ODS 1
Mulheres trans e travestis em situação de rua estão mais vulneráveis a uma série de violências
“Com Nome, Mas Sem Endereço”, série especial do #Colabora, mostra que, apesar de alguns avanços, muitas mulheres trans e travestis ainda lutam por um direito básico: o acesso à moradia. Nas ruas, sofrem com violências verbais, físicas e até sexuais.
Segundo o relatório “População em situação de rua: Diagnóstico com base nos dados e informações disponíveis em registros administrativos e sistemas do Governo Federal”, em dezembro de 2022, 236.400 pessoas se encontravam em situação de rua no país. Conforme o documento divulgado em 2023, 62% dessa população se encontra na Região Sudeste, sendo São Paulo o estado com a maior proporção (40% do total). Com informações como distribuição espacial, idade, sexo, nível de instrução, formas de renda e acesso aos serviços de assistência, o relatório realizado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) ignora uma questão importante para compreender a diversidade desse grupo que utiliza as ruas como residência: a identidade de gênero. Essa falta de dados e políticas públicas deixa mulheres trans e travestis ainda mais vulneráveis às violações de direitos.
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“A população LGBTQIAPN+ em situação de rua é considerada tanto por quem estuda quanto por quem atua na assistência social como a mais vulnerável nessa condição”, afirma a professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ana Paula Mauriel. Apesar de poucos dados organizados sobre esse grupo, como houve um crescimento da população em situação de rua no geral, pesquisadores determinam que o mesmo aconteceu quando considerado o recorte de gênero, especialmente com a pandemia de Covid-19 entre 2020 e 2022. “No Brasil, não temos estudos específicos sobre população LGBTQIAPN+ que revelem essas séries históricas e que permitam afirmar qual foi o aumento, mas é um fenômeno que vem crescendo e se apresentando como demanda dos movimentos sociais para as equipes de abordagem e para os serviços de saúde e assistência”, complementa a docente.
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Veja o que já enviamosAs razões para irem para as ruas são diversas e, mesmo considerando de forma geral o grupo de pessoas sem endereço de moradia, independentemente da identidade de gênero e da orientação sexual, não é possível definir um motivo único para estarem e permanecerem nessa condição. “Não tem um motivo único que explique porque as pessoas vão para as ruas e continuam nelas, por isso, falam em um fator multissetorial, já que se trata de um fenômeno com muitas determinações, expressando tanto fatores estruturais da sociedade capitalista quanto conjunturais — sociais, econômicos e políticos —, que vem se agravando em função de crises financeiras e da forma como essas crises são gerenciadas”, explica a professora da Escola de Serviço Social da UFF.
O mesmo é válido para a comunidade LGBTQIAPN+ em situação de vulnerabilidade. Adicionado a “etiqueta” de identidade e expressão de gênero, às questões socioeconômicas também se somam violências enfrentadas desde a infância. Atriz, pedagoga, pesquisadora e diretora do Fórum Estadual de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro (Fórum TT RJ), Wescla Vasconcelos comenta que uma das razões que levam mulheres transexuais e travestis a automaticamente saírem da casa em que viveram é a não aceitação das famílias: “As famílias violentam, não aceitam, humilham e constrangem. A humilhação e o sofrimento mental que causam ao não entender a transexualidade é um dos principais pontos que faz as pessoas saírem de casa, o que eu, na verdade, não considero como ‘sair de casa’, mas sim como sendo expulsas”.
Vasconcelos explica que essa comunidade tem dificuldade de permanência na escola, diante de casos de violência de gênero no ambiente escolar, o que acaba gerando no futuro o despreparo técnico e profissional para estar no mercado de trabalho com possibilidades melhores de renda. E, quando conseguem uma vaga, passam pela discriminação institucional onde estão empregadas. Dessa forma, a expulsão de casa logo cedo, normalmente assim que começa o processo de transição, leva a outras questões como a falta de oportunidades, pela perda do acesso à escola e, no futuro, da possibilidade de ingressar no mercado formal. A diretora do Fórum TT RJ reforça: “A falta de oportunidades, de apoio da família, de estudo e de possibilidades no mercado de trabalho são fatores que também contribuem com a expulsão do corpo trans de dentro de casa”.
