Representatividade feminina na literatura: o caminho da escrita feita por mulheres

Dia Nacional do Escritor: depois de séculos silenciadas, escritoras transformam o cenário literário, rompem estereótipos e ampliam vozes

Por Gabriela Antunes e Ana Carolina Conceição | ODS 5
Publicada em 25 de julho de 2025 - 09:10  -  Atualizada em 25 de julho de 2025 - 11:38
Tempo de leitura: 28 min

Professora e influenciadora Bruna Martiolli em participação especial no podcast de literatura “Ponto Final, Parágrafo”. Ela listou os melhores livros publicados em 2024 – (Foto: Reprodução)

A literatura sempre foi vista como uma forma de arte: é por meio dela que  histórias ganham forma e sentimentos são revelados. Ao longo do tempo, porém, esse universo foi dominado por nomes masculinos – Edgar Allan Poe, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, José Saramago, entre tantos outros. Mas e as mulheres?  Onde estavam –  e onde estão – as mulheres na construção literária? No mês em que é celebrado o Dia Nacional do Escritor (atenção para o gênero com o qual é batizado a data comemorativa, 25 de julho), escritoras discutem a participação feminina na literatura. 

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A escritora Renata Wolff, natural de Porto Alegre (RS), reconhece que o cenário literário atual é muito diferente do passado e atribui essa mudança às mulheres que lutaram por espaço no mercado editorial antes dela. “Agora as mulheres estão aí nos eventos literários, nos prêmios, nas bibliografias, ensinando, sendo reconhecidas. Fomos saindo do cantinho da prateleira para ocupar quaisquer espaços: caminhamos para a escrita de mulheres vir a ser nem mais nem menos do  que escrita (e da boa)”, afirma a escritora.

Portanto, ainda existem barreiras que não foram quebradas, que permanecem enraizadas na sociedade desde aqueles tempos antigos, em que o simples ato de uma mulher ler, era motivo suficiente para considerá-la histérica ou perigosa. Hoje em dia, esses estigmas existem de formas mais sutis, mas nas palavras de Renata, não deixam de ser menos insidiosos. 

A escritora relata que já enfrentou diversas dificuldades no mercado editorial e que compartilha da mesma visão de sua amiga, a também escritora Kali de Los Santos, que certa vez comentou que, no mercado literário, as mulheres parecem ser apenas toleradas. Segundo ela, é como se as portas fossem abertas, mas, uma vez lá dentro, espera-se que as escritoras permaneçam em silêncio, discretas em um canto da sala, como se o simples ato de deixá-las entrar já fosse mais do que suficiente. Renata acrescenta que isso acontece porque os grupos privilegiados sempre tentarão se manter no poder, e que é justamente por isso, que a escrita feminina deve continuar. 

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A professora Bruna Martiolli, mestre em Literatura de Língua Portuguesa e influenciadora digital literária, destaca que isso acontece porque vivemos em um mundo com a cultura feita e pensada pelo homem. Para ela, esse incômodo gerado no mercado editorial em relação à escrita feminina se deve ao rompimento dos padrões patriarcais que, como mencionado anteriormente, durante muitos anos descreveram as mulheres por meio de estereótipos como, por exemplo, nos clássicos Primo de Basílio e Madame Bovary, em que as personagens Luísa e Emma foram retratadas como mulheres adúlteras e moralmente condenadas. Segundo ela, recém estamos saindo desse cenário. As mulheres deixaram de ser apenas personagens escritas, descritas e interpretadas pelo olhar masculino, para serem consideradas uma pessoa política, como um ser integrado dentro da sociedade, e principalmente, com a voz ativa.

Um exemplo disso é o crescente número de mulheres recebendo indicações e prêmios literários, que conferem visibilidade e reconhecimento à escrita feminina. Ao participar dessas premiações, muitos livros ganham maior alcance e divulgação. Renata Wolff comenta que isso aconteceu quando foi finalista do Prêmio Jabuti. Seu livro Fim de Festa, após a indicação, recebeu diversas resenhas na internet e foi adaptado para o teatro, um projeto que, segundo a autora, talvez não tivesse acontecido caso o livro não fosse indicado ao prêmio. 

