Em um ano de Talibã, fome atinge mais 5 milhões no Afeganistão

Mulheres levam filhos desnutridos a hospital em Cabul: com Talibã no poder, fome atingiu mais 5 milhões de pessoas no Afeganistão (Foto: Sayed Khodaiberdi Sadat / Anadolu Agency / AFP – 02/02/2022)

Meninas e mulheres vivem cotidiano de violência e restrição de direitos; crise humanitária, econômica e climática provoca colapso nos hospitais

Por Nicole Polo | ODS 16ODS 2ODS 5 • Publicada em 15 de agosto de 2022 - 09:06 • Atualizada em 29 de novembro de 2023 - 10:24

Mulheres levam filhos desnutridos a hospital em Cabul: com Talibã no poder, fome atingiu mais 5 milhões de pessoas no Afeganistão (Foto: Sayed Khodaiberdi Sadat / Anadolu Agency / AFP – 02/02/2022)

A tomada de poder pelo Talibã no dia 15 de agosto de 2021 gerou uma série de mudanças para a população no Afeganistão. Com o fim do suporte financeiro internacional, o país entrou em uma profunda crise econômica. Os efeitos da antiga guerra e consequências climáticas também tornam a situação econômica mais crítica. Isso levou ao aumento de 6 milhões de afegãos com necessidade de apoio humanitário entre agosto de 2021 e julho de 2022, com um agravamento, principalmente, da fome no país.

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Com o poder nas mãos do Talibã, os fundos internacionais perderam financiadores, o Banco Central do país foi retirado no sistema internacional de bancos e outras medidas econômicas de embargo foram impostas ao Afeganistão. O novo governo do Afeganistão, formado por lideranças do grupo fundamentalista, também recusa ou dificulta ajuda humanitária. Essas decisões desencadearam uma crise econômica profunda permeada também pelas destruições dos anos de guerra e por problemas climáticos, como as secas cada vez mais extremas e prolongadas.

Alguns dias, meu pai não consegue trazer alimento. Então, meus irmãos acordam à meia-noite e choram por comida. Eu não como e deixo meu alimento para meus irmãos e irmãs. Quando eles pedem comida, choro muito

Parishad
Afegã de 15 anos

Um ano após o Talibã reassumir o poder após a saída das tropas americanas, o desemprego cresceu e a pobreza chegou a níveis recordes no Afeganistão. Nesse cenário, a compra de bens básicos para a sobrevivência se tornou um desafio para 97% da população. No quesito alimentar, segundo o Programa Mundial de Alimentos, cerca de 18,9 milhões de pessoas estão passando por insegurança alimentar aguda, situação de fome, um aumento de 4,9 milhões ao comparar com agosto de 2021, quando 14 milhões estavam na mesma situação.

A crise humanitária foi agravada também pelo terremoto de janeiro que destruiu centenas de casas, afetando 326 mil pessoas que ainda necessitam de abrigo, alimento e assistência médica. Com o fim das ações armadas no país, 408 mil afegãos refugiado no Irã voltaram ao país e outros 41 mil retornaram do Paquistão, demandando abrigo e apoio. As condições de saúde se agravaram: o Afeganistão enfrentou um surto de sarampo no começo deste ano e registrou 7.638 novos casos de diarreia por contaminação da água só em junho de 2022.

Desde o fim do conflito, o número de pacientes em hospitais tem aumentado, já que agora eles têm mais uma maior liberdade de circulação, conforme contou Thok Johnson, o coordenador médico do Médicos Sem Fronteiras no Afeganistão. A alimentação precária, por conta da falta de recursos, agrava a saúde da população, que se torna mais vulnerável a doenças.

A desnutrição, além de ser um problema por si só, abre a oportunidade para mais infecções, aumentando a procura por hospitais. No entanto, o serviço de saúde não consegue suprir as novas demandas pela carência no financiamento internacional. “Em algumas unidades, por exemplo, você pode ver o número de pacientes aumentar cerca de 30%. Contudo, a crise econômica tem dificultado o pagamento a funcionários. Há unidades que não conseguem pagar por suprimentos médicos, levando a um colapso do serviço”, explica o médico.

