ODS 1
‘Não vamos parar de cobrar justiça’
Pesquisadora alemã relembra entrevista com Marielle Franco e fala do susto e da indignação com a notícia da execução da vereadora
Hanôver, Alemanha, 15 de março 2018, 8h
O som estridente do meu despertador me tira do sono e meu olhar se depara com surpresa no celular. Cinco ligações perdidas do Brasil? Isso não pode ser boa notícia.
Faço um café e calculo as horas: 4 da manhã no Rio. Ainda cedo demais para retornar as ligações. Sento no sofá e vejo brevemente as notificações no Facebook. Um monte de gente me convidando para um ato contra o genocídio da juventude negra….mas peraí…SOS Marielle Franco? O que é isso?
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosEu entro no Globo.
Não.
Não.
Não.
Nove tiros.
Meu deus.
“Assassinaram a Marielle!” . Meu ex-marido atendeu ao telefone de vez, embora fossem 4h30 da manhã no Rio.
“Sim.”
“Por quê?”
Silêncio em ambos os lados do Atlântico.
Rio de Janeiro, 19 de abril 2017, 17h45.
“São só mais 10 minutinhos, tá? Você quer mais um café? Desculpe, a Marielle já está vindo… Estamos ainda acompanhando o atendimento da vítima na delegacia… Mas ela já chegou.“
Havia marcado uma entrevista com a nova vereadora feminista do Rio de Janeiro para produzir uma matéria sobre seu projeto de lei relacionado ao aborto legal, para uma revista alemã. Estou em seu gabinete faz uma hora, bebendo café e conversando com sua equipe, para matar hora, mas não me importo com o atraso. Uma mulher jovem sofreu uma tentativa de estupro e foi atacada com faca. Não sabendo a quem recorrer, ela ligou para o gabinete da Marielle, que imediatamente encaminhou suas assessoras para que acompanhassem o atendimento da vítima, tanto no hospital quanto na delegacia.
“Desculpe pelo atraso!”. Marielle chegou. “Já pode montar tudo pra gente começar em 5 minutos, ok?”
Quem tem um pouco de tempo no ativismo, ou na academia, sabe bem que existem muitas pessoas que falam e poucas que fazem. Marielle, isso eu vi de imediato, é certamente uma das representantes mais impressionantes do segundo grupo. “Ela nunca para”, uma das suas funcionárias já havia me avisado.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]É Marielle Franco, que ocupa todos os espaços, fala todas as línguas e constrói pontes nessa cidade que já nasceu partida
[/g1_quote]Montamos a câmera e o microfone e eu observo que Marielle ainda está falando ao celular, para fiscalizar pessoalmente o registro da tentativa de estupro, na delegacia.
“Desculpe, novamente. Eu só tive que falar rapidamente com minha assessora. Uma pessoa da equipe e um advogado foram para o hospital para garantir o atendimento, a menina levou quatro pontos. Outra assessora está agora acompanhando o atendimento na delegacia, para fazer os policiais entenderem que o relato prestado pela vítima não é um ‘mimimi’, não é uma brincadeira, um ‘chilique’, um caso infundado ou alguém precisando de atenção.”
Senhoras e senhores, Marielle Franco, vereadora pelo PSOL-Rio de Janeiro, cria da Maré, mãe, filha, sobrinha, amiga. Mulher.
Hanôver, Alemanha, 15 de março 2018, 9h30
“Você já está sabendo? Precisamos organizar algo. O povo em Berlim tá tocando algo? Você tem o contato de algum cinegrafista? Cara, meu Iphone pifou ontem, que merda. Eu preciso de alguém pra me acompanhar pra filmar. Precisamos de imagens. Sim, me passa todos os contatos.“
Por que a Marielle? Por quê? Por quê?
Isso não faz sentido.
Mas vou pensar mais tarde sobre isso. Primeiro, precisamos organizar uma manifestação em Berlim. Esse tipo de pressão é importante. Pego novamente no celular: “Você já está sabendo?”.
Rio de Janeiro, 19 de abril 2017, 18h
– O que é política para você?, pergunto para Marielle.
– É pegar nossa vivência do dia-a-dia e canalizar para o parlamento, ela responde.
