Mulheres LGBT+ são alvo duplo do Talibã

Protesto em Ancara, na Turquia, em apoio aos LBGTs do Afeganistão: comunidade ameaça de morte e mulheres duplamente em risco (Foto: Adem Altan / AFP – 25/08/2021)

Com orientação sexual passível de pena de morte, elas fogem, escondem sexualidade e, muitas vezes, são submetidas a casamentos forçados

Por Nicole Polo | ODS 16ODS 5 • Publicada em 8 de outubro de 2021 - 08:10 • Atualizada em 12 de janeiro de 2022 - 19:49

Protesto em Ancara, na Turquia, em apoio aos LBGTs do Afeganistão: comunidade ameaça de morte e mulheres duplamente em risco (Foto: Adem Altan / AFP – 25/08/2021)

Os direitos das minorias estão em risco com a chegada do Talibã ao poder no Afeganistão. A interpretação radical da Sharia (lei islâmica) feita pelo grupo afeta a pouca liberdade que as mulheres têm no país e aumenta a perseguição à comunidade LGBT+. Nesse cenário, as mulheres LGBT+ são duplamente afetadas pelo novo governo. A fuga do país se torna a melhor opção, como é o caso de Baran, mulher bissexual de 22 anos, que se refugiou no Irã.

Baran nasceu em Cabul e residia na cidade até a tomada do governo feita pelo Talibã, no dia 15 de agosto. Atualmente, ela mora em Teerã, no Irã. Sua saída do país natal foi motivada por ataques de pânico, crises de ansiedade e um histórico de automutilação que se intensificaram nos últimos meses com o avanço do grupo extremista. A jovem afegã vive todos os dias com medo de ser quem é em sua sociedade.

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É horrível e muito triste esconder uma parte importante de quem eu sou. Se eu mostrar esse lado, eu vou perder todos os meus direitos, inclusive, meu direito à vida. Na maior parte do tempo, eu estou chorando por não poder falar sobre minha verdadeira orientação sexual

Isso impossibilita a afegã de realizar qualquer declaração pública a partir de sua identidade verdadeira. Ela expressa no Twitter, através de uma “conta falsa”, sua opinião a respeito de pautas políticas e da violação de direitos, meio pelo qual foi possível entrar em contato com ela e realizar a entrevista. Mas, mesmo com esse espaço, a jovem não acessa com frequência a conta com medo de ser descoberta.

Mesmo com a ida para o Irã, a vida de Baran não sofreu mudanças positivas. Não há diferenças no tratamento dado à comunidade LGBT+ no Irã e no Afeganistão. A jovem continua escondendo sua sexualidade, assim como todos os seus conhecidos LGBT+. “É horrível e muito triste esconder uma parte importante de quem eu sou. Se eu mostrar esse lado, eu vou perder todos os meus direitos, inclusive, meu direito à vida. Na maior parte do tempo, eu estou chorando por não poder falar sobre minha verdadeira orientação sexual. Eu não me sinto corajosa o suficiente”, contou Baran em entrevista por telefone.

Atualmente, a afegã está namorando um rapaz.  O jovem, também afegão, não acredita na bissexualidade dela e trata como se fosse alguma piada. Além do parceiro, a irmã é a única da família que sabe sobre sua verdadeira orientação sexual. No seu círculo de amizades, Baran tem uma única amiga lésbica com a qual pode compartilhar seus medos. “Quando sinto alguma atração por mulheres, normalmente, eu sufoco o que eu sinto. Isso é muito doloroso. Às vezes, eu até tento me aproximar e criar uma amizade, mas, além disso, não há muito a se fazer”, desabafou.

Baran contou que não teve relações amorosas duradouras com outras mulheres. Uma das relações da afegã chegou ao fim por causa do casamento forçado de sua companheira, um problema comum no Afeganistão, que se agravou com a volta do Talibã ao poder. “O Talibã força as garotas a se casarem com os homens do grupo. Há denúncias de sequestros de meninas, principalmente entre 12 e 18 anos. Com isso, as famílias, com receio das garotas mais novas serem levadas pelos extremistas, impõem o casamento com outros rapazes”.

A minha melhor amiga mora lá e é lésbica. Ele se casou com um amigo gay, para não se casar com algum membro do Talibã, porque eles forçam mulheres solteiras a casarem com seus soldados. É difícil para mim saber que ela teve que fazer isso para se manter segura

O casamento forçado afeta, majoritariamente, as meninas com menos de 18 anos no Afeganistão. No país, os homens podem casar legalmente a partir dos 18 anos, enquanto, para as mulheres, a idade mínima é de 16 anos. Mas, mesmo assim, muitos casamentos acontecem antes dessa idade. Segundo pesquisa do TrustLaw, um projeto da Thomson Reuters Foundation, entre 70 a 80% das mulheres afegãs foram forçadas a casar. Ainda de acordo com a Pesquisa Demográfica de Saúde no Afeganistão mais recente, feita em 2015, 45% das afegãs casaram antes dos 18 anos, em contrapartida, somente 11% dos homens casaram tão novos.

Casamentos forçados e risco de morte

Fundador da Afghan LGBT, uma rede de apoio para a comunidade afegã, Artemis Akbary, de 24 anos, conta que tem amigas lésbicas que foram obrigadas a se casar: muitas delas ainda tiveram filhos vindos de relações sexuais não necessariamente desejadas. “Eu tenho muitos amigos gays no Afeganistão que foram forçados a se casar com mulheres. Contudo, eu acredito que a imposição do casamento é mais comum entre as mulheres. A minha melhor amiga mora lá e é lésbica. Ele se casou com um amigo gay, para não se casar com algum membro do Talibã, porque eles forçam mulheres solteiras a casarem com seus soldados. É difícil para mim saber que ela teve que fazer isso para se manter segura”, contou Akbary, também produtor e apresentador na Rádio Ranginkaman, que produz conteúdo para a comunidade LGBT+ no Afeganistão e no Irã. Ele está refugiado, desde 2017, na Turquia, onde também funciona sua organização.

