O que é preciso para ser pai? Em uma sociedade patriarcal e conservadora como a brasileira, a figura paterna é muitas vezes relacionada com um estereótipo de força e heteronormatividade. Dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) mostram que, desde 2016, 1.414.847 de crianças nascidas no Brasil foram registradas sem o nome do pai. Em direção oposta aos tabus e às estatísticas, pais gays, trans e atípicos dão exemplo do amor que nasce em paternidades diversas.
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Em alusão à data em que se celebra “Dia dos Pais” no Brasil, o #Colabora reúne histórias de paternidades diversas. São relatos de casais homoafetivos que optaram pela adoção ou por uma gestação com uma barriga solidária, de um pai trans que também é mãe e de um pai atípico que, ao contrário da maioria dos homens, participa de forma ativa do cuidado de seu filho autista.
Lucas e Carlos: pais de três
Carlos Henrique Ruiz e Lucas Rabello Monteiro estão juntos desde 2009. Em 2019, eles formalizaram sua união estável como uma forma de ficar mais perto de um sonho: adotar duas crianças. Após passar por capacitações e por um processo burocrático, eles receberam a informação de três irmãos que poderiam ser adotados. Foi quando decidiram abrir espaço para mais um filho e, pouco mais de um ano depois de iniciar o processo, em julho de 2020, eles conheceram os três irmãos.
Na época da adoção, o mais velho Kawã tinha 12 anos, Edgar 9 anos e Ketlin 5 anos. “Veio um pacote completo e foi bem desafiador”, comenta Carlos. No primeiro encontro, ainda na casa de acolhida, eles já foram chamados de pais. “Era pai Lucas, pai Carlos e dali em diante, a ficha começou a cair”, descreve Lucas. O processo só foi finalizado de forma definitiva em 2022, quando o nome do casal foi incluído na certidão do trio.
Lucas e Carlos recordam de problemas que tiveram de ser encarados logo de cara, como o contexto de pandemia e o atraso na alfabetização dos dois meninos. “Para eles não fazia sentido aprender a fazer contas ou a ler, então foi também um processo de eles entenderem a importância disso”, explica Lucas. Além do próprio tabu da adoção de crianças mais velhas e de serem um casal homoafetivo, eles também tiveram de lidar com a questão racial pelos filhos serem negros.
O casal pontua que a adoção acontece tanto do lado dos pais quanto dos filhos, além de ser uma dinâmica essencial de qualquer relação. “As pessoas normalizaram tanto a questão sanguínea, como se fosse algo tão automático, que perdem essa noção de que todo mundo precisa ser adotado”, enfatiza Carlos. Outra das preocupações do casal é não romantizar o processo de adoção, justamente, por se tratar de uma construção diária.
É ao falar sobre o cotidiano da família que Carlos e Lucas enxergam um dos elementos mais marcantes da paternidade. “Os três conseguem ter sonhos. Eles já pensam já não só em questão profissional, mas como pessoa, no que eles querem e para onde eles vão”, afirma Lucas. Sobre essa trajetória, Carlos menciona o fortalecimento da identidade dos três, o que aparece na valorização do cabelo black e em ter referências de pessoas negras.
Pai trans e mãe também
“Mãe, acho que tu parece mais com menino. E eu respondi para ela que era isso”, conta Noah Scheffel, 38 anos. Morador de Porto Alegre (RS), ele combina as tarefas de cuidado da paternidade e da maternidade. Em 2013, antes de sua transição de gênero, ele deu à luz à sua primeira filha, Anita. Por conta do receio e dos preconceitos, Noah fez a transição de gênero só aos 30 anos, quando Anita estava com 3 anos de idade. “Tive muito medo da reação dela, de não entender, e também de perder a guarda compartilhada com o pai dela”, relembra.
Apesar do medo, a filha não só compreendeu rápido como ajudou a escolher o seu nome. “A reação dela foi me responder o seguinte: ‘se tu é um menino, precisa de um nome de menino, qual teria sido o meu nome de menino?’, explica Noah. Depois, em 2018, ele decidiu registrar Helena, filha da sua esposa. “Me vi muito na história dela por não ter registro de pai na certidão de nascimento, criei um vínculo muito forte com a Helena desde o início da relação com a minha esposa”, complementa o pai e mãe Noah.
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Veja o que já enviamosPor ser trans, negro e autista, Noah também enfrenta preconceitos em diferentes dimensões. Segundo ele, é quase um bingo do preconceito por conta de suas identidades. “Já passei por situações de racismo. Precisei apresentar documento ao estar com a minha filha mais velha, e passar por transfobia, ao ter de explicar que sou mãe dela”, relata.
Para o analista de tecnologia da informação e fundador do projeto EducaTRANSforma, a parentalidade deveria ser associada com funções de cuidado e de carinho e de afeto, independente do gênero. “Quando se trata de parentalidades trans, a gente vê muitos pais trans assumindo papéis de responsabilidade total em separações”, comenta Noah, sobre o desequilíbrio nas tarefas de cuidado em famílias com casais cisgêneros e heterossexuais.
