ODS 1
Risco de colapso ambiental cresce com o rompimento de seis fronteiras planetárias
Crise climática, consumo insustentável de água doce, pesticidas, microplásticos e uso descontrolado de fertilizantes estão entre as principais causas
“O colapso climático global já começou”,
António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas (setembro 2023)
A temperatura do Planeta está esquentando e atingindo patamares recordes em 120 mil anos. As ondas letais de calor estão matando milhões de pessoas em todo o mundo. A biodiversidade está diminuindo e acelerando o processo de extinção em massa das espécies. O índice de preço dos alimentos atingiu o nível recorde em 100 anos. Os desastres climáticos e ambientais ocupam as manchetes internacionais e causam ansiedade na população global, especialmente nas novas gerações.
Os Estados Unidos da América (EUA) – um dos países mais ricos do mundo – registraram 371 desastres meteorológicos e climáticos desde 1980, onde os danos/custos globais atingiram ou excederam um bilhão de dólares (ajustados pela inflação). O custo total destes 371 eventos ultrapassa a cifra de 2,62 trilhões de dólares, segundo a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA). E pior, faltando quatro meses para o final do ano de 2023, os EUA já foram atingidos por 23 desastres que custaram pelo menos um bilhão de dólares cada um, de acordo com relatório recente da NOAA. Este número é superior ao recorde anual anterior que foi de 22 eventos em 2020.
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As tragédias climáticas não se restringem aos EUA. O ano de 2023 tem sido marcado por incêndios nas florestas boreais do Canadá e da Rússia (locais frios e com grande presença de gelo durante grande parte do ano), também incêndios e inundações catastróficas na Grécia e enchentes na China, Vietnã, Índia, etc. Uma seca prolongada deixou a cidade de Montevidéu praticamente sem água potável. Foi assustadora a destruição de uma cidade histórica, Lahaina, na ilha de Maui, no Havaí, com muitas dezenas de mortes. Inundações apocalípticas na cidade de Derna, na Líbia, causaram a perda de mais de 10 mil vidas e uma grande quantidade de desaparecidos.
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Veja o que já enviamosNo Brasil, houve desastres significativos no primeiro semestre de 2023, como os alagamentos na grande Recife, enchentes em vários estados da Região Norte e inundações e desabamentos em São Sebastião, no litoral de São Paulo, em fevereiro. Em setembro, o Rio Grande do Sul foi atingido por um ciclone extratropical que provocou cheias nunca vistas na bacia do rio Taquari, atingindo dezenas de cidades. Todos estes eventos com muitas mortes e danos econômicos. Segundo levantamento da Confederação Brasileira de Municípios (CNM), mais de 5 mil cidades brasileiras foram atingidas por algum desastre natural nos últimos 10 anos.
Por que os desastres ambientais e climáticos estão se avolumando no Brasil e no mundo?
A resposta pode ser encontrada nos estudos sobre as “fronteiras planetárias” que fazem um diagnóstico da saúde do planeta, mostrando que os sistemas de suporte à vida na Terra foram muito danificados e que o planeta está se distanciando do “espaço de operação seguro para a sobrevivência da humanidade”.
A metodologia das fronteiras planetárias
O conceito de “fronteiras planetárias” foi desenvolvido por um grupo de cientistas liderados por Johan Rockström e Will Steffen em 2009. Eles propuseram esse conceito como uma maneira de entender e avaliar os limites ambientais dentro dos quais a humanidade pode operar de forma segura, evitando danos graves ao planeta e à estabilidade dos sistemas naturais que sustentam a vida.
O termo “fronteiras planetárias” descreve nove limites fundamentais que representam as condições ambientais críticas para a sobrevivência da humanidade e a estabilidade do sistema Terra. Esses nove limites são:
- Mudança climática: Representado pelo aumento da concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera e pelos índices de aquecimento global.
- Integridade da biosfera: Refere-se à extinção de espécies e à diminuição da diversidade biológica.
- Mudança no uso do solo: Consiste na transformação de florestas, pastagens, pântanos, tundras e outros tipos de vegetação, principalmente em terras para agricultura e pecuária, além do desenvolvimento urbano.
- Fluxos biogeoquímicos de nitrogênio e fósforo: Mede a quantidade de nitrogênio sintético e fósforo liberados no meio ambiente, que pode causar poluição da água e do solo.
- Destruição do ozônio estratosférico: Há mais de 35 anos, o mundo concordou em banir os clorofluorcarbonos (CFCs), substâncias químicas que estavam causando um buraco na camada de ozônio.
