Repúdio a PL do Aborto reúne mulheres de diferentes perfis e trajetórias

Mulheres n Câmara dos Deputados para exigir arquivamento do PL do aborto: repúdio a projeto une diferentes vozes femininas (Foto: Juliana Duarte / Movimento Criança não é Mãe)

Centenas de ativistas pelos direitos femininos tomam Câmara dos Deputados para pedir arquivamento do PL 1904/2024

Por Daniela Schubnel | ODS 10ODS 5 • Publicada em 20 de junho de 2024 - 10:25 • Atualizada em 25 de junho de 2024 - 09:31

Mulheres n Câmara dos Deputados para exigir arquivamento do PL do aborto: repúdio a projeto une diferentes vozes femininas (Foto: Juliana Duarte / Movimento Criança não é Mãe)

A reação ao Projeto de Lei 1904/2024 – o PL do aborto ou PL do estupro – foi mais rápida do que os parcos 23 segundos que os deputados federais levaram para aprovar sua tramitação em regime de urgência, na semana passada. Depois das primeiras manifestações, já a partir do dia seguinte, em várias capitais do país, os protestos chegaram ao Congresso Nacional nesta quarta-feira (19). O Movimento “Criança não é mãe! Brasília/DF”, formado por mais de 20 grupos, entre coletivos feministas, parlamentares, sindicatos, associações de classe, ativistas de direitos humanos, artistas e religiosos, levou aproximadamente 800 pessoas à Câmara dos Deputados pedindo o arquivamento do projeto.

Leu essa? #PL1904/2024: Nunca foi pela vida, é pelo estuprador

O movimento surgiu a partir da revolta de uma educadora e sua comunidade escolar – pais, mães e professores que em apenas dois dias mobilizaram mais de 400 pessoas para organizar o protesto, além de obter o apoio de parlamentares e outros setores da sociedade. “Quando ainda morava no Rio eu pensava que, se estivesse em Brasília, invadiria o Congresso todos os dias. Hoje, me sinto até negligente, acho que estamos invadindo pouco aquele lugar, que é nosso”, afirma Leticia Araújo, 48 anos, educadora fluminense radicada em Brasília e fundadora da Escola da Árvore, instituição de ensino de viés “construtivista e freiriano”, e idealizadora do movimento.

Muito nos espanta quando essa Casa não dá caráter de urgência para projetos que se propõem a cuidar da infância e da adolescência. Então a gente vem aqui não para repudiar, mas para exigir que esse PL seja arquivado. E que deputados aprovem projetos de fortalecimento do SUAS, dos CRAS, que deixem as portas abertas dos hospitais brasileiros para quando houver suspeita de criança ou adolescente que sofreu abuso sexual

Letícia Araújo
Educadora e pedagoga, nascida no Rio e radicada em Brasília

Nascida em Petrópolis (RJ), pedagoga e mestre em Educação pela Universidade de Brasília (UnB), Leticia foi diretora de Ciep, no Rio, trabalhou no Sistema S ao chegar no Distrito Federal, mas só se realizou criando sua própria escola, onde pode aplicar o método educacional em que acredita: o de Paulo Freire. “Não se trata de método de alfabetização, é um princípio de vida. O mundo não é, está sendo!”, diz, citando o educador.

Seu trabalho é voltado para fazer da escola – que começou com três alunos, entre eles seu filho e um bolsista – “locus da transformação social”. A instituição é sem fins lucrativos, conta com 48% de alunos bolsistas e ainda assim tem lista de espera. Com 50% dos funcionários negros, é, segundo Leticia, a “mais plural de Brasília”, onde carros de luxo cruzam o mesmo caminho que malabares e empregadas domésticas para levar seus filhos à escola.

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Para chegar à transformação que deseja, enfatiza os conceitos natureza, política e diversidade. A preocupação com as mudanças climáticas é primordial em sua pedagogia e foi ela que a levou a “invadir”, em suas palavras, o Congresso Nacional em 2019, acompanhada pelos alunos. “As crianças estavam deprimidas ouvindo que a Amazônia estava queimando, preocupadas com a falta de água. Então fizemos um ato ‘SOS Amazônia’ e deixamos uma carta no gabinete do então presidente Rodrigo Maia”, conta.

Letícia Araújo, nascida em Petrópolis, radicada em Brasília, educadora e idealizadora do movimento: mulheres exigem arquivamento do projeto (Foto: Arquivo Pessoal)
Letícia Araújo, nascida em Petrópolis, radicada em Brasília, educadora e idealizadora do movimento: mulheres exigem arquivamento do projeto (Foto: Arquivo Pessoal)

Criança não é mãe

Com a adesão da deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP), a mobilização se espalhou pelo Congresso Nacional, onde diversos partidos políticos já se posicionavam contra o PL do aborto, e logo ganhou os demais segmentos. O grupo se reuniu, dividiu tarefas e, em três dias, criou identidade visual, redigiu a Carta-Manifesto “Pela vida e pelo futuro das meninas e mulheres do Brasil”, e cuidou da logística do ato, que contou com carro de som, distribuição de lenços e da carta, e venda de camisetas com a arte criada pela artista e fotógrafa Juliana Duarte: sobre fundo verde, uma menina num balanço e a frase “Criança não é mãe”.

