Projeto transforma resíduo alimentar em gás de cozinha no Complexo da Maré

Depósito do biodigestor da Maré, com grafites feitos pelos próprios alunos do Colégio Professor João Borges de Moraes. Foto Divulgação

Coletivo LUTeS trabalha com tecnologias ecológicas para discutir a importância do saneamento em favela na Zona Norte do Rio

Por Igor Soares | ODS 4ODS 6 • Publicada em 26 de julho de 2024 - 09:54 • Atualizada em 6 de agosto de 2024 - 10:09

Depósito do biodigestor da Maré, com grafites feitos pelos próprios alunos do Colégio Professor João Borges de Moraes. Foto Divulgação

É possível transformar resíduos de comida em gás de cozinha? Foi pensando nisso que o coletivo LUTeS (Lutas Urbanas, Tecnologia e Saneamento) instalou um biodigestor no Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio. A tecnologia ecológica de saneamento transforma resíduos orgânicos como resto de comida e esterco animal em biogás, que pode ser usado para cozinhar, e biofertilizante, que é um tipo de fertilizante líquido natural que pode ser usado para jardinagem e em plantações.

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O projeto faz parte de uma parceria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com organizações com atuações locais. O LUTeS propõe discussões sobre saneamento em territórios populares a partir de soluções tecnológicas que buscam uma vida mais sustentável. Inahra Cabral, arquiteta, urbanista e coordenadora do coletivo, explica que a ideia de instalar um biodigestor surgiu ao final de uma oficina, em 2021. Durante as aulas, os estudantes foram convidados a mapear os principais problemas de saneamento no entorno da escola: “O biodigestor foi a tecnologia que mais encantou, mais fez sentido para aquele contexto, para as discussões que a gente estava tendo”, relembra.

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O sistema funciona a partir de um processo anaeróbico, conta Inahra: “São bactérias que funcionam na ausência de oxigênio produzindo biogás e biofertilizante. Tanto o biogás quanto o biofertilizante, além de serem produtos naturais, resultantes desse processo de biodegradação, são também super nutritivos e podem ser utilizados de diferentes formas”.

As primeiras chamas geradas pelo biodigestor da Maré. Foto Divulgação
As primeiras chamas geradas pelo biodigestor da Maré. Foto Divulgação

O equipamento escolhido, em conjunto com a comunidade, foi o home biogás 2.0, que é um tipo de biodigestor autônomo: “Optamos por ele por ser uma tecnologia de fácil instalação e de baixa manutenção e que também tem um porte pequeno. Ele pode receber até 4kg de resíduos orgânicos por dia, ou 18kg de esterco animal por dia. E, assim, gera de duas a três horas de gás de cozinha diariamente”, explica a coordenadora.

Para ela, a parceria com a escola foi fundamental nesse trabalho de educação ambiental: “Existe um alto grau de confiança na parceria com a direção e a professora de biologia do Colégio João Borges, o que proporciona grande liberdade para propormos atividades e um interesse tanto da escola como do nosso projeto em pensarmos coletivamente atividades e processos na direção de práticas da educação popular e emancipadora”.

São duas turmas, com cerca de 60 estudantes. O projeto também realiza um curso de formação de agentes ambientais em saneamento ecológico. Serão 12 agentes comunitários, sendo seis monitores fixos do colégio e a outra metade formada por moradores da Maré.

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Para Sérgio Barboza de Souza, diretor do Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, o projeto contribui para a educação ambiental e para o diálogo entre a escola e a sociedade: “A iniciativa é de suma importância porque a gente consegue agregar o teórico à prática, em termos de educação, é muito fomentadora do pensar. É muito válido esse processo para dentro da escola”, ressalta o diretor.

“É necessário uma conscientização do ser humano para que a gente preserve os biomas, o meio ambiente, as florestas. E, para isso, ela pode estar na disciplina de geografia, na disciplina de história, de biologia, de química, de física, desde o contexto de multidisciplinaridade e desse processo de ensino. Assim como todas as outras formas de educação são necessárias”, explica.

Maria Eduarda Pereira dos Santos, de 19 anos, participa do projeto desde o início e diz que a iniciativa mudou não só a vida dela, mas a da comunidade, que passou a ter mais contato com questões ambientais: “A gente sempre está alimentando o biodigestor com os resíduos orgânicos, que poderiam afetar o ambiente e trazer animais como ratos, insetos, esses bichos que trazem doenças para a gente. Às vezes, levo o resíduo de casa para poder alimentar o biodigestor”. A jovem diz que aprendeu sobre outras estratégias que podem ser implementadas na Maré: “Aprendi muito sobre outras tecnologias também de saneamento, como jardim de chuva e barril de captação de água”.

Inahra Cabral apresentando a EcoQuadra na Aula Inaugural do Curso de Formação de Agentes Ambientais em Saneamento Ecológico. Foto Divulgação
Inahra Cabral apresentando a EcoQuadra na Aula Inaugural do Curso de Formação de Agentes Ambientais em Saneamento Ecológico. Foto Divulgação

Assim como Eduarda, a estudante Sabrina Gonçalves, 17 anos, diz que participar do projeto abriu os seus olhos para temas importantes e pouco debatidos dentro e fora da favela: “Aprendi sobre o racismo ambiental, racismo estrutural, que são [assuntos] muito importantes e que nós moradores de favela da Maré não sabemos que vivemos isso. É muito forte na nossa sociedade, na nossa realidade e que não é normal”, pontua a aluna do 3º ano do ensino médio.

Os impactos do racismo ambiental, como efeito das mudanças climáticas, mostram a importância da discussão nas escolas: “O trabalho educativo deve buscar tornar protagonistas os jovens na luta pela justiça climática, pela garantia de direitos e políticas públicas voltadas para a análise e resolução dos problemas em seus territórios”, defende a arquiteta Inahra. Para ela, a organização comunitária na Maré teve um papel importante para buscar diferentes soluções para a comunidade: “Esse resgate é muito importante quando a gente vai discutir saneamento”.

Inahra diz que há expectativa de instalar um segundo biodigestor na Maré, previsto ainda para este mês de julho. A ideia é ter um biodigestor mais potente, que pode receber 10kg de resíduos orgânicos e 60kg de esterco animal, gerando de 5 a 7 horas de gás de cozinha diariamente.

O LUTeS é um coletivo que nasceu de uma parceria entre organizações com atuações na Maré, o Colégio Estadual Professor João Borges de Morais e a Universidade Federal do Rio de Janeiro. O projeto conta com uma equipe de 20 pessoas, com profissionais e estudantes de diferentes áreas do conhecimento, como arquitetura, sociologia, engenharia, história, biologia, de diversos locais do estado, com faixa etária abrangente, e gestão coletiva. “Essa diversidade de pontos de vista e contribuições faz o projeto muito inventivo, dinâmico e eficiente na resolução de problemas. Além de reduzir os erros e as limitações inerentes aos trabalhos individuais”, finaliza a coordenadora.

Igor Soares

Igor Soares é jornalista freelance no Rio, com foco em cobertura de favelas, e atua como ativista social. É vencedor do 13º Prêmio Jovem Jornalista. Atualmente, é repórter freelance do #Colabora. Já teve passagem pelo Estadão e TV Bandeirantes, além de ter colaborado para a Folha de S. Paulo.

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