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Homicídios de mulheres trans: 77% são praticados com requintes de crueldade
Dossiê feito por ONGs aponta 175 assassinatos de transexuais e travestis no Brasil em 2020: população trans fica fora das estatísticas oficiais
Dossiê feito por ONGs aponta 175 assassinatos de transexuais e travestis no Brasil em 2020: população trans fica fora das estatísticas oficiais
Por Maria Carolina Santos
No início da pandemia do novo coronavírus, há um ano, Fabianna Oliveira começou a postar sobre o assassinato de mulheres trans e travesti nas redes sociais. A cada semana, os casos se avolumavam. “Fiz isso para conscientizar meus seguidores de que o Brasil é o país que mais violenta pessoas trans e travestis. A necessidade de denunciar chegou para mim como uma forma de ampliar o olhar: somos violentados por sermos quem somos”, diz Fabianna, estudante de psicologia e integrante Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans-PE).
A impressão de Fabiana se confirmou quando foi publicado o dossiê “Assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020″, no final de janeiro. Em todo o país, foram 175 assassinatos, um percentual 21,3% maior que a média de 122,2 assassinatos/ano. O segundo número mais alto desde 2017 – mas o maior em mortes de mulheres trans. Todas as pessoas trans assassinadas em 2020 se identificavam com o gênero feminino.
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Produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra) e pelo Instituto Brasileiro Trans de Educação (Ibte) desde 2017, o dossiê é a principal fonte sobre homicídios da população trans. Isso porque simplesmente não existem números oficiais no Brasil. Para os casos em que este tipo de violência acontece apenas pela condição de gênero da vítima, as organizações da sociedade civil usam o termo Transfeminicídio, mas a tipificação, claro, não é usada nos registros oficiais e boletins de ocorrência. O levantamento da Antra/Ibte é feito por meio do monitoramento da mídia em todos os estados.
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Veja o que já enviamosPessoas trans são mutiladas, são carbonizadas. É como se não bastasse matar, mas lançar ódio em cima desse corpo. Não é o ódio da vergonha em desejar o corpo trans, e sim o ódio de desejar um corpo que socialmente foram ensinados a odiar
[/g1_quote]Uma reivindicação antiga das organizações é de que perguntas sobre identidade de gênero e de orientação sexual sejam incorporadas ao censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE) a cada dez anos. “Em breve deve haver um novo censo e, mais uma vez, essas perguntas não estarão no questionário. Não há nenhum estudo governamental sobre quem é a população trans brasileira. O que temos são pesquisas de universidades. E precisamos de dados que sirvam como base para o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para as pessoas trans”, diz a presidente do Ibte Sayonara Nogueira, que assina o dossiê, ao lado da também pesquisadora Bruna Benevides.
Crueldade
Entre os assassinatos levantados no dossiê em 2020, 77% dos foram praticados com requintes de crueldade, uso excessivo de violência e mais de um método de violência. Foi o caso de Keron Ravach, adolescente de apenas 13 anos, morta a pauladas, chutes e socos na cidade de Camocim, Região Norte do Ceará, em mais um crime que chocou pela brutalidade contra o corpo da mais jovem transexual assassinada no país.
O caso da adolescente cearense, em janeiro de 2021, chama a atenção novamente para o protagonismo do Nordeste na violência contra pessoas trans. Em 2020, a região foi onde ocorreram 43% das mortes em todo o Brasil, contra 34% do Sudeste, 8% do Sul, 7% da região Norte e 7% do Centro-Oeste.
Para a pesquisadora Dalia Celeste, da Rede de Observatórios da Segurança em Pernambuco e da plataforma Fogo Cruzado no estado, a brutalidade é mais um reflexo da desumanização das pessoas trans. “São crimes extremamente violentos, seja por ação ou por omissão, como foi o caso da cabeleireira Lorena Muniz, deixada para morrer desacordada em uma mesa de cirurgia em uma clínica que pegou fogo. Pessoas trans são mutiladas, são carbonizadas. É como se não bastasse matar, mas lançar ódio em cima desse corpo. Não é o ódio da vergonha em desejar o corpo trans, e sim o ódio de desejar um corpo que socialmente foram ensinados a odiar”, diz.