“Eles mexeram com algo que é muito caro para nós, de uma forma acintosa, desrespeitosa e brutal. Estávamos caladas, sem conseguir dialogar com a classe média, mas parece que agora voltamos. A realidade é que elegemos o Lula, mas não elegemos um Congresso à altura do Lula”, reflete a maranhense Cláudia Regina Vieira Lima, 58 anos, bibliotecária e educadora, funcionária da Liderança do PT na Câmara e integrante da Frente Nacional pela Legalização do Aborto.

Fora, escória, os nossos corpos são nossos! Eles atiçaram o formigueiro, agora que segurem as ferroadas, pois as nossas são cheias de democracia, coragem, cores e amores! E chega de dores, queremos esse Brasil de volta para nós e nossas crianças.

Claudia Regina Vieira Lima
Maranhense, bibliotecária e educadora

Outra liderança do movimento é a gaúcha Dirnamara Guimarães, de 58 anos, integrante do coletivo BordaLuta, que surgiu em 2016, durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, formado por bordadeiras que começaram a se reunir para protestar, na Praça dos Três Poderes. Sentadas em suas cadeiras, elas bordavam palavras de ordem progressistas em lenços, bottons e painéis. O movimento cresceu e se espalhou pelo Brasil, com presença marcante nas eleições de 2018 e 2022, na vigília durante a prisão do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Curitiba, e durante a pandemia.

“Começamos com a necessidade de nos expressar artisticamente, até como uma forma de terapia para passar por aquele momento, e hoje estamos presentes em todos os protestos e atividades de luta, acolhendo, conversando, ensinando a bordar, oferecendo formação política, encaminhando para a geração de renda”, conta Dirna, como é conhecida entre as ativistas, que é filósofa, artista visual e tecelã.

Claudia Regina, maranhense e bibliotecária, discursa em frente à Câmara: “Pisa ligeiro, pisa ligeiro; quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro” (Foto; Arquivo Pessoal)

Sem negociação: arquivamento já!

O movimento é unânime em rejeitar qualquer proposta de negociação e pede o arquivamento do PL do aborto. “Pisa ligeiro, pisa ligeiro; quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro”, avisava Cláudia Regina, ao puxar o ato na entrada do Anexo II, onde aconteceu a concentração. Indignada, ela afirmou que quem defende a infância no Brasil são as mulheres, e não “eles”, os deputados apoiadores do projeto. Assim como também são as mulheres quem devem decidir sobre seus corpos, e “não homens brancos, hipócritas, conservadores, que pagam clínicas muito bem equipadas para suas amantes e filhas abortarem”.

É importante trazermos para o debate questões como a normalização da violência contra mulheres e crianças, avançar na questão do aborto, do útero laico e de nenhum direito a menos, e pressionar esse Congresso formado por homens brancos, fundamentalistas, do agronegócio e representantes de um sistema baseado no capitalismo e no individualismo, que busca o lucro a qualquer custo

Dirnamara Guimarães
Gaúcha, bordadeira, filósofa e artista visual

Nascida em Morros, cidade a 100 km de São Luís que é porta de entrada para os Lençóis Maranhenses, e mãe de duas filhas adultas, Cláudia chegou a Brasília já professora e educadora popular formada pelo Movimento de Educação de Base (MEB). Tornou-se bibliotecária, passou no concurso para a Câmara e hoje soma especializações em áreas como Recursos Humanos e Legislativo e Políticas Públicas, e cursa Mestrado em Poder Legislativo oferecido pela própria Câmara.

Divide seu tempo entre o trabalho na Liderança, a coordenação do Núcleo de Base Marisa Letícia, no Congresso Nacional, e o acolhimento às mulheres assistidas na Casa Nação Zumbi, em São Sebastião, uma das áreas mais carentes do Distrito Federal, onde é educadora popular. A grande maioria chega lá com várias carências, materiais, afetivas, e muitas são vítimas de violência doméstica, conta.

É dessa experiência que tira sua indignação com a possibilidade de o PL do aborto ir à votação: “Fora, escória, os nossos corpos são nossos! Eles atiçaram o formigueiro, agora que segurem as ferroadas, pois as nossas são cheias de democracia, coragem, cores e amores! E chega de dores, queremos esse Brasil de volta para nós e nossas crianças. Chega de falsa moral, nós estamos aqui para resistir e dizer: ‘Arquiva já, o PL do estuprador!’”.

