Ainda faz sentido comemorar o Dia Internacional da Mulher? Ou, para além da parabenização feminina, o 8 de março deveria ser uma data para resgatar sua origem reivindicativa? Um dia para lembrar que a desigualdade de direitos e de salários persiste, que a violência contra a mulher aumenta e que a luta é diária e constante para um mundaréu de trabalhadoras, que enfrentam problemas de gêneros de toda ordem.
Para uma mulher indígena é tudo isso e muito mais. Elas engrossam o movimento das mulheres negras, periféricas, urbanas, do campo, das águas e das florestas. E ainda lutam pela demarcação dos seus territórios, a segurança dentro deles e a desintrução, ou seja, a retirada das pessoas que ocupam a área de forma ilegal. Essas garantias abrem espaço para o enfrentamento de outros problemas: a tentativa de apagamento e silenciamento, o machismo e o racismo.
Leu essa? Todas as reportagens da série especial Mulheres indígenas: guardiãs e líderes
Na luta por voz e direitos, dentro e fora das aldeias, elas protagonizaram um levante, romperam barreiras, que, até pouco tempo atrás pareciam intransponíveis, e balançaram as estruturas. “Aldearam” a política, como costumam dizer. Nas aldeias, viraram cacicas.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamos“Ser mulher indígena é nascer já em um processo de resistência e luta, das aldeias aos espaços institucionais”, resume a ministra dos Povos Originários, Sônia Guajajara, enfatizando que o Dia Internacional da Mulher é mais uma data importante para falar da “batalha diária contra a invisibilidade e o silenciamento dos povos indígenas”.
Outra data no calendário ainda mais significativo é o 5 de setembro, que, além de ser Dia da Amazônia, é o Dia Internacional da Mulher Indígena. Naquele dia, no ano de 1782, morria a quéchua Bartolina Sisa. Durante a rebelião anticolonial de Túpai Katari, ela foi executada e esquartejada no Peru. Só muitos e muitos anos depois, em 1983, é que se criou o Dia Internacional da Mulher Indígena, quando ocorreu, na cidade boliviana de Tihuanacu, o II Encontro de Organizações e Movimentos da América – nessa mesma década, surgiam no Brasil, as primeiras articulações de mulheres indígenas.
As pioneiras foram a Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (Amarn), em Manaus, e a Associação de Mulheres Indígenas do Distrito de Taracuá, Rio Uaupés e Tiguié (Amitrut), em São Gabriel da Cachoeira. Ambas na Amazônia, desde sempre o estado com a maior concentração de indígenas no país. “Lutamos em defesa da mulher e fazemos também esse recorte de mulher indígena, para que todos entendam as especificidades”, defende a ministra, explicando que as duas datas, o 8 de março e o 5 de setembro, não só são importantes, como complementares. “Ambos são dias de luta”.
O tempo foi passando, as mulheres indígenas se empoderando e o número de organizações crescendo. Em 2020, quando o Instituto Socioambiental (ISA) lançou o “Mapa das Organizações de Mulheres Indígenas no Brasil” foram relatadas 85 entidades e outras sete organizações indígenas com departamento de mulheres. Em setembro próximo, quando será anunciado o novo levantamento, a expectativa é que seja “três vezes maior”, antecipa a historiadora indigenista Luma Prado, analista no Programa Povos Indígenas no Brasil do ISA e uma das pessoas envolvidas na pesquisa. Este ano, o mapa conta ainda com o apoio da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).
O Encontro Internacional de Mulheres Indígenas para discutir a crise climática vai ocorrer justamente no dia 5 de setembro. “É um chamamento das mulheres indígenas do Brasil”, anuncia a ministra, antecipando que o objetivo é organizar uma marcha internacional. O Brasil vai sediar o encontro, que ainda não tem local definido. Os povos indígenas no mundo protegem 82% da biodiversidade e são apenas 4% da população mundial.
Defensoras da floresta empoderadas
A luta contra a colonização sobre os corpos e os territórios indígenas é antiga. No livro “Cativas litigantes”, Luma mostra que indígenas, sobretudo mulheres, lutaram nas cortes coloniais, desde o século XVIII, para libertar a si e a seus familiares da escravidão a que estavam submetidas nas regiões do Pará e do Maranhão. “Na maioria das vezes, conseguiram”, conclui a autora do livro.
Desde sempre, a luta das mulheres indígenas é a mesma de todos “as parentes”, como são carinhosamente chamadas: a demarcação de terras e o direito ao território. É a mãe de todas as lutas – que o diga Joênia Wapichana, que tem uma biografia marcada pelo pioneirismo e pela pauta em defesa do território. Antes de virar a primeira indígena a ocupar à presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), ela foi a primeira mulher indígena a exercer a profissão de advogada no Brasil, quando atuou na demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, e também a primeira indígena eleita deputada federal – ela sucedeu o único parlamentar indígena até então, o xavante Mário Juruna.
As mulheres indígenas sempre tiveram um papel importante na luta, mas, durante anos, estiveram invisibilizadas – em alguns povos até proibidas de participar de espaços de tomada de decisão. O empoderamento levou as indígenas a ocuparem cada vez mais espaços estratégicos. Dentro do movimento indígena, no entanto, ainda falta isonomia entre homens e mulheres. Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), todos os coordenadores regionais são homens. A exceção é Juliana Kerexu, liderança do povo indígena Guarani, cacica da aldeia Tekoa Takuaty, no litoral do Paraná, e ativa defensora das florestas e da vida na Mata Atlântica.
Se Cacique-Pequena foi a primeira mulher a chefiar uma terra indígena no Brasil nos anos 1990; Majur Traytowu protagonizou em 2021 o fato de ser a primeira mulher transexual a ocupar a liderança numa aldeia. Da Terra Indígena Tadarimana, em Rondonópolis, no Mato Grosso, lançou, querendo ou não, uma nova pauta: “Sou indígena LGBTQIAP+” – ela se define nas entrevistas já publicadas sobre seu cacicado e seu processo de transição.
Existe feminismo indígena?
Ainda que a garantia do território continua sendo a principal luta do movimento indígena, as pautas de gênero vêm ganhando força e adeptos. Na III Marcha das Mulheres Indígenas de 2023, juntou oito mil mulheres em Brasília. Elas saíram de suas aldeias para bradar pelo fim da violência contra as mulheres indígenas. A próxima marcha será em 2025, porque ela só ocorre a cada dois anos.
“O Brasil ainda não superou o machismo. Isso é nítido no quantitativo de mulheres que ocupam espaços no parlamento, no executivo, judiciário…”, diagnostica a ministra, acrescentando o racismo, como mais um dos ingredientes da luta das mulheres indígenas.
Apesar de abraçarem pautas de gênero, o movimento das mulheres indígenas vive um dilema: ser ou não ser feminista. Liderança da Anmiga, a gaúcha Jozileia Kaingang, da Terra indígena do Guarita, é peremptória: “Sou uma mulher indígena feminista”. Antropóloga, geógrafa e professora da UFSC, ela admite, no entanto, que o feminismo, apesar de ser um debate necessário, não é uma pauta prioritária das mulheres indígenas: “Nossa pauta prioritária é o direito à terra, território seguro, saúde, educação…”
A historiadora Luma Prado explica a divergência: ou o que vem primeiro é a identidade étnica ou a identidade de gênero? “Enquadrar o movimento de mulheres indígenas como feminismo é uma questão que preocupa mais as mulheres não-indígenas. A luta delas, se autodeclarando feministas ou não, é pelo território, pela vida digna das mulheres indígenas e tem muito a nos ensinar”.