Xeque-mate. É a micropolítica formulando a macro. É partir dos conhecimentos e inovação locais para o projeto de lei. É da Maré para a Câmara das Vereadores. É Marielle Franco, que ocupa todos os espaços, fala todas as línguas e constrói pontes nessa cidade que já nasceu partida.
Estou intrigada.
Intrigada com essa mulher, decido levar a entrevista para um campo um pouco mais pessoal.
– Atrás de cada mulher forte, costuma ter outra mulher forte. Quem está atrás de você?
– Nós mulheres negras temos um ditado que diz “uma sobe, puxa a outra”. Acho que é importante aplicar isso a cada momento.
– E quais são suas principais referências?
– De referências, eu tenho muitas, mas certamente é impossível a gente não ter referência na mãe. Minha mãe é uma mulher forte. Mas também tenho que falar da minha tia, da prima, da avó. Essas mulheres foram sempre as preteridas pelos irmãos, por exemplo, estudaram menos ou concluíram seus estudos depois ou ficaram no Nordeste, porque elas têm origem lá. O êxodo familiar foi primeiro dos homens, para tentar a vida, e depois das mulheres. Com isso, você perde tempo, qualificação, poder econômico. Do âmbito familiar, tem minha mãe, Marinete, minha prima que é meio que uma tia, a Solange, que também foi mãe nova e tem toda essa experiência da mulher negra se entendendo no mundo. A minha avó, oriunda de quilombola ali na Bahia da Traição, nesse lugar onde se pega indígenas e negros, nessa formação social do Brasil de resistência e sobrevivência, sendo curandeira, sendo religiosa, criando 11 filhos…
Hanôver, Alemanha, 15 de março 2018, 17h
“Ativista de direitos humanos assassinada tiros”.
Finalmente a Deutsche Welle lançou a notícia na Alemanha.
Aos poucos, outras manchetes começam a pipocar: “Feminista brasileira Marielle Franco: vereadora de partido de esquerda assassinada”, escreve a TAZ. “Vereadora famosa assassinada no Rio de Janeiro”, notifica a Die Zeit.
Recebo no Facebook notícias de manifestações em Lisboa e Nova Iorque. Nova Iorque? Eles estão cinco horas atrás da gente, como é possível que lá já se organizaram e aqui ainda nada?
Ligo para mais algumas pessoas e me ofereço para organizar o ato.
Antes disso, no entanto, lembro que já estou atrasada para o aniversário da minha sobrinha. Ela fez dez anos e já havia me convidado há duas semanas.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]Uma jovem mulher foi brutalmente assassinada e as pessoas a acusam de defender bandido. O que aconteceu com o Brasil, com o Rio de Janeiro? Quem vai ser a próxima?
[/g1_quote]Consigo aguentar duas horas na festa das crianças e bebo algumas cervejas além da conta. É claro que não é culpa da Marie ou de qualquer outra pessoa presente na festa, mas nunca me senti tão deslocada nesse lugar perfeitamente seguro, onde as crianças podem ter uma infância sem nenhuma preocupação em relação à educação ou saúde. Um lugar onde a polícia não mata mil pessoas por ano. Nem cem. Nem dez. Nem cinco. Um lugar onde segurança para uns não significa tiros para outros.
Um lugar onde as pessoas sequer reconhecem som de tiro.
E um lugar onde uma jovem vereadora não seria assassinada por defender algo tão básico como o direito à vida da população pobre do Rio de Janeiro.
Volto para a casa e esvazio mais meia garrafa de vinho.
Rio de Janeiro, 19 de abril 2017, 18h30
A entrevista com Marielle foi se tornando mais e mais uma conversa entre amigas ou companheiras de luta, talvez. Embora partíssemos de lugares tão distintos – ela brasileira, eu alemã; ela negra, eu branca; ela Maré, eu subúrbio de Hanôver – , nos conectamos quase de imediato, conversando sobre nosso lugar como mulheres, nossas referências, nossas histórias familiares. Não fiquei muito surpresa em saber que dividimos também uma admiração pela autora nigeriana Chimamanda Adichie.
– Algum livro te marcou, ultimamente?
