“Punhetaço” é a metáfora (?) de um mundo que não pretende cuidar das mulheres

Masturbação coletiva de estudantes de Medicina de universidade paulista em jogo feminino de vôlei provoca asco e revolta

Por Júlia Pessôa | ODS 5 • Publicada em 19 de setembro de 2023 - 08:23 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 16:55

Vídeo mostra masturbação coletiva de alunos de Medicina: para Júlia Pessôa, o “punhetaço” é um filho lamentavelmente saudável de uma sociedade patriarcal e misógina

O que o futuro pode oferecer às mulheres? Escrevo e volto com o cursor apagando tudo incontáveis vezes tentando responder à pergunta. Penso em conquistas históricas do feminismo branco, mesmo reconhecendo que o movimento deixou outras mulheres à margem. Penso na verdade inabalável de Angela Davis, ao afirmar que toda sociedade se movimenta quando uma mulher negra o faz. No recente protagonismo de mulheres indígenas na política partidária. Na vitória de toda mulher trans que chega ao fim de mais um dia. Penso em tantas mulheres, famosas e anônimas, da política e da minha vida, que vêm construindo um futuro melhor há tantas gerações, que não arrisco citar nomes sob o risco de ser injusta.

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Mas é difícil me permitir escrever sobre o futuro de mulheres quando não existe lugar seguro para mulheres e meninas em qualquer canto do mundo. O vídeo do inadmissível “punhetaço” de estudantes de medicina da Universidade de Santo Amaro (SP) é uma lamentável prova disso. As imagens que viralizaram no último semana e provocaram revolta e asco nas redes sociais, mostram os alunos, todos homens, realizando um ato de masturbação coletiva durante um jogo de vôlei – obviamente um jogo de vôlei feminino. É assombroso que um crime de importunação sexual aconteça num ambiente universitário normalizado como “brincadeira”, e só venha a conhecimento público devido ao vazamento de um vídeo.

Gostaria de poder dizer que um caso como este é sinal de uma sociedade adoecida, mas todas as evidências apontam o contrário: o “punhetaço” é um filho lamentavelmente saudável de uma sociedade patriarcal e misógina. E muito diferentemente do que o senso comum tenta nos fazer acreditar, não se trata de “monstros” exibindo seus pênis a mulheres. Foram homens comuns, como a maioria dos abusadores sexuais é: irmãos, filhos, namorados, colegas, amigos com que convivemos diariamente. “Os monstros existem, mas eles são muito pouco numerosos para serem realmente perigosos; os mais perigosos são os homens comuns”, disse Primo Levi, um dos mais importantes pesquisadores do nazismo. No nazismo e na misoginia, o monstro mais temível está logo ao lado.

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Mas o que faz com que um bando de homens feitos saque seus pênis em um local público, visivelmente intimidando mulheres? Somente a certeza de impunidade e um senso comum pronto para pegar marmanjos no colo e justificar que “foi só uma brincadeira de meninos”. Não pode ser brincadeira algo que é tipificado por lei como crime, e que torna um ambiente de esporte e educação (mais) um lugar em que mulheres sentem medo. Não tem graça que o futuro da saúde das mulheres e meninas – e de qualquer pessoa, na verdade! – possa estar nas mãos de homens capazes de praticar um abuso de poder tão violento, e a troco de nada. Não é à toa que estamos no país em que um médico anestesista estuprou uma paciente grávida anestesiada em plena mesa de cirurgia. Como esperar que algo assim não volte a acontecer, se a medicina depender das mesmas mãos que tocaram o “punhetaço”.

Abuso sexual não é sexo. É violência e demonstração de poder. E, em casos como estes, quer mostrar à sociedade quem é que pode fazer o que bem entende, às custas de quem seja. A resposta, invariavelmente, é: homens brancos e privilegiados.

Nem nas ruas, nem no transporte público, nem em casa, nem no trabalho, nem na mesa de cirurgia, nem na universidade. Onde e quando estaremos seguras?

A resposta, invariavelmente, tem sido “nunca”, e “em lugar algum”.

O “punhetaço” é uma triste e dolorida metáfora (?) de um mundo que não cuida ou dá sinais de que pretende cuidar das mulheres.

Júlia Pessôa

Júlia Pessôa é jornalista, mestra em comunicação, especialista em gêneros e sexualidades e doutoranda em ciências sociais. Atuou no jornalismo diário por mais de dez anos, cobrindo principalmente cultura, gastronomia, gêneros, sexualidades e direitos humanos. Tem experiência de docência no ensino superior público e privado, no qual atua até hoje. É autora do livro de crônicas “Heteronímia” (2017), publicado pela Lei Murilo Mendes de Incentivo à Cultura (Juiz de Fora- MG) e tem publicações em veículos como UOL Tab, BBC Brasil e O Globo. Inexoravelmente feminista.

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