- Uso global da água doce: Relacionado à quantidade de água doce consumida pela humanidade e sua disponibilidade.
- Acidificação dos oceanos: Relacionada à diminuição do pH dos oceanos devido à absorção de dióxido de carbono, afetando ecossistemas e ameaçando a vida marinha.
- Carga de aerossóis estratosféricos: Relacionadas à liberação de partículas na atmosfera que podem afetar o clima.
- Incorporação de novas entidades: Trata-se de elementos ou organismos modificados por humanos, assim como substâncias totalmente novas. Isso inclui uma lista de centenas de milhares de entidades que variam de materiais radioativos até microplásticos.
O conceito das fronteiras planetárias foi desenvolvido com base na ideia de que ultrapassar esses limites pode levar a mudanças ambientais abruptas e irreversíveis que ameaçam a estabilidade do sistema Terra e, consequentemente, a capacidade da humanidade de sobreviver e prosperar no longo prazo. Portanto, a abordagem das fronteiras planetárias busca estabelecer limites seguros para esses indicadores ambientais, a fim de garantir um ambiente estável e sustentável para as gerações presentes e futuras.
A conceituação original da metodologia das “Fronteiras Planetárias” foi publicada pela primeira vez na revista Nature (Rockström et al, 23/09/2009). A segunda atualização de toda a estrutura metodológica foi publicada na revista Science (Steffen et al, 15/01/2015). Todos os limites planetários foram finalmente avaliados na terceira grande atualização da estrutura metodológica publicada na revista Science Advances (Richardson et al, 13/09/2023)
A humanidade já rompeu seis das nove fronteiras planetárias
A civilização moderna surgiu nos últimos 12 mil anos, logo após o fim da última era glacial. O crescimento da população e da economia só foi possível porque existia grande riqueza ecossistêmica e grande estabilidade climática em todo esse período de tempo geológico, chamado de Holoceno. Mas as conquistas do progresso humano, especialmente nos últimos 200 anos, ocorreram às custas do retrocesso ambiental. Entre 1822 e 2022 a população mundial cresceu pouco mais de 8 vezes, passando de cerca de 1 bilhão para 8 bilhões de habitantes, enquanto o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu algo em torno de 100 vezes. Todo este avanço demoeconômico fez crescer exponencialmente as atividades antrópicas responsáveis pela ultrapassagem dos limites planetários.
O texto publicado na revista Science Advances, em 13 de setembro de 2023, elaborado por pesquisadores da Universidade de Copenhague, do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático e de outras instituições internacionais analisaram dois mil estudos para atualizar a estrutura dos limites planetários desenvolvida em 2009 pelo Centro de Resiliência de Estocolmo. Assim, foi realizada a primeira verificação completa de todos os nove processos e sistemas que determinam a estabilidade e resiliência do planeta. O diagnóstico de todas as nove fronteiras planetárias representou o primeiro exame científico da saúde de todo o planeta e que definem o espaço operacional seguro para a humanidade. Portanto, todas as nove fronteiras planetárias foram avaliadas, sendo que dois terços delas foram transgredidas.
A figura abaixo mostra que seis das nove fronteiras foram ultrapassadas. A zona verde é o espaço operacional seguro (abaixo do limite). Do amarelo ao vermelho representa a zona de risco crescente. A cor roxa indica a zona de alto risco onde as condições do sistema interglacial da Terra serão transgredidas com alta confiança.
Os valores das variáveis de controle são normalizados de modo que a origem represente as condições médias do Holoceno e o limite planetário (extremidade inferior da zona de risco crescente, círculo pontilhado) fique no mesmo raio para todos os limites (exceto para as cunhas que representam água verde e azul). Os comprimentos das cunhas são dimensionados logaritmicamente.
Das nove fronteiras planetárias, a única cujo limite recuou foi da “Destruição do ozônio estratosférico” que está atualmente bem abaixo da zona de risco, devido a iniciativas globais para a redução da emissão dos clorofluorcarbonos (CFCs), ocorrida no âmbito do Protocolo de Montreal, adotado em 1987.
Outra fronteira que ainda não ultrapassou o limite crítico é da “Carga de Aerossóis Estratosféricos”, que se refere à quantidade de partículas suspensas na estratosfera da Terra, geralmente devido a eventos naturais, como erupções vulcânicas, ou atividades humanas, como a liberação de substâncias químicas.