O processo de transição de gênero de Noah, porém, foi marcado pela transfobia no mercado de trabalho, o que o levou a desenvolver quadros de ansiedade e depressão. Foi isso que o levou a fundar a EducaTRANSforma, com foco na formação e empregabilidade de pessoas trans. Em 2024, o projeto lançou uma plataforma para conectar talentos trans a vagas e oportunidades.
Os dois pais da Antonella
Converso por videoconferência com Jarbas Mielke Bitencourt, enquanto isso Mikael Mielke Bitencourt cuida da Antonella, filha do casal homoafetivo gaúcho. Nascida em 17 de maio de 2024, mesmo dia dedicado ao combate à lgbtfobia, Antonella possui os genes dos seus dois pais, a partir de um processo de barriga solidária, processo de reprodução assistida em que uma mulher recebe de forma voluntária um embrião gerado em laboratório.
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Casados há quase 17 anos, o casal conta viver um momento mágico com a paternidade. “A gente se emociona com qualquer coisa”, explica Jarbas, ao falar também sobre os desafios e medos comuns à primeira experiência como pais, como ter de levar Antonella ao hospital para tratar de uma bronquiolite aos quatro meses. Apesar disso, eles já pensam em ter um segundo filho em breve.
Um dos momentos mais marcantes para o casal aconteceu no aniversário de 1 ano de Antonella, quando ela entrou caminhando ao lado dos dois pais. “Outro momento muito marcante também, acho que é em todos os casais, é quando ela chamou os papais pela primeira vez”, descreve Jarbas.
O casal também trabalha em prol da naturalidade do amor homoafetivo e das paternidades diversas, seja por meio da adoção em de processos como a barriga solidária. Ao falar sobre isso, Jarbas cita o exemplo das crianças em situação de acolhimento institucional. “Não existem filhos de gays na casa de passagem para adoção. Pelo contrário, são os gays que vão lá adotar”.
Ao dividir a experiência com a paternidade nas redes sociais, Jarbas revela que eles também sentem o peso do preconceito, especialmente, por se tratar de uma bebê menina com dois pais. Sobre isso, Jarbas destaca que mais que figuras femininas ou masculinas, o mais importante no desenvolvimento de uma pessoa é o amor e o cuidado. “Tenho muita certeza que Antonella chegou nas nossas vidas para nos ensinar muitas coisas. Não só para mim e para o papai Jarbas, mas para a sociedade”, comenta Mikael, com a filha no colo.
Paternidade atípica
Thiago Almeida mora em Mauá, cidade do ABC paulista, e trabalha como educador social, principalmente na área de saúde mental. Ele é pai de três crianças, Gabriel, 10 anos, Mariano, 7 anos, e Elis, 5 anos. Apesar de sua experiência profissional, Thiago conta que o diagnóstico de Mariano como autista, com nível de suporte dois, não foi simples, primeiro, por ter acontecido em meio à pandemia de Covid-19, e segundo, por se tratar de uma deficiência oculta.
Segundo o pai atípico (termo usado para pais de crianças autistas), o maior desafio é a acessibilidade atitudinal. “Para a pessoa autista, a acessibilidade está nas pessoas, no afeto e na condução”, pontua. A partir da necessidade de buscar mais conhecimento sobre o tema e dividir experiências, Thiago ajudou a fundar o Coletivo TEAção para famílias atípicas. A iniciativa reúne cerca de 200 famílias, com troca de informações, capacitações, acolhimento e a defesa dos direitos de pessoas autistas.
Para Thiago, o coletivo é uma maneira de dialogar com outros pais sobre dúvidas frequentes e enfrentar um problema comum também com famílias típicas, o abandono paterno. “Quantos pais, por exemplo, sabem o número de roupas dos filhos? Quantos sabem o peso e a altura dos filhos? Quantos pais vão nas consultas ou nas reuniões escolares?”, questiona o educador social.
Existem poucos dados sobre o abandono paterno de crianças autistas ou com deficiência no Brasil. O número mais divulgado é de pesquisa do Instituto Baresi de 2012 e apontava que 78% dos pais abandonaram as mães de crianças com deficiência e doenças raras antes de os filhos completarem cinco anos. O resultado disso é uma sobrecarga das tarefas de cuidados sobre as mulheres e mães atípicas.
Nesse contexto, Thiago defende políticas públicas e o fortalecimento de redes de apoio para mães e famílias de crianças com deficiência. Já para os pais que abandonam, o caminho citado por ele é a sanção da lei. “Quando eu falo com os pais, percebo que eles têm as mesmas dúvidas que eu tenho ou que tive no começo”, conta o educador social, para quem a conscientização segue como principal alternativa para romper com a imagem de pai como provedor e não como responsável pelo cuidado.