Para começar a digitar as primeiras letras do texto que vocês leem agora, levei alguns minutos. Muito mais do que 23 segundos. Vinte e três exatos segundos foi o tempo que o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, levou para aprovar o regime de urgência do PL 1904, apelidado na internet de muitas coisas, mas que na prática, sem dourar a pílula, é um projeto de lei que persegue meninas e mulheres vítimas de estupro, ao mesmo tempo em que dá a estupradores o direito à paternidade. Em 23 segundos, é impossível que a totalidade de parlamentares presentes no dia da votação tenham conseguido apreciar a matéria. A urgência atribuída ao PL foi votada na surdina, de emboscada, confirmando a “materialização jurídica do ódio” contra meninas e mulheres, como bem pontuou o ministro dos Direitos Humanos Silvio de Almeida.
Leu essa? Para quem queria desenhado: ‘todo homem é um estuprador em potencial’
Tornou-se um clichê dizer que falar de aborto é uma pauta polêmica. Historicamente, entre posicionamentos a favor e contra, sempre se encontrou um consenso contrariado, dos dois lados, no fato de que o aborto no Brasil é considerado legal em caso de risco de morte à pessoa gestante, em caso de estupro, e em caso de anencefalia do feto (má formação cerebral). Mas agora a extrema direita, com justificativas mentirosas que pendem entre a “vida” e o discurso religioso, quer equiparar também estes casos ao homicídio, com pena que pode chegar a 20 anos para quem abortar. Ou seja: se uma mulher for estuprada e abortar, ela pode amargar por duas décadas na prisão, enquanto a pena para o estuprador é de, no máximo, dez anos. Não existe meio-termo: é exatamente o mesmo que dizer que a vida de um estuprador vale mais do que a de uma mulher estuprada. Isso sem nem mencionar o fato, queiram ou não, de que homens trans engravidam, sob risco de um piti histérico de setores que negam a realidade como ela é.
Clique aqui e siga o canal do Whatsapp do #Colabora
No fim das contas, é pela vida de quem?
Receba as colunas de Júlia Pessôa no seu e-mail
Veja o que já enviamosDefensores deste acinte têm dito, pela internet e a vida afora, que os direitos das mulheres não foram violados, porque o aborto continua sendo legal, nos casos previstos por lei, até as 22 semanas de gestação. Mas além de estar ciente de que está grávida, a vítima precisa provar que foi estuprada. Precisa passar por perícias e exames de corpo de delito que são mais uma violência, depois de serem provavelmente ridicularizadas ao fazerem uma denúncia – formal e informal. Precisa responder onde aconteceu, por que estava naquele lugar àquela hora, quantos parceiros sexuais ela tem, se tinha bebido, se tem exames toxicológicos que comprovam seu estado, se bebeu por vontade própria, por que estava vestindo o que vestiu, se conhecia o estuprador, se não “resolveu dar e se arrependeu”, se não foi só um desentendimento com o parceiro/namorado/marido/ficante/insira aqui qualquer homem… A lista para desqualificar uma vítima é infinita.
Não me esqueço das primeiras palavras da mulher que foi estuprada pelo jogador Daniel Alves ao saber da condenação dele: “Eles acreditaram em mim.” O crime ocorreu em dezembro de 2022. Daniel foi condenado em fevereiro deste ano e já está solto, no semiaberto. Se o caso tivesse sido julgado no Brasil que o PL1904 quer instituir e a vítima tivesse engravidado e abortado, ainda estaria presa.
Muito da mobilização contra o PL 1904 tem sido feita, e de fato é um ponto sensibilíssimo, com base no fato de que no Brasil, a cada hora, são feitas seis denúncias de casos de estupro de vulnerável, isto é, menores de 14 anos. São 56 mil denúncias por ano, sendo 75% meninas. É óbvio que precisamos amparar e proteger essas crianças com olhar prioritário, mas é desolador que seja necessário usar um dado cruel como manobra retórica, como se a vida de mulheres não importasse. Como se ao completarmos 14 anos, perdêssemos o direito inalienável e sem questionamentos à Justiça e à integridade, porque sempre poderá caber um “porém”. Afinal, “mulheres” sabem “muito bem” o que estão fazendo quando “provocam” meninos de “apenas” 40 anos, incapazes de controlar seu instinto por dominação de corpos femininos. (Porque estupro não é sobre sexo, é sobre violência, sobre poder).
Nunca conseguimos avançar na discussão sobre direitos e reprodutivos no Brasil, como se ela fosse secundária. Agora precisamos, para ontem, evitar perder o direito ao aborto nos casos em que ele já era garantido, arriscando a vida de mulheres e meninas em risco, sobretudo as que vivem em alguma situação de vulnerabilidade. E no espírito de não deixar a discussão para depois em nome do que é mais urgente, é preciso dizer que a ideia misógina e fantasiosa de que já existe aborto seguro para mulheres brancas e ricas é uma falácia do partriarcado.
É óbvio que as opressões e perdas de direito têm um impacto mais contundente em mulheres vulnerabilizadas. Mas, enquanto o aborto for criminalizado, não existe interrupção de gestação segura para quem quer que seja, e a ideia de que madames entram em clínicas clandestinas sanitizadas, modernas e seguras, e mexem no celular enquanto aguardam seus abortos na sala de espera é um delírio machista e descolado da realidade. E, antes que eu me esqueça, não importa o que qualquer religião diga sobre o aborto – ou sobre qualquer direito garantido ou retirado pelo Estado. O Estado é laico (infelizmente não na prática, embora devesse).
A parcela da sociedade que defende a aprovação do PL 1904, que institucionaliza mais um mecanismo de barbárie de gênero, é exatamente a mesma parcela que larga mães solo à mercê da própria sorte. É a mesma turma que chama o Bolsa Família de esmola e, para ser honesta, se opõe a qualquer tipo de benefício que busque a justiça social. O mesmo povo que não tem a menor empatia com mães que sofrem perda gestacional e, não raramente, têm os fetos incinerados como lixo hospitalar: “daqui a pouco vem outro”. O artifício de chamar a defesa do PL 1904 como uma luta “pela vida” é de uma sordidez sem tamanho. Cola, porque afinal de contas, quem é “contra a vida”? É como militar “contra o câncer”, quem seria a favor?
Por fim, é estarrecedor que tenhamos que levantar a voz para evitar a perda de direitos, e não para alargar os que já foram conquistados. O que está em jogo nesta matéria não é uma luta pela vida, afinal o número de mortes de mulheres e meninas só tende a aumentar. Não existe outra possibilidade: defender o PL 1904 é ser conivente com estupradores e culpabilizar vítimas de estupro. Sem meias palavras.