Surdas, lésbicas e mães: o amor e as lutas de Carilissa e Helenne

Helenne (à esquerda) e Carilissa no casamento em março de 2020 (Foto: José Zignani)

Junto há sete anos, casal supera inúmeros preconceitos e renova votos sempre que possível. História começa na internet e se consolida em meio à distância e às barreiras familiares

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 5 • Publicada em 11 de junho de 2020 - 11:12 • Atualizada em 29 de junho de 2021 - 16:01

Helenne (à esquerda) e Carilissa no casamento em março de 2020 (Foto: José Zignani)

Em libras, a declaração: “Você me completa de todas as formas. Amo poder te amar”. É quase impossível não se emocionar com os votos de casamento de Carilissa e Helenne. Os segundos iniciais do vídeo abaixo enviado pelo casal já revelam que por trás desse momento existe uma grande história a ser contada. Só elas, mulheres, lésbicas e surdas, sabem das lutas diárias enfrentadas em um país machista, LGBTfóbico e tão pouco inclusivo para pessoas com deficiência. Por isso, primeiramente, peço licença para escrever as palavras que compõe esse texto. Sabemos que fica difícil celebrar o mês dos namorados e do orgulho LGBTI+ em meio a uma pandemia. Mas acreditamos que narrativas como essa podem servir como um sopro de esperança e amor em tempos tão sombrios e incertos.

Carilissa Dall’Alba, de 34 anos, é gaúcha de Caxias do Sul. Helenne Sanderson, de 32, é natural de Barreiras, na Bahia, e mudou-se para Brasília aos 15 anos. A primeira, professora e pesquisadora, é surda de nascença em razão da rubéola contraída pela mãe. A segunda, designer, perdeu a audição aos 2 anos por conta de uma meningite. Vidas, até certo ponto parecidas, porém geograficamente distantes. Para que o encontro se tornasse possível, foi necessário um empurrãozinho da internet.

Mais: Artigo: ‘Muito maior do que o medo, é o orgulho que tenho dos meus filhos LGBT+’

O primeiro capítulo

Em março de 2013, Carillisa achou o perfil da futura esposa por acaso, no Facebook. Ficou encantada, mas por conta dos milhares de quilômetros que a separavam decidiu não tomar atitude. “O engraçado é que eu já sentia que ela era a pessoa predestinada para mim”.

[g1_quote author_name=”Carilissa Dall’Alba” author_description=”Professora de libras” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

A Helenne me completa, me entende e me apoia através dos sentimentos e olhares. É uma mulher de coragem e autêntica, vê as coisas de uma forma bem simples e leve sem desabar. Uma guerreira, que passou por cima das dificuldades e dos sofrimentos e conseguiu se tornar uma mulher feliz sem feridas. Ela representa o amor que eu amo viver

[/g1_quote]

O pedido para adicioná-la na rede só ocorreu três meses depois. Ela foi impactada, em um grupo fechado de mulheres surdas, por uma notícia que trazia Helenne na foto principal, protestando durante a Marcha das Vadias de Brasília. “Eu não tinha fé que ela iria me aceitar. Lembro muito bem daquele dia: 25 de junho, dois dias antes do meu aniversário, uma noite bem gelada. Quando já estava indo dormir, aparece uma mensagem: ‘Quem é você?’”.

Foram longas e apaixonantes trocas de mensagens até elas se conhecerem por videoconferência. Carilissa afirma, sem vergonha do clichê, que foi amor à primeira vista. O que foi comprovado quando de fato se encontraram pessoalmente, 11 dias após o primeiro contato. A gaúcha, que hoje dá aulas de libras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, estava de malas prontas para a Europa para um trabalho de pesquisa. Helenne, então, decidiu correr e saiu de Brasília para encontrá-la em Porto Alegre, dias antes do voo. “Fui antes da viagem para não perdê-la para ninguém”, brinca a baiana.

