Questão de fé

Morte de mãe Stella faz relembrar sustentabilidade nas oferendas no réveillon

Por Flávia Oliveira | ArtigoODS 6 • Publicada em 30 de dezembro de 2015 - 10:49 • Atualizada em 3 de janeiro de 2022 - 11:32

Na virada de 2015, a Comlurb recolheu 368 toneladas de lixo das areias de Copacabana

No balaio de contradições que abriga a sociedade brasileira, a baixa proporção de autodeclarados praticantes das religiões de matriz africana é vizinha do robusto rebanho de devotos de Iemanjá. A senhora das águas salgadas, dona de todas as cabeças, é das divindades mais reverenciadas do país. No Rio de Janeiro, as homenagens à beira-mar estão na origem do que hoje é uma das mais famosas festas de réveillon do planeta; em 2011, tornaram-se patrimônio cultural da cidade. Nos dias que antecedem a virada do ano, centenas de milhares de iniciados na umbanda e no candomblé e de fieis de ocasião vão às praias oferecer presentes e lançar pedidos ao orixá. Por numerosas, as oferendas fazem soar o alarme da preocupação ambiental, como já pregava Mãe Stella de Oxóssi, do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, que morreu neste 27 de dezembro de 2018, aos 93 anos.

[g1_quote author_name=”Mãe Stella de Oxóssi ” author_description=”Iyalorixá do Ilê Axé Opó Afonjá ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Quem for consciente e corajoso entenderá que os ritos podem e devem ser adaptados às transformações do planeta e da sociedade. Os ritos se fundamentam nos mitos e nestes estão guardados ensinamentos valorosos. O rito pode ser modificado, a essência dos mitos, jamais.

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Na virada de 2015, a Comlurb recolheu 368 toneladas de lixo das areias de Copacabana. Havia muitas garrafas de bebidas, mas também grande quantidade de flores, velas e vidros de perfume, típicos presentes dos devotos. Em Salvador, no dia seguinte ao 2 de fevereiro passado, quando a capital baiana festejou Iemanjá, a empresa local de limpeza urbana retirou uma tonelada de resíduos das praias do Rio Vermelho, epicentro das comemorações.

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A transformação do ritual religioso em tradição cultural, não é de hoje, preocupa ambientalistas. Há dez anos, o grupo Nzinga de Capoeira Angola promove a campanha “Iemanjá protege quem protege o mar”, em Salvador. Os ativistas pedem que as oferendas sejam biodegradáveis ou de materiais orgânicos. À frente do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, Mãe Stella de Oxóssi pregava, fazia tempo, contra homenagens que agrediam a natureza. “A gente não leva presente para melar a casa da pessoa”, declarou às vésperas da festa de 2015.

Em 2016, a ialorixá dobraria a aposta. Na semana do Natal, em artigo no jornal baiano “A Tarde”, Mãe Stella convocou filhos de santo a reverenciarem Iemanjá com canto, dança e preces. No texto “Presença, sim. Presente, não”, uma das mais importantes sacerdotisas dos cultos afros do Brasil rejeitava a entrega de barcos, perfumes, espelhos, bijuterias e até mesmo flores no mar. “Quem for consciente e corajoso entenderá que os ritos podem e devem ser adaptados às transformações do planeta e da sociedade. Os ritos se fundamentam nos mitos e nestes estão guardados ensinamentos valorosos. O rito pode ser modificado, a essência dos mitos, jamais”, escreveu.

Em Salvador e Porto Alegre, o sincretismo religioso da umbanda reservou a Iemanjá o 2 de fevereiro, dia dedicado à Nossa Senhora dos Navegantes, santa católica que protege os pescadores. No Rio, a data era, na origem, o 31 de dezembro. Mas o gigantismo do réveillon levou devotos a anteciparem homenagens. No dia 29 de dezembro de 2016, centenas de pessoas participaram de cortejo do Mercadão de Madureira até Copacabana. Para reverenciar a Rainha do Mar, cruzaram 30 quilômetros, passaram por 15 bairros cariocas.