– O ‘Americanah’, da Chimamanda Adichie. Me tocou muito porque ele tematiza a busca da mulher por novos ares, na figura da ida da protagonista para os Estados Unidos. Além disso, uma boa parte do livro se passa num salão de beleza, ou seja, num lugar onde de fato ocorrem muitas disputas simbólicas que considero importantes, como o lugar do cabelo, das cores, do estar presente.
“A busca da mulher por novos ares”. Tendo me mudado aos 24 anos da Alemanha para o Rio de Janeiro, eu sabia exatamente do que a Marielle estava falando. Agora, me arrependo de não ter perguntando que tipo de “novos ares“ ela tinha em mente.
Hanôver, Alemanha, 16 de março 2018, 12h
Habemos um ato em Berlim. Aleluia. Um grupo de brasileiros organizou uma manifestação no dia 18, em Kreuzberg.
Estou de ressaca e não tenho mais força para acompanhar as difamações da Marielle no Facebook. Uma jovem mulher foi brutalmente assassinada e as pessoas a acusam de defender bandido.
O que aconteceu com o Brasil, com o Rio de Janeiro?
Quem vai ser a próxima?
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]A Marielle teve muitos amigos em todos os lugares. Não vamos deixar que ela seja esquecida – no Rio, em São Paulo, em Nova Iorque, em Paris, em Berlim. Nós não vamos parar de cobrar justiça
[/g1_quote]Rio de Janeiro, 19 de abril 2017, 18h45
– Última pergunta, Marielle: Nina ou Elza?
Marielle cai na gargalhada.
– Nina Simone e Elza Soares, você quer dizer?”
– Tem outras?
– Claro que não. Ah não, mas é Elza, óbvio.
– Eu sou do time da Nina.
– Ah não, com todo carinho e respeito ao jazz, mas é Elza. Engraçado, por acaso eu já ouvi muito as duas e suas músicas são muito importantes para mim. Conheci primeiro a Elza, mas mergulhei bastante nas questões da Nina Simone, no ano passado, a partir de um documentário sobre a vida dela (“What Happened Miss Simone”, de Liz Garbus, 2016). E admiro também a Elza Soares, com toda essa resistência que ela incorpora, de não se deixar reduzir a ser apenas uma mulher atrás de um grande jogador. Pelo contrário, ela sempre se colocou enquanto mulher e depois ainda lançou uma música com a letra “Você vai se arrepender se levantar a mão pra mim”. Essa coragem foi sempre fundamental para mim.
Encerramos a entrevista e Marielle me agradece, rindo, pelas “ótimas perguntas”. São sete horas da noite e ela, é claro, ainda tem que correr para outro compromisso.
Nos despedimos com um abraço.
Não sabia que seria o nosso último.
No caminho para casa, ouço Elza Soares cantando “Você vai se arrepender se levantar a mão pra mim” e penso que Marielle talvez, sim, tenha razão quando diz que a Elza é mais poderosa que a Nina.
Hoje, 18 de março, é o ato em Berlim. Parece que vai ser grande. A Marielle teve muitos amigos em todos os lugares. Não vamos deixar que ela seja esquecida – não no Rio, em São Paulo, em Nova Iorque, em Paris, em Berlim.
Nós não vamos parar de cobrar justiça.
Relacionadas
Kristina Hinz
Kristina Hinz é pesquisadora e analista política especializada em violência de gênero, violência policial, controle de armas e crime organizado, com experiência na América Latina e no Oriente Médio. Atualmente, atua como pesquisadora no Laboratório de Análise de Violência (LAV) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil (UERJ) e está escrevendo sua tese de doutorado na Universidade Livre de Berlim. Como consultora independente, ela tem assessorado diversas instituições de pesquisa e direitos humanos em questões relacionadas à violência de gênero, justiça interseccional e controle de armas na América Latina, Europa e no Oriente Médio. É graduada em Economia Internacional (Universidade de Tübingen, Alemanha) e tem mestrado em Relações Internacionais (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil). É autora da coluna "Mulheres em Tempos Sombrios - Perspectivas Feministas sobre Violência, Segurança e Crime Organizado" que é publicada bimestralmente em inglês, espanhol e português no portal openDemocracy. Ela pode ser encontrada no Twitter: @KristinaHinz_