“Esperta, me segurou. Parece que foi uma imã que nos colou tão rapidamente. Não tive medo de conhecê-la, não tive medo de namorá-la. Ela também não. Foi algo muito forte, inexplicável”, recorda Carilissa, que confessa que tinha um coração de gelo para relacionamentos. “Amo a solidão e me amo muito, não imaginaria dividir a minha vida com alguém. Tudo mudou”.

O pedido de namoro veio logo após a pesquisadora retornar ao Brasil e viajar direto para Brasília para encontrar a amada. De imediato, um acordo foi feito: mais de 15 dias longe uma da outra? Jamais! Foram dez meses de encontros quinzenais e mais de quatro mil quilômetros percorridos a cada viagem. Essa custosa, porém prazerosa, jornada terminaria com a decisão de que elas, enfim, deveriam viver juntas. Helenne fez as malas e mudou-se para Santa Maria, no Rio Grande do Sul, onde vive há sete anos com Carilissa e Sofia.

Mais: O problema não é ter dúvidas sobre qual sigla LGBT+ usar, é achar que é um alfabeto e debochar

Surdas, lésbicas e mães: Carilissa e Helenne com a filha, Sofia, de 11 anos
Carilissa e Helenne com a filha, Sofia, de 11 anos (Foto: José Zignani)

Surdas, lésbicas e mães: uma nova família para Helenne

No Sul, Helenne além de esposa – elas se casaram no civil após um ano de namoro – passaria a exercer uma nova função: a de mãe. Carilissa vivenciou a maternidade ao dar à luz Sofia, fruto de um relacionamento passado. A pequena, na época com 4 anos, e a madrasta já haviam criado uma conexão por meio de ligações pelo Skype e de encontros esporádicos. Os laços estavam bem estabelecidos. “A Sofia pediu para a Helenne sentar-se ao seu lado numa mesa de almoço na casa dos meus pais. Fiquei aliviada. Vi ali uma amizade nascendo”, conta Carilissa.

[g1_quote author_name=”Helenne Sanderson” author_description=”Designer” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Carilissa, minha mulher, é muito forte e poderosa, sempre pronta para tudo. Um modelo para mim e tenho orgulho da minha esposa. Me deu dois presentes, ela e Sofia. Com a Carilissa eu compreendi o que é família. Eu agradeço muito o destino pela nossa união linda

[/g1_quote]

Com o mesmo carinho, a baiana foi recebida pelo restante da família da companheira. Carilissa brinca que em alguns momentos a sua mãe torna-se mais mãe da esposa do que dela própria. E com Sofia não é diferente. “Tem horas que é mais filha dela do que minha. Eu sou mais amorosa, mimo muito. A Helenne é mais exigente. É bom para a Sofia ter as mães diferentes, é um equilíbrio”.

Contudo, do outro lado, a relação da professora com a família da designer é distante. Carilissa nunca conheceu os sogros pessoalmente com receio de gerar conflitos, já que eles têm dificuldades para aceitar a união. Um dia, o pai de Helenne ameaçou tirar o sobrenome da filha caso ela continuasse a se relacionar com mulheres. Ela jamais se esqueceu dessas palavras. “Por causa disso, a Helenne demorou muito para falar da gente para família e somos muito cobradas. Somos julgadas demais, eles não conhecem o nosso relacionamento”, lamenta Carilissa.

Mais: Orgulho gay de pai para filho

8 de março

A esperança do encontro entre as duas famílias renasceu às vésperas da celebração da união, no dia 8 de março desse ano. A data não poderia ser mais simbólica para duas mulheres que cresceram lutando pelos seus direitos, como surdas e como lésbicas. Após o casamento no civil, elas aguardaram por cinco anos a vinda dos pais de Helenne para, enfim, realizar uma grande festa.

A mãe de Helenne perguntou sobre a roupa que a filha usaria no dia. “Terno”, respondeu Helenne. Ela pediu para a filha usar um vestido e disse que, neste caso, compareceria. Para ter a família por perto, a noiva não pensou duas vezes e chegou a comprar a peça. No entanto, uma semana antes, veio a notícia da desistência da viagem por parte da mãe. “Helenne, então, casou comigo com as roupas que sempre quis e com as quais se identifica, sendo a Helenne de sempre. Não usou terno, mas uma linda camisa social”, conta Carilissa.

