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Veja o que já enviamosFernanda Torres e Eunice Paiva: liberdade é transcender o medo – e abocanhar um Globo de Ouro
Vitória da atriz brasileira é um tapa na cara de quem desejou tanto silenciar os horrores da ditadura
Nina Simone famosamente disse, em uma entrevista, que “liberdade é não ter medo”, afirmação forte, poética e verdadeira, que vem estampando canecas, camisetas, artes duvidosas de internet e, mais importante, o pensamento das pessoas. Durante muito tempo concordei cegamente com a afirmação, porque já vivi com muito medo.
Quando terminei um relacionamento abusivo, quando entrei em remissão de um câncer, quando saí de um assalto sem um arranhão, e tantas vezes na vida, senti um alívio físico ao sentir o medo deixando meu corpo. E isso porque sou branca e estive muito menos exposta ao medo do que a Nina Simone, negra, artista, quebradora de tantas barreiras e que viveu em tempos muito mais duros que os meus por ser quem é.
Mas hoje em dia, não acredito que seja possível manter essa sensação de quando o medo se esvai da gente por mais de alguns minutos depois da descarga de alívio. Tiro por mim. Continuo com medo de repetir os comportamentos de “sobrevivência” que aprendi estando numa relação abusiva. Temo que o câncer volte ou apareça em outro lugar. Sigo, como todo mundo com algum juízo, tremendo nas bases de ser assaltada novamente. Obviamente, continuo aterrorizada por ser mulher em um mundo que não quer que a gente esteja sã e salva em lugar algum. Mas o medo não me aprisiona. A despeito dele, vou vivendo, amando, estando, fazendo, mesmo sendo medrosíssima.
E é por isso que passei a ousar discordar de Miss Simone. Porque talvez a liberdade maior seja essa, de transcender o medo, de impedir que ele nos mantenha imóveis e em silêncio. É perceber que ser livre é algo quase antropofágico: não anula o medo, mas o devora, mastiga e cospe em pulsão de viver – ok, uns dias mais e uns dias menos, mas nunca completamente aprisionada.
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Veja o que já enviamosNum país tão desigual como o Brasil, e num mundo cujas engrenagens ainda se movem azeitadas por racismo, machismo, LGBTQIA+fobia e tantas formas de exclusão e violência, a maior parte das pessoas não pode se dar ao luxo de sentir medo todo dia, apenas por existir. Mas desconfio muito que absolutamente ninguém vive a plenitude de uma liberdade totalmente isenta de temor. Duvido aliás. Do medo de bater o dedinho em quina de armário ao medo de ter a vida exterminada, ninguém se safa.
E é por isso que, cada vez mais, acho que a gente tem que celebrar o que se faz apesar do que se teme. Se Fernanda Torres tivesse cedido a um justificável medo de ser comparada à mãe, uma das maiores atrizes do país – e do mundo -, talvez ela não estivesse hoje empunhando o Globo de Ouro que está fazendo a internet comemorar mais do que título de Copa do Mundo.
Se o medo tivesse tomado conta de Eunice Paiva – também com justa causa -, talvez ela não pudesse dizer, até o fim da vida, “Ainda estou aqui”, e, novamente, Fernanda Torres não teria conquistado o Globo de Ouro, porque Walter Salles não teria feito o filme que lhe rendeu indicação. Na cena emblemática do filme, uma Eunice decidida, e que vai a imprensa relatar o terror que a família vive, diz aos filhos para desobedecerem as ordens de fotógrafos e sorrirem para as foto, apesar do pavor a que estavam sendo submetidos. Caso Marcelo Rubens Paiva tivesse sido calado por temor ao sistema que matou seu pai, também não teríamos o Feriado Nacional do Globo de Ouro da Fernanda Torres (registrando aqui para oficializar o clamor popular).
Todos os dias, servindo Fernandas, Eunices, e eu e você, incontáveis pessoas estão limpando casas, atendendo em lojas, dirigindo carros de aplicativo e o diabo a quatro em funções que exercem apesar do medo da violência, da pobreza, da fome, de não chegar em casa – ou de ter alguém seu que não chegue. Há quem simplesmente continue existindo, com coragem e ousadia, apesar de isso ser uma afronta aos que acham que existe só uma forma de ser – branca, heterossexual, cisgênera e, de preferência, masculina.
A trajetória de sucesso de “Ainda estou aqui”, lotando os cinemas nesse país que, nos últimos anos, teve sua cultura tão sucateada, é um grito de resposta a quem quisesse que vivêssemos com tanto medo. E melhor ainda, a vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro é um tapa de luva de pedreiro (e não de pelica, classista) na cara de quem desejou tanto silenciar os horrores da ditadura, e que vira e mexe sai por aí bradando pela sua volta.
A essa gente, que faz tantas atrocidades em nome de uma distorção da ideia de liberdade, eu desejo que o medo se transforme em pés de cimento. E que nunca mais consigam sair do lugar.
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