A terceira fronteira que ainda está na zona verde, mas próxima de ultrapassar o limite, é da acidificação dos oceanos. A acidificação dos oceanos ocorre devido à redução do pH da água do mar. À medida que os oceanos absorvem mais CO2, o pH da água diminui, tornando-a mais ácida. A acidificação afeta organismos que dependem de carbonato de cálcio, como corais, moluscos, e muitos tipos de plâncton. A acidificação pode afetar a disponibilidade de alimentos para muitas espécies marinhas, já que o plâncton é a base de muitas cadeias alimentares oceânicas.
O quadro é mais grave para as outras fronteiras planetárias, pois os limites foram transgredidos, sugerindo que a Terra está agora, majoritariamente, fora do espaço operacional seguro para a humanidade. A transgressão dessas seis fronteiras é equivalente ao conceito de ultrapassagem da capacidade de carga do planeta nas respectivas áreas, com a especificidade de considerar os múltiplas impactos no meio ambiente global em um contexto sistêmico, em vez de individualmente.
A fronteira do “Uso Global da Água Doce” é um dos seis limites que saíram do espaço seguro. A água doce é um recurso finito, com apenas uma pequena fração da água na Terra sendo adequada para consumo humano e uso em atividades agrícolas e industriais. A crescente demanda por água doce devido ao crescimento populacional, urbanização e desenvolvimento econômico tem colocado pressão significativa sobre os recursos hídricos em todo o mundo. O uso excessivo e a má gestão da água doce podem levar a conflitos sobre recursos hídricos escassos. Os ecossistemas aquáticos, como rios, lagos e zonas úmidas, dependem de um suprimento adequado de água doce para sustentar a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos. A extração excessiva de água pode prejudicar esses ecossistemas.
O uso sustentável da água doce (tanto a água doce “verde” do solo e da vegetação, quanto a água doce “azul” dos corpos d’água) leva em consideração a capacidade de recarga dos aquíferos e a disponibilidade de água em ecossistemas aquáticos. A gestão cuidadosa da água doce é essencial para a segurança hídrica global, a proteção dos ecossistemas aquáticos e a resiliência das comunidades frente às mudanças climáticas. Além disso, a colaboração internacional e a adoção de práticas sustentáveis de uso da água são cruciais para essa fronteira voltar aos limites seguros.
A transgressão da fronteira da “Mudança do Uso do Solo” tem várias implicações significativas para o meio ambiente e a sustentabilidade global. Essa fronteira diz respeito às mudanças na cobertura e no uso da terra em escala global, especialmente aquelas causadas pela expansão da agricultura, urbanização, desmatamento e outras atividades humanas, levando à perda de habitats naturais e, consequentemente, à diminuição da biodiversidade, o que afeta negativamente a sobrevivência de muitas espécies, muitas das quais ameaçadas de extinção.
A mudança do uso do solo é uma das principais fontes de emissões de gases de efeito estufa, principalmente devido ao desmatamento e à degradação de florestas. A liberação de carbono armazenado nas árvores e no solo contribui para o aquecimento global. Voltar ao limite seguro da fronteira da mudança do uso do solo é essencial para a estabilidade dos ecossistemas, para gestão sustentável da terra e para minimizar os impactos adversos sobre o clima e a biodiversidade.
A fronteira das “novas entidades” – relativa à acumulação de poluição sintética proveniente de substâncias como microplásticos, pesticidas e resíduos nucleares – foi quantificada pela primeira vez no estudo mais recente, publicado na Science Advances (2023). A percentagem de produtos sintéticos não testados e lançados globalmente nos mercados é desconhecida. Porém, com a enorme quantidade de produtos químicos não testados sendo liberados para o meio ambiente, esse novo limite de entidades foi claramente violado
A fronteira planetária dos “Fluxos Biogeoquímicos de Nitrogênio e Fósforo” aparece com a cor roxa, indicando uma zona de alto risco. Nitrogênio (N) e fósforo (P) são nutrientes essenciais para o crescimento das plantas e, portanto, têm um impacto direto na produção de alimentos. No entanto, atividades humanas, como a agricultura intensiva e o uso generalizado de fertilizantes, têm alterado significativamente os ciclos desses nutrientes e podem, por exemplo, levar à Eutrofização, quando esses nutrientes estimulam o crescimento excessivo de algas e plantas aquáticas, levando à morte de organismos aquáticos devido à falta de oxigênio.