Clarissa, amiga surda do casal, a celebrante do casamento (Foto: José Zignani)

Nas palavras de Carilissa, a cerimônia ao ar livre foi única e inédita. A celebrante foi uma amiga surda do Rio de Janeiro. Sofia, agora com 11 anos, também recebeu os votos de Helenne, de mãe para filha. “Teve poesia da Gabriela, mulher surda de Curitiba. Teve bem-casados de Lisboa, doces finos e tradicionais. Teve torta, espumante. Teve pintura ao vivo do cenário. Teve tudo que um casamento tem direito de ter e um pouco mais”, revive com empolgação e relembra que quase o sonho foi adiado. A festa aconteceu pouco antes de o Brasil começar a adotar as medidas de isolamento para o combate ao coronavírus. Com a pandemia, as três foram para o sítio dos pais de Carilissa, em Caxias do Sul, a 128 quilômetros de Porto Alegre.

Apesar de ter sido a única cerimônia com tamanha estrutura, as duas contam que amam renovar os votos. É como se cada viagem ou jantar à luz de velas – e elas fazem isso frequentemente – se tornasse um motivo para uma nova celebração, porém íntima e reservada. “A Helenne sempre escreve bilhetes e cartinhas me pedindo em casamento. Coisas que o coração manda na hora, é inexplicável. Estamos juntas há sete anos, mas parece que já se passaram 30”.

Mais: ‘Só conseguimos ser felizes se formos realmente livres’, diz pastora lésbica

Quem é Carilissa?

Carilissa diz ser uma mulher de muitos sonhos. E a maioria se relaciona com as suas lutas. Sonha com um mundo em que todos os surdos consigam estudar em escolas inclusivas. Ela teve essa sorte e, mesmo em meio às adversidades, reconhece o privilégio de ter frequentado uma escola de surdos, o seu berço linguístico. Aos 16 anos, já assumia e garantia a visibilidade nacional da campanha “Legenda para quem não ouve, mas se emociona”. Foi a primeira surda a ser homenageada como cidadã emérita de Caxias do Sul e a única a ter mestrado e doutorado na região. “Não é todo Brasil que tem escolas bilíngues para surdos, são bem poucas. Infelizmente, muitos estudam em escolas comuns, sem seus pares e sofrem muito bullying, como a Helenne sofreu”.

“Me considero sortuda por ter a Helenne, uma mulher maravilhosa que me entende só me olhando”, diz Carilissa (Foto: José Zignani)

Helenne, do interior da Bahia, cresceu em uma fazenda, afastada de um sistema educacional adequado à sua realidade. Estudava em escolas de ouvintes e lidava com o preconceito diariamente. Mas não dividia o que ocorria em casa justamente por não se sentir acolhida. Foi para Brasília aos 15 anos em busca de melhores oportunidades de estudos, mas se deparou com enormes obstáculos e diferenças culturais. Se formou em design gráfico, no entanto, não consegue emprego com carteira assinada por conta da deficiência auditiva. Hoje, se dedica ao mestrado.

[g1_quote author_name=”Carilissa Dall´Alba” author_description=”Professora de libras” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Quando a Sofia nasceu, senti o preconceito mais próximo porque os médicos não falavam comigo, falavam com minha mãe ou irmã. Pessoas ficavam me olhando e me perguntando como eu seria capaz de cuidar de uma filha

[/g1_quote]

O abismo educacional entre as duas fez de Carilissa uma grande professora não só para os alunos da UFSM, mas também dentro de casa. “Ela perdeu muito conteúdo durante a vida escolar. Nos tempos das eleições, não sabia que o Brasil já teve ditadura, por exemplo, Eu expliquei toda a história”. A cada novo aprendizado, uma vitória para ambas.