A autora afirma que esses prêmios ajudam a estimular novas escritoras, mas que os concursos literários são apenas uma parte do processo, como se fosse apenas um estímulo:Não é porque uma obra deixou de ser contemplada em seleções de concursos que não tenha valor literário ou não merecesse mais leitoras, de forma alguma. Quantas escritas fabulosas estão aí nas margens do mercado editorial? O prêmio, quando perdido, nunca pode desestimular”. Para Renata, os prêmios não são uma balança para conferir talento, e a escrita deve continuar, com ou sem as grandes premiações.

A escritora comenta que só o ato de conquistar espaço na prateleira já é um passo gigante. Porém, o que que falta depois disso, é o passo seguinte: “O sair da especificidade daquela prateleira (de literatura escrita por mulheres) para sermos consideradas, simplesmente, literatura. Não vejo a hora em que o campo de jogo esteja tão nivelado (e isso em termos de todos os atravessamentos: gênero, raça, classe, origem, etarismo, capacitismo) que as recomendações possam ser do tipo: aqui está um bom livro escrito por um ser humano, e pronto”. 

Esta separação dos livros por gênero (femino ou masculino) acaba estabelecendo muitas vezes estereótipos que colocam a escrita feminina em um lugar limitado, carregado de conotações de gênero que frequentemente reduzem as obras. A leitora Gabriela Molina, que criou um clube do livro com amigas, comenta que ainda percebe, em muitas pessoas, a ideia de que mulheres escrevem apenas romances. “Não é, e nunca foi, só romance. As mulheres estão em todas as áreas, e eu, particularmente, acho isso muito legal”, afirma.

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Eu faço muitas atividades com os alunos, uma delas é dividir a turma em grupos para lerem determinados autores. A partir disso, sempre algum aluno questiona o motivo de não ter nenhum título escrito por mulheres

Bruna Martiolli
Professora e influencer literária

Renata Wolff frisa que a literatura escrita por mulheres é plural e não pode ser tratada como um conjunto homogêneo. Segundo ela, é preciso romper com a visão ultrapassada de que a produção literária feminina se resume a determinados estilos ou temas. Adjetivos como “romantizada”, “intimista” ou “confessional”, historicamente usados para enquadrar as escritoras, precisam ser superados. Para Renata, a literatura feita por mulheres não deve ser reduzida à ideia limitada de uma “literatura feminina”.

Justamente nesse sentido, a professora Bruna Martiolli comenta que para ela, a forma correta de se pensar a literatura escrita pelas mulheres é a chamada “literatura real”. Esse termo se relaciona com a ideia de que a literatura antiga, escrita quase que inteiramente pelos homens, é algo irreal, já que as mulheres sempre existiram. “Então, se a mulher antes não estava dentro do círculo literário, e agora ela está, finalmente temos uma literatura de verdade, uma literatura realista com relação à vida. Para mim, literatura é literatura. E ponto”, afirma a professora. 

Compartilhando do mesmo pensamento, Renata ressalta que nem sempre buscou saber se as histórias que estava lendo era de um homem ou mulher, o que ela procurava, eram boas narrativas, e as encontrava, em literaturas reais: “O fato de que a minha turma preferida era composta de tantas mulheres prova que elas são tão universais quanto o pessoal do clube do Bolinha. Mas, do ângulo de gêneros e vertentes literárias, na minha opinião, literatura de mulheres é apenas literatura”, conclui a escritora.

Foto colorida de Renata Wolff em entrevista para o Jornal Matinal sobre sua estreia na poesia com o livro "Manhattan Lado B".
Renata Wolff em entrevista para o Jornal Matinal sobre sua estreia na poesia com o livro “Manhattan Lado B” – (Foto: Tania Morais)

As mulheres na literatura ao longo da história

A primeira lei que autorizou a abertura de escolas voltadas ao ensino de meninas no Brasil data de 1827. Antes disso, apenas aquelas que vinham de famílias mais ricas tinham acesso à educação, geralmente com professoras particulares ou em conventos, onde o ensino era conservador e voltado à formação para o espaço doméstico. Mesmo quando eram educadas, prevalecia a ideia de que as mulheres deveriam aprender a costurar, cozinhar e desempenhar tarefas ligadas ao casamento, ou seja, eram preparadas para se tornarem boas esposas e donas de casa. 