A fronteira “Integridade da Biosfera” trata de vários aspectos essenciais para a sobrevivência da vida na Terra. A integridade da biosfera exige a preservação da diversidade de espécies e a manutenção dos ecossistemas que suportam essa diversidade. Exige também ecossistemas saudáveis, pois florestas, oceanos, rios, mangues, zonas úmidas e outros habitats naturais desempenham papéis críticos na regulação do clima, no ciclo de nutrientes e na purificação da água e do ar. O limite para a integridade da biosfera foi quebrado no final do século XIX, quando a destruição do mundo natural em larga escala começou a dizimar a vida selvagem, dando início à 6ª extinção em massa das espécies, que coloca em risco a própria sobrevivência da humanidade.
O rompimento dos limites seguros da fronteira planetária “Mudanças climáticas” é uma ameaça existencial à vida na Terra e à sobrevivência dos seres humanos. Ela se refere às mudanças significativas e persistentes nas condições climáticas da Terra, particularmente ao aumento das temperaturas médias da superfície do planeta. A principal causa da mudança climática atual é a atividade humana, em particular a emissão de gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono (CO2), o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O) na atmosfera. O aumento das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera e do forçamento radiativo antropogênico total no topo da atmosfera (W m-2) resultam em um aumento das temperaturas globais. Isso leva a eventos climáticos extremos mais frequentes, como ondas de calor, secas e inundações. O aquecimento global causa o derretimento das geleiras, dos glaciares e das calotas de gelo dos polos e da Groenlândia, levando a um aumento do nível do mar, que pode inundar áreas costeiras, ameaçando cidades litorâneas e bilhões de pessoas que vivem em áreas costeiras.
Os recordes de temperatura já são uma realidade com os meses de julho e agosto de 2023 sendo os mais quentes dos últimos 120.000 anos, desde o período Eemiano. Segundo o famoso climatologista James Hansen, há grande probabilidade de a temperatura global ultrapassar o limite estabelecido no Acordo de Paris, de 1,5º Celsius, em relação à média do período 1850-1900, nos 12 meses entre junho de 2023 e maio de 2024. Portanto, ao invés de recuar, o processo de aquecimento global está se acelerando e, indubitavelmente, trará consequências desastrosas.
O planeta está perdendo o espaço operacional seguro para a sobrevivência da humanidade
As fronteiras planetárias são um conceito proposto pela primeira vez, em 2009, por um grupo de cientistas liderados pelo sueco Johan Rockström e pelo químico australiano Will Steffen. As fronteiras planetárias são processos interconectados no complexo sistema biofísico terrestre. Conhecer a complexidade do Sistema Terra e os limites físicos e bioquímicos do planeta é fundamental para garantir a sustentabilidade da comunidade biótica e a estabilidade do clima global.
A primeira avaliação das fronteiras planetárias foi realizada em 2009, tendo já naquela altura concluído que três dos limites tinham sido superados. Posteriormente, em 2015, este número subiu para quatro. Agora, os novos estudos concluíram que foram superados seis dos nove limites dos processos que regulam a estabilidade e a resiliência do sistema da Terra, conforme mostra a figura abaixo.
Ultrapassar as fronteiras planetárias significa aumentar os riscos ambientais e climáticos do presente e do futuro. Isto é grave. Pode-se pensar a nova configuração da Terra como um corpo humano doente, com febre e elevada pressão arterial. Ter pressão alta e febre alta não significa que o paciente esteja condenado, mas, sem dúvida, aumenta o risco de um ataque cardíaco.
O fato inegável é que o planeta está entrando em um estado novo, perigoso e muito menos estável. A ultrapassagem das fronteiras planetárias desde o espaço seguro até as zonas de alto risco é um indicativo de que amplas áreas da Terra estão ficando inóspitas ou mesmo inabitáveis. Todos estes estudos servem de alerta para a necessidade de mudanças estruturais profundas e imediatas na forma como relacionamos com a natureza.
Referências:
JOHAN ROCKSTRÖM et al. A safe operating space for humanity, Nature, 23 September 2009
https://www.nature.com/articles/461472a
WILL STEFFEN et al. Planetary boundaries: Guiding human development on a changing planet, Science, 15 January 2015 https://www.science.org/doi/10.1126/science.1259855
KATHERINE RICHARDSON et al. Earth beyond six of nine planetary boundaries, Science Advances, 13 September 2023 https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.adh2458
NOAA. Billion-Dollar Weather and Climate Disasters, National Oceanic and Atmospheric Administration, 11/09/2023 https://www.ncei.noaa.gov/access/billions/
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José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.