A professora Muriel traz que pessoas LGBTQIAPN+ desenvolvem questões da identidade de gênero e de orientação sexual que são contrárias ao padrão normativo. Sendo contrária à binaridade de gênero, a comunidade transexual e travesti é entendida dentro dos campos da Saúde, do Serviço Social e do Direito como pessoas que lidam com diversos preconceitos, opressões, violências e dificuldades ao longo da vida. Desde cedo, enfrentam a falta de aceitação no seio familiar, contribuindo para ter os laços familiares interrompidos e que também pode levar a situações de violência doméstica e outros tipos de agravo no ambiente familiar. O crescimento da extrema-direita, com discursos conservadores contra pessoas LGBTQIAPN+, leva à intensificação da discriminação contra esse grupo e também interfere na forma como pessoas que não correspondem aos padrões de gênero são tratadas pela sociedade.
Para a também ativista pelos direitos humanos das pessoas LGBTQIAPN+, o universo transexual é pautado pelo ódio e pela violência contra as pessoas que transicionam. “As violências que uma mulher trans ou travesti sofre são múltiplas, desde chamar de ‘ele’, pelo nome que não é seu, até negar a pessoa a ir ao banheiro. Já passei por várias situações como essa, de estar na faculdade e deixar de ir ao banheiro para não ser constrangida. Aguentava até chegar em casa, um apartamento que dividia com outros estudantes, só para não ir ao banheiro na faculdade e alguém dizer que aquele não era o meu lugar”.
Violências de todos os tipos
Além da transfobia que acompanha as mulheres transexuais e travestis, nas ruas as violências se intensificam. Nos espaços públicos, as pessoas LGBTQIAPN+ estão sujeitas a violência verbal e física por parte da própria população em situação de rua, a maioria do gênero masculino (87%), como define o relatório do MDHC, que “reproduzem o padrão normativo machista e sexista”, segundo Muriel. Ela acrescenta que mesmo na população LGBTQIAPN+ em situação de rua há diferenças de tratamento. “As mulheres lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis são as principais vítimas de violência verbal. Também são coagidas e violentadas fisicamente pela não aceitação da orientação sexual ou da identidade de gênero e, diante da pobreza material, são comuns propostas de trocas, de drogas ou alimentos, por sexo”.
Assistente social do Centro de Cidadania LGBTI Metropolitana I, em Niterói, Renata Marques pontua que mulheres trans e travestis negras estão suscetíveis a violências maiores, porque não enfrentam apenas situações de transfobia, mas também de racismo. Ela acrescenta que muitas das pessoas que chegam ao Rio de Janeiro são de outro estado, o que pode complicar a situação de vulnerabilidade por não conhecerem o território. “Os Centros Pops oferecem a possibilidade de voltar ao local de origem, mas muitas preferem permanecer onde estão. Um dos motivos pode ser a família, que em muitas situações pode ser um dos principais violadores de direitos dessas crianças e adolescentes, ainda mais se o local for muito conservador. Muitas vezes as pessoas saem da localidade em que moram para outra localidade, onde podem construir de fato a subjetividade com a qual se identificam”, observa, destacando a necessidade de um olhar interseccional para essa questão.
Wescla Vasconcelos ressalta a perturbação mental como uma das principais violências contra pessoas trans em situação de vulnerabilidade, quando, por não aceitarem a identidade com a qual a pessoa se identifica, querem violentá-la — “querem ‘desautorizar’ a pessoa a ser trans, como se ela não tivesse o direito sobre o próprio corpo”. Nesse sentido, também se insere a violência sexual contra pessoas transexuais e travestis, além de outras agressões como chutes, socos, arranhões e até atos mais cruéis como estrangulamento, cortes de partes do corpo e até mesmo assassinatos. De acordo com o Dossiê: Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2023, elaborado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2023 foram 145 casos de assassinatos de pessoas transexuais, sendo a vítima mais nova uma adolescente de 13 anos. A maioria delas, segundo o documento, foram mulheres transexuais ou travestis (94%), pretas ou pardas (72%) e com idade média de 30 anos. Mais da metade (54%) vivia da prostituição.
Para além do discurso de ódio abordado pelo Dossiê, que aponta o Brasil como o país que mais assassina pessoas trans no mundo pelo 15o ano consecutivo, o documento alerta para a subnotificação de dados, já que muitos casos de violência não são devidamente registrados. Ao comentar sobre o documento, Vasconcelos aponta para a desumanização das pessoas transexuais e travestis: “É como se perturbar a mente daquela pessoa, praticar violência contra ela, cortar o corpo dela, estrangular e matar não fosse o suficiente. Somem com o corpo, as famílias muitas vezes não têm acesso ao que aconteceu e as ativistas precisam correr atrás de o enterro ter pelo menos o nome correto, porque muitas vezes o sepultamento ocorre com o nome de batismo”, declara. “É como se a pessoa fosse morta e isso não fosse o suficiente, o corpo precisa sumir, ser jogado no matagal ou enterrado com o nome morto”, conclui.