Esse cenário de exclusão educacional teve impacto direto na produção literária. Apesar da invisibilidade, as mulheres sempre estiveram presentes na literatura, embora muitos de seus escritos tenham sido guardados ou até mesmo perdidos com o tempo. Em diversos momentos, precisaram recorrer a pseudônimos para esconder suas verdadeiras identidades, já que o poder sobre a escrita e, consequentemente, sobre a literatura, era dominado por homens. Essa prática tem origem antiga, entre o século XIX e meados do século XX,  quando autoras precisavam fugir dos estereótipos impostos à escrita feminina e conquistar o público sem enfrentar o preconceito. 

Um exemplo na literatura brasileira foi Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira mulher a publicar um romance no Brasil. Ela utilizou o pseudônimo “uma maranhense” para não chamar a atenção, visto que, além de ser uma mulher, era negra, o que tornava sua presença no mercado literário ainda mais desafiadora. Sua obra Úrsula, publicada inicialmente em folhetins, retratava personagens negros por um ponto de vista mais positivo e humano, com um viés abolicionista. Esse livro é considerado o primeiro romance da literatura afro-brasileira e o primeiro livro publicado por uma mulher negra em toda a América Latina.

O uso de pseudônimos não é uma prática exclusiva de escritoras brasileiras e esteve presente em diferentes partes do mundo. Um grande exemplo disso são as Irmãs Brontë, Charlotte, Emily e Anne, consideradas três das maiores escritoras da literatura inglesa. Para terem suas obras publicadas e aceitas pela sociedade, elas adotaram nomes masculinos: Currer, Ellis e Acton Bell, respectivamente. As irmãs são autoras de clássicos consagrados no mundo literário, como Jane Eyre, Morro dos Ventos Uivantes e Agnes Gray. Em uma carta, Charlotte Brontë explicou o motivo da escolha: suas irmãs não gostavam de revelar que eram mulheres “porque, como nossa forma de escrever e pensar não era o que se chama de ‘feminino’, tínhamos a impressão de que seríamos vistas com preconceito enquanto autoras”.

Eu fico muito feliz que elas vêm ganhando mais espaço. Porque hoje em dia tem tantas escritoras incríveis que encontraram na internet um lugar que elas possam divulgar o seu trabalho

Eduarda Costa
Influencer literária

Essa prática ainda persiste nos dias de hoje, por meio de pseudônimos ambíguos, ou seja, nomes sem indicação clara de gênero ou compostos por iniciais seguidas de um sobrenome. A escritora britânica J.K. Rowling, famosa pela saga Harry Potter, escondeu seu primeiro nome por sugestão da própria empresa que publicou suas obras, já que, segundo o editor, o uso da abreviação nos seus primeiros nomes facilitaria que os livros fossem lidos pelo público masculino. 

As primeiras publicações de livros escritos por mulheres no Brasil surgiram durante o período do Romantismo, em meados do século XIX. Em 1832, Nísia Floresta Brasileira Augusta publicou o livro “Direito das mulheres e injustiça dos homens”, adaptação européia. Segundo a autora, a colonização portuguesa foi a responsável por consolidar a concepção de superioridade masculina. Ela defendia a ideia de que, mesmo homens e mulheres sendo diferentes fisicamente, as mulheres eram iguais de alma. Para a autora, a noção de inferioridade feminina não tinha base biológica , mas sim social. Ela também destacava  que as mulheres eram, tanto quanto os homens, seres pensantes.

Os livros são considerados, por muitos historiadores, uma extensão da sociedade. O fato de as mulheres precisarem esconder seu gênero e a população, em geral, não se lembrar de suas contribuições na literatura revela que ainda vivemos em uma sociedade permeada pelo machismo e isso não é recente.

Até meados do século XX, o mercado editorial era dominado por homens. As personagens femininas, quando presentes, eram frequentemente sexualizadas, idealizadas e, quase sempre, retratadas de formas estereotipadas. Muitas escritoras foram apagadas da história simplesmente por serem mulheres. Inferiorizadas e afastadas da vida social e política, suas opiniões eram ignoradas pela sociedade da época.    Essa exclusão fica evidente  no reduzido número de livros publicados por autoras no Brasil até então. 