A gaúcha Dirnamara, bordadeira e filósofa, na manifestação contra o PL do aborto: diversidade na mobilização (Foto: Juliana Duarte / Movimento Criança não é Mãe)

Útero laico

Gaúcha que chegou a Brasília com 10 anos, Dirnamara se formou em Filosofia e trabalhou como analista legislativa da Câmara dos Deputados, por onde se aposentou. Era da equipe que produzia a redação final das leis aprovadas, e conheceu a fundo os bastidores da política. Para Dirna, esse avanço da extrema-direita pode ter sido um tiro no pé, pois tocou em assunto muito caro para a sociedade: a proteção das crianças.

“É importante trazermos para o debate questões como a normalização da violência contra mulheres e crianças, avançar na questão do aborto, do útero laico e de nenhum direito a menos, e pressionar esse Congresso formado por homens brancos, fundamentalistas, do agronegócio e representantes de um sistema baseado no capitalismo e no individualismo, que busca o lucro a qualquer custo”, afirma.

Segundo Dirna, o BordaLuta vai onde houver uma luta, um protesto, um direito a ser conquistado. As atividades são multidisciplinares e incluem o acolhimento das participantes. “Onde estão precisando de uma palavra, um abraço, a gente vai”, conta. Além da presença maciça nas grandes manifestações, o coletivo também realiza trabalhos em escolas e universidades, com grupos como comunidades quilombolas e pessoas em situação de rua. “A esquerda perdeu esse espaço de acolhimento, que acontecia nos partidos, nos sindicatos, nas associações, onde as pessoas conversavam. Esses espaços não existem mais, e a gente precisa se manter mobilizada. Se a gente não está, eles estão”, alerta.

Manifestação reunindo diversas organizações na Câmara: grupo protocolou o requerimento que pede o arquivamento do PL em duas comissões (Foto: Juliana Duarte / Movimento Criança não é Mãe)

Protesto e entrega de requerimento

O PL 1904/2024 ficou conhecido como PL do estupro por criminalizar o aborto realizado a partir da 22ª semana de gestação, inclusive nos casos já previstos em lei, com penas de até 20 anos de prisão para as mulheres que o praticarem – maior do que a prevista para o próprio estuprador. De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), é tido como moeda de troca na negociação por apoio da bancada evangélica ao nome indicado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), à sua sucessão. Encurralado pela reação da sociedade, sejam manifestações nas ruas ou nas redes sociais, e por parecer técnico da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que considera o PL inconstitucional, Lira já recuou da urgência e admitiu que o projeto só deverá ser votado depois das eleições municipais.

Dividido entre a área externa do Anexo II da Câmara e os corredores das comissões, o ato contou com apresentações artísticas, leitura do manifesto, discursos e palavras de ordem. Tudo isso sob forte reação dos apoiadores do projeto: parlamentares que gritaram e debocharam dos manifestantes.

Impedido de entrar no Salão Verde da Câmara, o grupo conseguiu protocolar o requerimento que pede o arquivamento do PL do aborto em duas comissões: Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial (CDHMIR) e de Legislação Participativa (CLP). A de Defesa dos Direitos da Mulher (CDDM), outro destino do pedido, não teve quórum para funcionar. Suas integrantes estavam em almoço oferecido pelo presidente da Casa, em mais uma manobra para esvaziar a reação.

“Muito nos espanta quando essa Casa não dá caráter de urgência para projetos que se propõem a cuidar da infância e da adolescência. Então a gente vem aqui não para repudiar, mas para exigir que esse PL seja arquivado. E que deputados aprovem projetos de fortalecimento do SUAS, dos CRAS, que deixem as portas abertas dos hospitais brasileiros para quando houver suspeita de criança ou adolescente que sofreu abuso sexual”, afirmou Leticia, na audiência da CLP.

Na linha de frente, apoiando o movimento, estiveram os parlamentares Sâmia Bomfim e seu marido, Glauber Braga (PSOL-RJ), Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), Erika Hilton (PSOL-SP), Erika Kokay (PT-DF), Fernanda Melchionna (PSOL-RS), e Chico Alencar (PSOL-RJ), entre outros.

Participam ainda do Movimento Criança Não é Mãe – Brasília/DF: Articulação de Mulheres Brasileiras, Fórum Revolucionário Antimanicomial, Marcha Mundial de Mulheres e Associação Batalá de Percussão. Também fazem parte associações de classe como o Conselho Regional de Psicologia, Central Única dos Trabalhadores, Núcleo de Base do PT e Conselho Comunitário de Segurança Pública de Taguatinga, e religiosas como as Evangélicas Progressistas, Espíritas à Esquerda e Católicas pelo Direito de Abortar.

Daniela Schubnel

Jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), cursou Relações Internacionais na Universidade de Birmingham, no Reino Unido. Em redações, se especializou na cobertura política com passagens em O Dia e Jornal do Brasil. Carioca do subúrbio com sede de mundo, fez estágio na ONU, em Nova Iorque, estudou Civilização Francesa na Sorbonne, em Paris, mas fincou pé em Brasília, onde morou 16 anos e foi assessora de imprensa de diversos órgãos de Executivo, Legislativo e Sistema S. Acha que para o mundo ter jeito, só mesmo com muita dança – além do bom e velho jornalismo, é claro.

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