Os pais de Akbary são afegãos, mas fugiram do país em 1996, por causa da guerra contra o Talibã. Eles se refugiaram no Irã, onde o rapaz foi criado. Homossexual, ele começou a sofrer preconceito, a partir de suas autodescobertas, e tinha sua liberdade cerceada no território iraniano. Por conta disso, buscou refúgio na Turquia há quatro anos.

Artemis Akbary em Istambul, onde coordena rede de apoio às comunidades LGBT+ no Afeganistão e no Irã: apelo por ajuda contra ameaça do Talibã (Foto: Acervo Pessoal)
Artemis Akbary em Istambul, onde coordena rede de apoio às comunidades LGBT+ no Afeganistão e no Irã: apelo por ajuda contra ameaça do Talibã (Foto: Acervo Pessoal)

Apesar da distância, o jovem afegão mantém contato diário com amigos e conhecidos LGBT+ no Afeganistão. A chegada do Talibã está causando muito receio em todos. A ameaça agora é de morte para todos aqueles que fazem parte da comunidade LGBT+. Akbary relatou que já recebeu denúncias graves de ações contra os LGBT+.

“Uma pessoa em Cabul me contou que conheceu um rapaz pela internet e, quando foram se encontrar pessoalmente, ele era um membro do Talibã, fingindo ser LGBT+, e estava acompanhado de outros soldados. Essa pessoa foi estuprada, ameaçada de ter sua sexualidade revelada para a família e chantageada a realizar as vontades desses soldados sempre que eles quiserem. Um casal de amigos também me contou que três conhecidos LGBT+ foram levados pelo Talibã e estão desaparecidos”, contou.

Akbary explicou que nenhuma instituição a favor dos direitos das pessoas LGBT+ está presente no território afegão, pois, no país, qualquer sexualidade que fuja do padrão heteronormativo é considerado ilegal, passível de punição com pena de morte. A Afghan apoia LGBT+ na Turquia com abrigo, adaptação ao idioma, suporte financeiro e regularização do refúgio: “Tem muitos refugiados aqui que são parte da comunidade LGBT+. Eles não têm acomodação, não sabem a língua turca, não sabem os direitos que têm aqui”, explicou.

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A situação nunca foi fácil para os LGBT+ no Afeganistão. A Constituição do país combina a Sharia com leis desenvolvidas no sistema legislativo afegão. Dentro desse arcabouço legal, a criminalização explícita da relação sexual entre pessoas do mesmo sexo foi inserida no novo Código Penal do país, de 2017. A punição máxima é a pena de morte.

Além disso, é muito comum a “justiça paralela” feita pelos próprios cidadãos, que executam muitos LGBT+, com base em regras morais e religiosas do país, como mostra relatório sobre a homofobia no mundo de 2020 da ILGA, uma organização britânica fundada em 1978 e reconhecida pelas Nações Unidas, que defende os direitos das pessoas LGBT+ ao redor do mundo. A situação da comunidade LGBT+ é de extrema vulnerabilidade, principalmente, com a falta de organizações e redes de apoio.

A situação de desamparo é ainda pior para mulheres LGBT+, já que são duplamente invisibilizadas, tanto pelo seu gênero, quanto pela sua sexualidade. De acordo com relatório da Comissão Independente de Direitos Humanos do Afeganistão (AIHRC), de junho deste ano, as mulheres têm seu direito à vida violado de diversas formas no país: são vítimas de assassinatos e alvos de violência física e sexual. Em 2020, foram registradas 26 mortes em territórios controlados pelo Talibã.

Ainda segundo publicação da AIHRC, mais de 41% das meninas afegãs são privadas da educação primária e secundária e 54% das adolescentes não frequentam o Ensino Médio. Esses números, já preocupantes, devem se agravar com o domínio do Talibã, conforme afirmou Shaharzad Akbar, presidente da Comissão Independente de Direitos Humanos do Afeganistão, em sessão de emergência no Conselho de Direitos Humanos da ONU, realizada 24 de agosto, em Genebra.

Artemis Akbary tem certeza de que, com o Talibã, a perseguição contra os LGBT+ será intensificada e ainda mais letal; e as informações vão se tornar ainda mais escassas. Ele teme por todos que não conseguiram sair do país e vão ter que enfrentar as violências perpetradas pelo atual governo. E faz um apelo: “Por favor, amplifique nossas vozes. Diga ao mundo que nós precisamos da ajuda de vocês, mais ainda do que antes. Nós estamos em perigo. Eu estou na Turquia. Estou num país seguro. Eu tenho muitos problemas, mas eu tenho segurança. Porém, tenho muitos amigos no Afeganistão que estão vivendo situações muito complicadas. Precisamos da ajuda de vocês”, disse, em entrevista por telefone.

Nicole Polo

Nicole Polo é jornalista com especialização em Política Internacional. É produtora de conteúdo na Alter Conteúdo Relevante e foi estagiária no Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil (UNIC Rio de Janeiro). Ativista feminista, integra a Marcha Mundial das Mulheres. Tem interesse em Direitos Humanos e no Direito Humanitário Internacional.

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