A cacica Lutana Kokama já cansou de ouvir que não seria capaz de exercer a função pelo simples fato de ser mulher. Antes dela, nenhuma outra indígena havia ocupado o maior posto hierárquico do Parque das Tribos, o primeiro bairro indígena de Manaus, onde vivem 700 famílias, num total de 3 mil pessoas, de 30 diferentes etnias, entre elas, Apuriña, Baré, Baniwa, Ticuna, Tukanos, além dos próprios Kokama.
Seu cacicado começou em 2013, quando assumiu o cargo no lugar do pai, que ainda era vivo. Foi cacique Messias quem criou o Parque das Tribos, junto com a mãe de Lutana, em meados da década de 1980. Quando o casal chegou em Manaus, a capital amazonense, vindo da região do Médio Solimões, não tinha lugar fixo para morar. A família trocou a aldeia pela cidade à procura de melhores condições de vida e foi viver, inicialmente, à beira da BR-174, rodovia que o liga o Amazonas a Roraima.
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Em pouco tempo, o casal e os cinco filhos – Lutana então com 10 anos – se mudaram para o bairro de Tarumã-Açú, na zona rural de Manaus, e ocuparam uma área com um antigo roçado. Os parentes, como são carinhosamente chamados, foram chegando, porque precisavam de um lugar para ficar na cidade.
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Veja o que já enviamos“Meu pai criou a comunidade para abrigar todo indígena que chegasse a Manaus”, lembra a cacique geral do Parque das Tribos. Como nenhum dos seus irmãos homens comprou a briga para legalização da comunidade, Lutana juntou a documentação necessária, enfrentou um conflito territorial que perdurou por anos e ainda sofreu ameaças constantes. Nunca esmoreceu. “A gente conquistou essa terra com muita luta, mas insistiam que nós éramos invasores. Mas sempre seguimos a lei.”
Só em 2019 é que o Parque das Tribos foi, enfim, reconhecido como um bairro indígena pela prefeitura de Manaus – no ano seguinte, cacique Messias viria a ser uma das primeiras vítimas da Covid no estado do Amazonas, morrendo dois meses depois de decretada a pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Ao assumir um espaço de luta que, tradicionalmente, pertencia aos homens de sua comunidade, Lutana despontou naturalmente como uma herdeira política da família – e não só porque o posto de cacique é passado de pai para filho. Sua ascensão na hierarquia do Parque das Tribos foi mais um exemplo do crescimento da representação feminina dentro das organizações indígenas – um protagonismo que vem ganhando força na última década.
“Ser cacique geral é ser mãe de todos os povos”, explica Lutana, comentando que “os problemas que vierem, eu tenho que resolver”. Como autoridade política do Parque das Tribos, ela faz de tudo um pouco: é porta-voz da comunidade em fóruns externos, organiza os moradores do bairro para receber os benefícios sociais e media conflitos, em um espaço de habitação multiétnica, onde se fala pouco mais do que 14 línguas indígenas.
É fato que sua liderança e autoridade vêm crescendo na última década, o que enfraquece um pouco os comentários machistas de que é vítima, a maioria deles com características idênticas àquelas reproduzidas pelos “kariuas”, como são chamados os homens brancos. Na cidade, não é diferente, com os comentários acrescidos de doses de racismo.
Com a ajuda de outras lideranças locais, Lutana elaborou um projeto de moradia para o bairro. Ela conta que aprendeu com seu pai apartar brigas e desavenças entre os moradores do Parque das Tribos, mas, sobretudo, dominar códigos de conduta e leis. Se, no passado, as mulheres se ocupavam da preparação da comida e bebida, além de ajudar no cultivo da roça; hoje em dia, elas querem ter vez e voz. “Me considero uma feminista sim”, defende, comentando que é necessário levantar essa bandeira para a discussão de gênero chegar até as aldeias.
No Parque das Tribos, Lutana está rodeada de lideranças indígenas mulheres – cada uma delas representando uma etnia – como Vanda Witoto. A única oposição ao seu cacicado vem justamente de um… homem: Ismael Munduruku.
Protagonismo feminino
Técnica de enfermagem, Vanda foi a primeira pessoa no Amazonas a receber a vacina Coronavac, do Instituto Butantan. Quando a vacina chegou a Manaus, colocou um cocar de penas coloridas na cabeça e vestiu uma máscara pintada com grafismo indígena. Na hora de tomar a vacina, chacoalhou um maracá – instrumento musical usado pelos xamãs em rituais de cura – e levou a mão ao ventre.
Sua imagem correu o mundo e seu gesto ecoou mais alto do que qualquer discurso e mesmo as denúncias que vinha fazendo desde o início da pandemia para proteger os indígenas – o primeiro caso foi de uma jovem de 20 anos do povo Kokama, que faleceu em 2020.
Mas Vanda não evitou de ser alvo de ataques nas redes sociais. Chegou a ser acusada de “indígena fake”, pelo simples fato de estar sendo vacinada na capital do estado. O difamador, um radialista local, foi obrigado a se retratar — Vanda foi uma das primeiras estudantes universitárias a morar no Parque das Tribos e formou-se em pedagogia.
O número de óbitos de indígenas superou a marca de mil na pandemia e os Xavantes, Kokama e Terena foram as etnias mais atingidas. Depois da jovem de 20 anos, vieram a confirmação da morte de pajés, rezadeiras e rezadeiros, parteiras, anciãs e anciões e cacicas e caciques. Muitos daqueles que morreram, levaram consigo a história oral de seus povos. Foi o caso de cacique Messias que vítima da covid e deixou como legado o Parque das Tribos.