Foram 20 anos de guerra, com os guerrilheiros do Talibã enfrentando as forças do governo apoiadas pelas tropas dos Estados Unidos. O fim do conflito no país, pelo menos, aumentou a sensação de segurança dos civis. Conforme relatou Charlotte Rose, gerente regional de Mídia da Ásia do Save The Children, organização internacional com foco nos direitos das crianças e na ajuda humanitária, a população hoje não tem mais medo de ser acertada por bombas ou tiros. “Em áreas remotas, no deserto, por exemplo, o fim do conflito foi muito bem-vindo, porque muitas das comunidades ficaram sofrendo por décadas. E agora eles têm acesso a recursos que não tinham antes”, afirma Charlote, que mora em Cabul, capital do Afeganistão.

A tomada do poder pelo Talibã intensificou a crise humanitária e fez crescer o número de pessoas com fome e em outros estágios de insegurança alimentar. Mas, em muitos lugares, ficou mais fácil chegar ajuda. “As agências humanitárias da ONU e as ONGs também estão conseguindo acessar essas comunidades e dar o apoio necessário. Por exemplo, a Save The Children entrega água potável para crianças em áreas isoladas no deserto no norte afegão, algo impossível anteriormente”, conga a gerente da organização.

A adolescente Parishad (à direita) com seus pais e irmãos pequenos na casa sem banheiro e cozinha no norte do Afeganistão: fome e saudade da escola (Foto: Aashiqullah Mandozai / Save the Children)
A adolescente Parishad (à direita) com seus pais e irmãos pequenos na casa sem banheiro e cozinha no norte do Afeganistão: fome e saudade da escola (Foto: Aashiqullah Mandozai / Save the Children)

A fome na família de Parishad

Com a retomada de poder pelo Talibã, Parishad, de 15 anos, seu pai, Noorzad, sua mãe, Nableea, e seus cinco irmãos passaram a enfrentar diversas dificuldades. A família foi obrigada a deixar o lugar onde vivia e hoje mora em uma pequena casa – em Jawzjan, província do norte do Afeganistão – emprestada por parentes, sem banheiro ou cozinha. A alimentação da família depende da ajuda de terceiros e se Noorzad consegue algum tipo de trabalho.

Diante dessa situação, Parishad também parou de ir à escola, já que seus pais não conseguem bancar o material escolar. “Alguns dias, meu pai não consegue trazer alimento. Então, meus irmãos acordam à meia-noite e choram por comida. Eu não como e deixo meu alimento para meus irmãos e irmãs. Quando eles pedem comida, eu fico chateada e choro muito. Por isso, eu vou na casa de vizinhos e peço comida. Às vezes, eles me ajudam e me dão; e, às vezes, dizem que não têm o que me dar”, conta Parishad.

Aquele homem é mais velho que eu e eu tive um péssimo pressentimento de vender minha filha para ele, mas a pobreza o faz fazer coisas que você nunca imaginou em sua vida. Eu conheço 10 pessoas que venderam suas filhas para alimentar seus outros filhos

Momim
Afegão de 35 anos

A mãe das crianças, Nableea, sente a mesma frustração, principalmente, quando seus filhos demandam comida e ela não tem o que oferecer. Para amenizar a situação, ela sempre tenta colocá-los para dormir, a fim de ir procurar algum tipo de refeição. “Vou a todos em busca de comida e é desesperador, porque, quando eu consigo trazer um pouco de arroz para meus filhos, ele é devorado em um segundo por conta da fome que sentem.”

Parishad sente falta de ir à escola. Ela gostaria de estudar para se tornar médica ou professora e conseguir melhorar a situação financeira de sua família. A jovem afegã queria poder ter uma rotina normal e se sente frustrada ao ver meninas vivendo aquilo que ela sonha. “Eu adoraria ir à escola. Quando eu vejo outras meninas, elas estão comprando tudo e comendo no caminho para a escola. Eu me sinto muito frustrada e triste. Eu choro. E pergunto por que sou diferente de outras garotas”.

