Quando uma mulher indígena é vítima de violência na aldeia ou na cidade é como se o ato de “pegar no laço” fosse reproduzido em pleno século XXI. A geógrafa Márcia Kambeba cresceu ouvindo a mãe e a avó contar histórias de indígenas que foram “laçadas”, o que significa terem sido vítimas de violência sexual pelos colonizadores. A prática era recorrente e, até hoje, se ouve a expressão sendo falada com um certo orgulho: “tenho descendência indígena porque minha avó contava que a avó dela foi pega no laço”.
Autora de três livros, fotógrafa, atriz e professora convidada da Universidade do Estado do Pará (Uepa), Márcia é também poeta e reflete na sua escrita a violência contra os povos indígenas e os conflitos trazidos pela vida na cidade. Foi também a primeira indígena a virar ouvidora, posto que ocupou na prefeitura de Belém de 2021 a 2023. Desde então, usa sua voz para romper o silencio que ronda as mulheres indígenas vítimas de violência sexual e racismo.
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Levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), de 2022, constatou que, em muitos casos, a disseminação de bebidas alcoólicas e outras drogas funcionam como gatilho desencadeador de graves crimes, como violência sexual, assassinatos e lesões corporais. Naquele ano, levantou-se 20 casos ocorridos em diferentes etnias, dentro de terras indígenas, tendo sido o estado do Mato Grosso do Sul o líder do ranking, com um total de oito ocorrências.
Para além das estatísticas, que sofrem com a subnotificação de casos, a mulher indígena é alvo de uma violência que cresce de forma acelerada. “A cada minuto, uma mulher é violentada, vítima de feminicídio seja na aldeia ou na cidade. A vida na aldeia tem outra dinâmica e forma de ser entendida, mas, nada justifica a violência que a cada ano que passa aumenta”, denuncia Márcia Kambeba.
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Veja o que já enviamosApesar do seu ativismo em torno do tema, a geógrafa não se considera feminista: “Caminhamos ao lado dos nossos guerreiros, não queremos estar nem a frente e nem atrás, mas sempre ao lado nas manifestações, nas ações dentro e fora da aldeia”.
Não se considerar feminista é um mero detalhe na sua trajetória. Nascida na Aldeia Belém de Solimões, do povo Omágua/Kambeba, no interior do Amazonas, onde morou até os oito anos de idade, Márcia Kambeba vem trabalhando pela valorização da cultura indígena e o fim do silenciamento e a naturalização da violência contra a mulher indígena. Ela defende que as novas gerações não esqueçam dos costumes dos seus povos, mas também não encarem a violência sexual contra a mulher indígena como um traço cultural de algumas etnias.
À frente de um projeto junto ao Ministério Público Federal (MPF) do Pará, Márcia vem promovendo roda de conversas em diferentes aldeias para debater sobre violência de gênero e representatividade em espaço de poder, dentro e fora dos territórios indígenas. Discutir a Lei Maria da Penha, por exemplo, é fundamental. É que, para a maioria das mulheres indígenas, o acesso ao aparato legal é bastante difícil.
A distância é um dos grandes complicadores: à localização das aldeias tende a criar dificuldades de acesso aos órgãos públicos, uma combinação de obstáculos econômicos e logísticos. Sem falar na barreira linguística, já que nem todas as vítimas falam português.
Ainda que seja considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das três melhores legislações em nível mundial para o enfrentamento da violência contra as mulheres; nem toda vítima, independentemente de raça, etnia e orientação sexual goza do direito da proteção garantida pela lei. No caso das mulheres indígenas, seria preciso promover, além de uma visão interseccional, uma abordagem intercultural.
Alguns estados têm enfrentado o problema de forma mais ativa. É o caso de Santa Catarina, onde a Lei Maria da Penha já foi traduzida nas línguas Xokleng, Kaingang e Guarani. No Ceará, vigora desde 2019, a Lei Diana Pitaguary, que criou a obrigatoriedade de as escolas indígenas do estado discutirem a violência contra a mulher, o feminicídio e a importunação sexual. Diana foi vítima do marido, que foi duplamente condenado: por feminicídio e por ocultação de cadáver.
“Não pense que as mulheres que vivem na aldeia não têm o entendimento de como funciona a Lei Maria da Penha”, conta Márcia Kambeba, acrescentando que, no entanto, costuma conversar com as promotoras públicas que a acompanham nas rodas de conversa nas aldeias, que é necessário ouvi-las para adequar a legislação à realidade das mulheres aldeadas.
“Na pisada do toré, no som e na força dos maracas, é que se sente o valor de ser parenta”, exalta Márcia, destacando um dos trechos da poesia “Mulher indígena e violência”, escrita por ela, em março de 2024:
Sou a força das mulheres de ontem
Que resistiram ao laço do caçador
Violentadas na sua essência feminina
Um grito da mata ecoou:
“Laçadas nunca mais!