Nos casos em que foi possível fazer a identificação racial da vítima, 78% eram travestis/mulheres trans negras. “Uma pessoa trans apresenta, pelo menos, nove vezes mais chances de ser assassinada do que uma pessoa cisgnênera. Porém, essas mortes acontecem com maior intensidade entre travestis e mulheres transexuais, principalmente contra negras, assim como são elas as que têm a menor escolaridade, menor acesso ao mercado formal de trabalho e a políticas públicas. Travestis e transexuais negras são maioria na prostituição de rua”, diz um trecho do relatório.
Sayonara considera que os dados revelam um ódio duplo: de gênero e de raça. “Quem morre no Brasil é a mulher preta e a mulher trans. É a periférica, a profissional de sexo. São pessoas que não estão tendo acesso ao mínimo de cidadania. Quem é que chora pela morte dos corpos trans?”, questiona.
Isolamento e auxílio emergencial
Para Fabianna, a pandemia foi ainda mais dura com a população trans, mas não só pelo isolamento imposto como medida para evitar as altas taxas de contágio do vírus. “Mulheres trans e travestis já vivem normalmente em isolamento social. Desde o momento em que nos assumimos, passamos por processos de exclusão da família, do ambiente educacional, do trabalho. Sair na rua é ter a sensação constante que estão te julgando. A pandemia potencializou muito os medos, angústias e sofrimentos. Isso por não ter de onde tirar renda. A grande maioria das travestis e mulheres trans não têm emprego formal. São cabelereiras, trabalham com serviço, profissionais do sexo. Na pandemia, a renda caiu muito”, conta.
O dossiê estima que cerca de 70% da população trans não tenha acesso às medidas emergenciais ou auxílio por parte do Estado. “Muitas meninas não sabiam como proceder. Não tinham acesso à internet ou até mesmo celular. Em muitos casos, não estavam com a documentação em ordem”, diz Soraya, lembrando que o preenchimento do cadastro em um aplicativo da Caixa Econômica Federal não contava com campo para o uso do nome social.
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“Quando a gente fala sobre segurança pública, me pego em silêncio. Não existe segurança pública, não existe processo de acolhimento para nós. É preciso que sejam criadas medidas que nos incluam na constitucionalidade. Inicialmente, o respeito à identidade de gênero. Não adianta o STF aprovar o criminalização da LGBTfobia e continuarmos sem oportunidade de acesso à educação e empregabilidade, sendo empurradas para a prostituição”, diz Dália. “Precisamos de um ciclo de medidas de proteção. Humanizando e inserindo as pessoas trans em espaços de educação e renda. É a partir disso que esses crimes vão diminuir”, afirma.
Soraya acredita que isso não deve acontecer nos próximos anos, com a extrema-direita no poder. “Desde o pós-golpe de 2016, os serviços sociais têm recebido cada vez menos verba. Não são fechados, mas não oferecem mais os serviços que costumavam oferecer. Com Bolsonaro, esse cenário ficou muito pior. Temos um presidente que valida a transfobia. Meu medo é que, em 2022, o Brasil não consiga se livrar dele”, diz.
Essa reportagem faz parte da série Um vírus e duas guerras. O monitoramento, que tem como base as estatísticas das Secretarias Estaduais da Segurança Pública, tem objetivo de visibilizar a violência doméstica e o feminicídio contra a mulher durante a pandemia e é realizado pela parceria de sete mídias independentes: Amazônia Real; AzMina; #Colabora; Eco Nordeste; Marco Zero Conteúdo; Ponte e Portal Catarinas.
Sofre ou conhece alguém que sofre de violência doméstica? Pelo número 180 é possível registrar a denúncia e receber orientações sobre locais de atendimento mais próximos. A ligação é gratuita e o serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana.
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