Mulher afegâ em Cabul: cotidiano de violência e restrição de direitos (Foto: Kyana Hayeri / Anistia Internacional)

Meninas à venda no Afeganistão

A situação de meninas e mulheres, no país, está cada vez mais dramática, segundo Nicolette Waldman, pesquisadora do Programa de Resposta a Crises da Anistia Internacional. Um dos principais pontos de violação é o direito à educação, já que o ensino fundamental público está suspenso para as meninas; somente escolas particulares se mantêm abertas para as jovens.

Na graduação, o cenário também não é favorável, conforme explica a especialista. “Apesar de não serem impedidas de irem à universidade, muitas estudantes desistiram de continuar estudando. Dentro da faculdade, elas sofrem discriminação e, por isso, não podem conversar com os professores homens, apresentar seus trabalhos ou, até mesmo, irem a administração”, relata a pesquisadora

Para uma afegã, ir para a prisão é nada menos que a morte. Meu pai não fala comigo há algum tempo. Minha família tem vergonha de mim. Ter ido para a prisão, arruinou minha família e meu futuro

Ex-detenta afegã

Nesse panorama de falta de perspectiva com o futuro das meninas, o casamento infantil voltou a crescer. A situação econômica e a crise humanitária são um dos fatores para esse aumento. Nicolette relatou que muitas famílias vendem as filhas para que elas possam ter o que comer.

Esse é o caso de Momin, de 35 anos, morador da província de Badghis, no noroeste do país, na fronteira com o Turcomenistão. “Aquele homem é mais velho que eu e tive um péssimo pressentimento ao vender minha filha para ele, mas a pobreza o leva a fazer coisas que você nunca imaginou em sua vida”, desabafa. “Quem quer fazer isso com seus filhos? Eu não tinha outra escolha… Eu sabia que ela iria sofrer. Eu sabia que ela enfrentaria muitos problemas, mas todas as portas estavam fechadas. . Eu não sou o único bairro a fazer isso… Eu conheço 10 pessoas que venderam suas filhas para alimentar seus outros filhos”, acrescenta o afegão.

O casamento também se torna a única esperança de um futuro para as meninas diante das faltas de oportunidade de estudo e emprego. Além disso, algumas famílias usam o casamento para impedir que o Talibã tome suas meninas e se case com elas. Enquanto outras casam as filhas com membros do Talibã a fim de garantirem a própria segurança.

As mulheres também estão com seu direito à circulação cerceado. O número de detenções arbitrárias aumentou consideravelmente e, normalmente, as mulheres são acusadas de corrupção moral. Segundo o relatório da Anistia Internacional sobre a questão, antes do Talibã, as mulheres não eram presas por circularem sem a companhia de um mahram (pai, irmão ou marido), algo que mudou e levou ao aumento da população carcerária feminina, conforme relataram agentes penitenciários ouvidos pela organização.

Dentro das prisões, essas mulheres sofrem com torturas e situações degradantes. Entretanto, elas também são penalizadas ao saírem do cárcere, muitas vezes pela própria família, por acreditarem que elas cometeram zina (relações sexuais fora do casamento), por exemplo.

Uma ex-detenta sofreu tanto estigma na sua comunidade, que precisou se mudar. “Para uma afegã, ir para a prisão é nada menos que a morte… Uma vez que você entra pela porta, você é rotulada para sempre… Meu pai não fala comigo há algum tempo. Um dia, ele me chamou para sua casa e me perguntou  por que eu o desonrei… Minha família tem vergonha de mim. Eu não posso viver com os meus pais… Já não há mais confiança em mim, nem auto-respeito, nem orgulho… Isso me quebrou completamente… Ter ido para a prisão, arruinou minha família e meu futuro.”

O receio entre as mulheres é tão grande, que a Women for Afghan Women, organização afegã que luta pelos direitos das mulheres, recusou o convite de participar de uma entrevista, a fim de garantir a segurança das trabalhadoras da organização.

Nicole Polo

Nicole Polo é jornalista com especialização em Política Internacional. É produtora de conteúdo na Alter Conteúdo Relevante e foi estagiária no Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil (UNIC Rio de Janeiro). Ativista feminista, integra a Marcha Mundial das Mulheres. Tem interesse em Direitos Humanos e no Direito Humanitário Internacional.

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