Carilissa, aliás, está acostumada com conquistas. Uma delas foi ter, por meio da sua militância, o Festival de Cinema de Gramado com legendas e abertura com intérprete. Em sua cidade natal, lutou e conseguiu a aprovação de uma lei que obriga legendas nos cinemas e intérpretes de libras nos teatros. Na pandemia, trava outra batalha: as milhares de lives sem legendas ou janelas de intérpretes. “Quando têm, são pequenas demais, não conseguimos ver ou ler. Legendas garantem a acessibilidade. Eu luto por isso”.

Abro um parágrafo para relatar como conheci Carilissa. Há exatamente um ano, também véspera do Dia dos Namorados, eu publicava um teaser da segunda temporada da série “LGBT+60” (sobre casais idosos) nas redes sociais do #Colabora. Toda a série LGBT+60  estava legendada, apenas o teaser não. Descuido que não passou despercebido pela gaúcha, que chamou atenção no post. Um aprendizado para os próximos trabalhos e, ao mesmo tempo, um convite para que essa nova história fosse contada.

Mais: Uma carta de orgulho para a criança que sente vergonha

Votos de casamento em libras fizeram muita gente se emocionar: pais de Helenne não foram, mas tios (ao fundo) compareceram e não seguraram as lágrimas (Foto: José Zignani)

‘Eu nasci empoderada’

Dentro da comunidade surda, Carilissa encontra não só a sua identidade linguística mas também o respeito genuíno pela orientação sexual. “Já estamos habituados a lidar com exclusão e preconceito em nossas vidas. Queremos todos os surdos juntos, sem se importar com as diferenças”, diz. Mas fora do ambiente, o cenário muda. “Sou mulher, homossexual e surda. As pessoas sempre me perguntam qual preconceito sofro mais. E eu respondo que é pelo último motivo. Mesmo com bons cursos, passei muitos anos procurando emprego e nunca conseguia. Quando a Sofia nasceu, senti o preconceito mais próximo porque os médicos não falavam comigo, eles falavam com minha mãe ou irmã. Pessoas ficavam me olhando e me perguntando como eu seria capaz de cuidar de uma filha”.

A fala de Carilissa revela a face cruel do preconceito estrutural da nossa sociedade para com pessoas com deficiência. Diante das barreiras, ao invés do choro ela diz mostrar suas capacidades, como forma de provocar a mudança. Força que vem do apoio familiar que sempre teve, ou, quem sabe, antes disso. “Na verdade não lembro qual o exato momento que surgiu o meu empoderamento, eu nasci já empoderada. E como o nosso amor é intenso e temos uma cumplicidade muito profunda, a gente empodera muitas pessoas”.

Mais: O orgulho e a emoção nas falas das pessoas LGBT+

De Carilissa para Helenne

“A Helenne me completa, me entende e me apoia através dos sentimentos e olhares. É uma mulher de coragem e autêntica, vê as coisas de uma forma bem simples e leve sem desabar. Uma guerreira, que passou por cima das dificuldades e dos sofrimentos e conseguiu se tornar uma mulher feliz, sem feridas. Ela representa o amor que eu amo viver”.

De Helenne para Carilissa

“Carilissa, minha mulher, é muito forte e poderosa, sempre pronta para tudo. Um modelo para mim e tenho orgulho da minha esposa. Me deu dois presentes, ela e Sofia. Com a Carilissa eu compreendi o que é família. Eu agradeço muito o destino pela nossa união linda”.

Nós também agradecemos!

Yuri Alves Fernandes

Jornalista e roteirista do #Colabora especializado em pautas sobre Diversidade. Autor da série “LGBT+60: Corpos que Resistem”, vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco e do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+. Fez parte da equipe ganhadora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com a série “Sem direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. É coordenador de jornalismo do Canal Reload e diretor do podcast "DáUmReload", da Amazon Music. Já passou pelas redações do EGO, Bom Dia Brasil e do Fantástico. Por meio da comunicação humanizada, busca ecoar vozes de minorias sociais, sobretudo, da comunidade LGBT+.

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile