ODS 1
Projeto transforma resíduo alimentar em gás de cozinha no Complexo da Maré
Coletivo LUTeS trabalha com tecnologias ecológicas para discutir a importância do saneamento em favela na Zona Norte do Rio
É possível transformar resíduos de comida em gás de cozinha? Foi pensando nisso que o coletivo LUTeS (Lutas Urbanas, Tecnologia e Saneamento) instalou um biodigestor no Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio. A tecnologia ecológica de saneamento transforma resíduos orgânicos como resto de comida e esterco animal em biogás, que pode ser usado para cozinhar, e biofertilizante, que é um tipo de fertilizante líquido natural que pode ser usado para jardinagem e em plantações.
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O projeto faz parte de uma parceria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com organizações com atuações locais. O LUTeS propõe discussões sobre saneamento em territórios populares a partir de soluções tecnológicas que buscam uma vida mais sustentável. Inahra Cabral, arquiteta, urbanista e coordenadora do coletivo, explica que a ideia de instalar um biodigestor surgiu ao final de uma oficina, em 2021. Durante as aulas, os estudantes foram convidados a mapear os principais problemas de saneamento no entorno da escola: “O biodigestor foi a tecnologia que mais encantou, mais fez sentido para aquele contexto, para as discussões que a gente estava tendo”, relembra.
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Veja o que já enviamosO sistema funciona a partir de um processo anaeróbico, conta Inahra: “São bactérias que funcionam na ausência de oxigênio produzindo biogás e biofertilizante. Tanto o biogás quanto o biofertilizante, além de serem produtos naturais, resultantes desse processo de biodegradação, são também super nutritivos e podem ser utilizados de diferentes formas”.
O equipamento escolhido, em conjunto com a comunidade, foi o home biogás 2.0, que é um tipo de biodigestor autônomo: “Optamos por ele por ser uma tecnologia de fácil instalação e de baixa manutenção e que também tem um porte pequeno. Ele pode receber até 4kg de resíduos orgânicos por dia, ou 18kg de esterco animal por dia. E, assim, gera de duas a três horas de gás de cozinha diariamente”, explica a coordenadora.
Para ela, a parceria com a escola foi fundamental nesse trabalho de educação ambiental: “Existe um alto grau de confiança na parceria com a direção e a professora de biologia do Colégio João Borges, o que proporciona grande liberdade para propormos atividades e um interesse tanto da escola como do nosso projeto em pensarmos coletivamente atividades e processos na direção de práticas da educação popular e emancipadora”.
São duas turmas, com cerca de 60 estudantes. O projeto também realiza um curso de formação de agentes ambientais em saneamento ecológico. Serão 12 agentes comunitários, sendo seis monitores fixos do colégio e a outra metade formada por moradores da Maré.
Para Sérgio Barboza de Souza, diretor do Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, o projeto contribui para a educação ambiental e para o diálogo entre a escola e a sociedade: “A iniciativa é de suma importância porque a gente consegue agregar o teórico à prática, em termos de educação, é muito fomentadora do pensar. É muito válido esse processo para dentro da escola”, ressalta o diretor.
“É necessário uma conscientização do ser humano para que a gente preserve os biomas, o meio ambiente, as florestas. E, para isso, ela pode estar na disciplina de geografia, na disciplina de história, de biologia, de química, de física, desde o contexto de multidisciplinaridade e desse processo de ensino. Assim como todas as outras formas de educação são necessárias”, explica.
Maria Eduarda Pereira dos Santos, de 19 anos, participa do projeto desde o início e diz que a iniciativa mudou não só a vida dela, mas a da comunidade, que passou a ter mais contato com questões ambientais: “A gente sempre está alimentando o biodigestor com os resíduos orgânicos, que poderiam afetar o ambiente e trazer animais como ratos, insetos, esses bichos que trazem doenças para a gente. Às vezes, levo o resíduo de casa para poder alimentar o biodigestor”. A jovem diz que aprendeu sobre outras estratégias que podem ser implementadas na Maré: “Aprendi muito sobre outras tecnologias também de saneamento, como jardim de chuva e barril de captação de água”.
Assim como Eduarda, a estudante Sabrina Gonçalves, 17 anos, diz que participar do projeto abriu os seus olhos para temas importantes e pouco debatidos dentro e fora da favela: “Aprendi sobre o racismo ambiental, racismo estrutural, que são [assuntos] muito importantes e que nós moradores de favela da Maré não sabemos que vivemos isso. É muito forte na nossa sociedade, na nossa realidade e que não é normal”, pontua a aluna do 3º ano do ensino médio.
Os impactos do racismo ambiental, como efeito das mudanças climáticas, mostram a importância da discussão nas escolas: “O trabalho educativo deve buscar tornar protagonistas os jovens na luta pela justiça climática, pela garantia de direitos e políticas públicas voltadas para a análise e resolução dos problemas em seus territórios”, defende a arquiteta Inahra. Para ela, a organização comunitária na Maré teve um papel importante para buscar diferentes soluções para a comunidade: “Esse resgate é muito importante quando a gente vai discutir saneamento”.
Inahra diz que há expectativa de instalar um segundo biodigestor na Maré, previsto ainda para este mês de julho. A ideia é ter um biodigestor mais potente, que pode receber 10kg de resíduos orgânicos e 60kg de esterco animal, gerando de 5 a 7 horas de gás de cozinha diariamente.
O LUTeS é um coletivo que nasceu de uma parceria entre organizações com atuações na Maré, o Colégio Estadual Professor João Borges de Morais e a Universidade Federal do Rio de Janeiro. O projeto conta com uma equipe de 20 pessoas, com profissionais e estudantes de diferentes áreas do conhecimento, como arquitetura, sociologia, engenharia, história, biologia, de diversos locais do estado, com faixa etária abrangente, e gestão coletiva. “Essa diversidade de pontos de vista e contribuições faz o projeto muito inventivo, dinâmico e eficiente na resolução de problemas. Além de reduzir os erros e as limitações inerentes aos trabalhos individuais”, finaliza a coordenadora.
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Igor Soares é jornalista formado pela UFRJ. Atua como repórter do Fala Roça e como freelancer do #Colabora e do Rio On Watch. Tem experiência em cobertura de cidades, direitos humanos, segurança pública, economia e política, com passagem pelas redações do Estadão, do Portal iG, além de já ter produzido reportagens para a Folha de S. Paulo.