvolvimento chineses como uma fonte notável de financiamento no setor de energia para alguns governos da região, mas observa o rápido declínio desses empréstimos desde 2016.

A IEA destaca a necessidade de realizar transições energéticas “inclusivas e centradas nas pessoas” que apresentem oportunidades de emprego em uma das regiões mais desiguais do mundo.

Estima-se que pelo menos 17 milhões de pessoas, 3% da população da região, ainda não tenham acesso à eletricidade. Além disso, 74 milhões não conseguem cozinhar com fontes limpas — fator que agrava a poluição e a saúde dos latino-americanos. “É preciso fazer mais para garantir o acesso universal em ambos os aspectos”, diz o relatório. A IEA considera uma “questão central” o fornecimento de energia acessível e o apoio a populações pobres.

O documento também se concentra nas implicações da transformação da matriz energética no mercado de trabalho, aspecto vital das chamadas transições justas. A IEA observa que o setor de energia representa 2% da força de trabalho na América Latina e no Caribe, com seis milhões de empregos; caso as promessas se concretizem, esse número poderia aumentar 15% até 2030, com até quatro milhões de pessoas empregadas no mercado de energias limpas.

O setor de energia latino-americano pode, no entanto, se deparar com outros desafios decorrentes dos impactos das mudanças climáticas. Até 2050, segundo a IEA, mais de 70% da capacidade hidrelétrica instalada na região deverá enfrentar climas mais secos, sendo que os países já sofreram graves quedas na produção durante as últimas secas. O aumento das temperaturas também é mencionado como uma preocupação, já que pode prejudicar a própria geração solar e eólica.

Isso poderia ser parcialmente sanado por uma maior integração regional das redes de energia, atualmente bastante limitada na América Latina, avalia o relatório. “A ligação entre a demanda e o fornecimento de eletricidade de diferentes zonas climáticas proporciona mais resiliência às mudanças do clima”, escreve a agência, observando que isso também poderia ajudar os países a lidar com a intermitência da geração de energia renovável.

O relatório identifica quatro ações principais para reduzir as emissões de CO₂ no setor energético: acelerar a adoção de fontes renováveis; avançar na eletrificação da indústria e do transporte; aumentar a eficiência energética; e impulsionar o acesso a soluções para cozinhar sem poluir. Se as promessas anunciadas pelos países forem cumpridas, a região verá as energias renováveis atenderem a uma nova demanda global nesta década.

A transição energética pode ser uma “solução verde tripla” para a região, avaliou José Manuel Salazar-Xirinachs, da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe, no lançamento do relatório: esse processo, diz, pode melhorar o bem-estar da população, construir economias sustentáveis e resilientes e impulsionar a descarbonização para proteger o meio ambiente.

“O relatório traz uma mensagem cristalina: a América Latina e o Caribe têm uma grande oportunidade ao seu alcance”, diz Fatih Biro, diretor-executivo da IEA. “No entanto, a transição para a energia limpa precisa ser planejada. Não é possível passar de economias baseadas em petróleo e gás para economias baseadas em energia limpa de um dia para o outro. Todos os segmentos da população precisam se beneficiar da transição, especialmente os economicamente mais vulneráveis”.

*Patrick Moore é editor para a América Latina do Diálogo Chino e do China Dialogue; Fermín Koop é editor do Diálogo Chino para o Cone Sul, com base em Buenos Aires

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