O babalaô Ivanir dos Santos, ativista contra a intolerância religiosa, recomenda que presentes inorgânicos não sejam deixados na natureza: “O que Mãe Stella propôs não é novidade no candomblé. Na Nigéria, a forma milenar de homenagear os orixás não polui. Basta uma cabaça com oferendas e milhares de pessoas cantando e dançando. A questão é como mudar a tradição sem ferir a fé”, diz. Outro ponto é conscientizar os leigos.

As garrafas de bebidas são os resíduos mais comuns, mas há também grande quantidade de flores, velas e vidros de perfume
As garrafas de bebidas são os resíduos mais comuns, mas há também grande quantidade de flores, velas e vidros de perfume

Em 2006, com apoio da Fundação Palmares, Aderbal Ashogun – sob a consultoria de Mãe Beata de Iemanjá, do terreiro Ile Omiojuaro, há 30 anos em Nova Iguaçu (RJ) – publicou a cartilha “Educação ambiental para religiões afro-brasileiras”. O objetivo era resgatar o saber tradicional das religiões de matriz africana. “Os mais velhos não encontravam tantos resíduos de vidro, plástico, papelão compondo as oferendas. O dito progresso do mundo capitalista deturpou nossa maneira de tratar o meio ambiente. O povo de santo acabou incorporando valores que nos afastam de nossas tradições e justificam mais preconceito contra as religiões afro-brasileiras”, diz o texto.

No rol de práticas sustentáveis sugeridas na cartilha, está o uso de recipientes biodegradáveis (folhas de bananeira e cuias, no lugar de louças, por exemplo). Há recomendação expressa para que o devoto não deixe para trás sacos plásticos e embalagens. “No mar, derrame líquidos de garrafas e frascos de perfumes; retorne com objetos como espelho, pente, sabonete, bijuterias. Cantar, tocar, dançar são opções de oferendas que não deixam lixo”, destaca outro trecho.

O historiador Luiz Antonio Simas confirma que a questão ambiental é crescentemente discutida nas comunidades de terreiro. “Vejo mudanças, sim. O próprio processo de urbanização gera redefinições na estruturação do culto. Percebo um movimento de se combater a hipertrofia ritual, reduzindo o número de coisas utilizadas em oferendas. Em vez de oferecer frascos de perfumes, por exemplo, despeja-se um pouquinho do líquido no mar e descarta-se corretamente o vidro. Estou com Mãe Stella”, sentencia. É a prova de que fé e sustentabilidade podem, sim, andar juntas.

Flávia Oliveira

Flávia Oliveira é jornalista. Especializou-se na cobertura de economia e indicadores sociais. É colunista do jornal O Globo e comentarista no canal GloboNews. É membro do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro.

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2 comentários “Questão de fé

  1. Oswaldo Copque disse:

    Muito feliz, ousado e apropriado o discurso de Mãe Stella ao desafiar as pessoas corajosas e conscientes para adaptar os ritos em função das transformações do planeta e da sociedade. Considerando que todo rito esteja fundamentado em um mito. Abrem-se, as perspectivas de novas formas de homenagens. Os saudosos mestres baianos, Dorival Caymmi, o poetinha Vinicius de Morais dentre outros, deixou um imenso legado nas composições de suas obras para a música popular brasileira. Essa campanha é possível de realização, conforme sugere Mãe Stella. Onde estão os artistas da nossa terra para mostrar a riqueza cultural através do canto, da dança e outras formas de expressão? A sua visão aponta que é possível colocar em prática redefinições na estruturação dos cultos, quanto aos costumes, sem mudar a tradição, nem ferir a fé. Por exemplo, troquei o uso de louças por caixa de papelão para oferecer as comidas aos Orixás. Essa é uma singela mudança, que prova que a fé e a sustentabilidade, podem, sim, caminhar juntas.

  2. Gilson&Ray Góes disse:

    Parabéns a excelente jornalista Flávia pelo brilhante artigo sobre a conscientização da poluição do meio ambiente. “A prática do rito pode (e deve) mudar; essência jamais!”

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