Mesmo com as violências constantes, que geralmente partem de pessoas que não costumam ter relação direta, seja social ou afetiva, com a vítima, como aborda o Dossiê da Antra, mulheres transexuais e travestis constroem formas de sobreviver e resistir nas ruas. A geração mais nova, com menos de 30 anos, segundo Vasconcelos, “com toda uma luta, mantém uma conexão com a escola, seja ela problemática ou não. Há uma luta para conseguir o diploma e concluir os estudos”. Já a mais velha, com mais de 30 anos, para a atriz e pesquisadora é uma geração muito marcada pela prostituição como única forma de gerar renda, o que, como comenta o técnico jurídico do Centro de Cidadania LGBTI Metropolitana I, Guilherme Jacques, “gera quase um cenário de prostituição compulsória”, e entende o quadro como “compulsório” por “não haver outra opção”.
“A geração com menos de 30 anos hoje tem tido outras oportunidades além da prostituição para sobreviver, desde concluir os estudos e entrar na faculdade com as cotas para pessoas trans a conseguir um emprego, mesmo que informal, já a geração com mais de 30 anos é uma geração muito conectada com a questão da prostituição, então a ‘bicha’ tem que colocar silicone industrial no corpo e todas as madrugadas estar de calcinha e sutiã nas esquinas. Uma situação muito triste”, afirma Vasconcelos. Outra questão que a pesquisadora levanta é o ataque por parte de mulheres cisgêneras, sobretudo brancas, contra essas mulheres que recorrem à prostituição como meio de garantir renda.
Faltam políticas públicas e instrução para mulheres trans e travestis
Grande parte da população em situação de rua também tem dificuldade de acessar programas de transferência de renda pela falta de documentos ou pelo processo de informatização que torna os acessos possíveis apenas por aplicativos. A isso, soma-se a falta de instrução, sobretudo ao falar sobre mulheres transexuais e travestis, por serem pessoas que não conseguiram concluir os estudos ao serem expulsas de casas ainda no início da adolescência.
Para amenizar esse cenário de vulnerabilidade e violações contra os direitos das mulheres transexuais e travestis existirem, Marques destaca o investimento em políticas públicas, mas, primeiro, afirma ser “necessário pontuar sobre autonomia dessas pessoas e se elas querem, de fato, sair das ruas”. Acrescenta ainda que as escolas precisam ter um olhar mais humanizado e sensível em relação aos seus estudantes, sobretudo aqueles que integram a comunidade LGBTQIAPN+ — “se a escola se torna um ambiente violador, isso leva a uma situação de evasão escolar, que acaba acarretando outras questões, como a falta de empregabilidade”.
“Mulheres como um todo tem contribuído muito para o debate sobre políticas públicas para mulheres, mas ainda existe muita falha no sentido de políticas públicas que atinjam também travestis e transexuais, principalmente as negras”, traz Vasconcelos. A pedagoga define que para pensar em políticas públicas, é importante identificar as faltas de acesso e agir sobre elas, avaliando fatores socioeconômicos como estudo, raça, identidade de gênero, orientação sexual e território de origem e, a partir dessas informações, construir estratégias para superar a condição de vulnerabilidade. “Percebo que a política para pessoas em situação de rua é extremamente vulnerabilizada no Brasil, porque não há um interesse de Prefeituras, Estados e muito menos do Governo Federal para mudar diretamente essa realidade. Um exemplo são os prédios abandonados que, mesmo sem utilidade, continuam pertencentes a grandes famílias, em vez de serem desapropriados para pessoas em situação de rua que, muitas vezes, vão construir o seu primeiro lar ali. A política pública é importante para a nossa sociedade, ela deve existir e ser fortalecida”.
Esta reportagem faz parte da série especial “Com Nome, Mas Sem Endereço”. Clique na foto abaixo para conferir mais histórias.
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Estudante de Jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF), é fascinada por contar histórias com foco em desigualdades sociais, direitos humanos e questões de gênero. Na universidade, integrou o jornal O Casarão, a web rádio Nas Ondas do IACS e o projeto de pesquisa "Mídia, juventude e suicídio: um estudo sobre os padrões de cobertura da morte auto-provocada". Atuou como estagiária de redação na Agência Nossa e de assessoria de imprensa, com foco em divulgação científica, na UFF.