Esse apagamento das mulheres na literatura foi reflexo direto da própria estrutura literária, marcada pelo predomínio dos homens, tanto escrevendo quanto decidindo o que merece ser lido. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Brasília (UnB) aponta que, ao longo de 50 anos, apenas cerca de 40% dos personagens criados por autores eram mulheres. Quando presentes, as figuras femininas ocupavam papéis secundários, muitas vezes retratadas somente como um interesse amoroso, sem um desenvolvimento próprio dentro da narrativa. Isso é evidente no clássico Dom Casmurro, de Machado de Assis, em que Capitu, embora central na história, é inteiramente moldada pela perspectiva de Bentinho. Sua personalidade é reduzida à desconfiança do narrador, que projeta nela suas inseguranças: “Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu… Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! a adulação!”. No fim, a complexidade da personagem é resumida em uma polêmica: “Capitu traiu ou não traiu?” e, consequentemente, sua voz é silenciada.

Historicamente, esses padrões demoraram a ser questionados e desconstruídos. Foi apenas com o avanço dos movimentos feministas que essa realidade começou a mudar. As mulheres passaram a reivindicar o direito ao trabalho, à igualdade de direitos no mercado e ao sufrágio universal. Elas queriam ser vistas, ouvidas e lidas como iguais.

Como resultado dessas lutas e transformações, escritoras como Lygia Fagundes Teles, Nélida Piñon, Ana Maria Machado, Clarice Lispector, Conceição Evaristo, Cora Coralina, Cecília Meireles e Carolina Maria de Jesus passaram a ocupar lugar de destaque na escrita brasileira, ajudando a reconstruir a literatura contemporânea.

A escritora Cassandra Rios foi a primeira mulher brasileira a vender um milhão de cópias, marca alcançada em 1970, superando nomes consagrados como Jorge Amado e Érico Veríssimo. Suas obras enfrentaram forte repressão no período do regime militar por abordarem temas como o erotismo, a homossexualidade e a liberdade feminina. Cassandra tornou-se a escritora mais proibida da ditadura, o que evidencia o quanto a sua produção literária desafiava os padrões de uma sociedade patriarcal. 

Em 1977, Rachel de Queiroz se tornou a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL). Graciliano Ramos, por sua vez, jurava que os livros dela haviam sido escritos por um homem, pois achava impossível que uma mulher escrevesse um romance tão bom.

Mesmo com avanços importantes, como a entrada de uma mulher na ABL e o sucesso comercial inédito de uma escritora, a desigualdade no campo literário ainda é evidente. Uma pesquisa da UnB revela que cerca de 70% dos livros publicados por grandes editoras brasileiras entre 1965 e 2014 foram escritos por homens, um dado que escancara o quanto ainda é preciso melhorar. Ainda assim, as mulheres seguem escrevendo, resistindo e transformando a literatura com suas palavras.

Foto colorida de Eduarda Costa. Ela é uma mulher negra de cabelos pretos e usa uma touca e um casaco jeans. Ao fundo, estante de livros
Eduarda Costa publica conteúdos literários no Instagram, TikTok e YouTube, sendo seguida por milhares de fãs em todas as plataformas. Somente no Instagram, o número chega a aproximadamente 19 mil – (Foto: Arquivo Pessoal)

Um universo compartilhado pela literatura

Além da diversidade de temas e gêneros explorados por autoras, como destaca Gabriela Molina, há também um aspecto afetivo e identitário na relação entre as leitoras e suas referências literárias. 

Pensando justamente nessa universalidade da literatura, a influenciadora digital Eduarda Costa, que compartilha com milhares de fãs na internet suas resenhas e indicações de livros, comenta que sempre gostou de ler, mas depois que teve o primeiro contato com os livros da escritora Paula Pimenta, não conseguiu se ver longe da literatura. “Parece que cada vez que eu fui lendo, eu fui me identificando mais. Então, qualquer universo que traga isso da experiência feminina, eu acho muito legal. Porque a gente cria uma comunidade. Tanto é que se eu encontro uma menina que leu Paula Pimenta, mesmo que eu nunca tenha falado com ela na vida, eu vou conseguir conversar com ela como se ela fosse minha melhor amiga. Porque a gente passou por uma experiência parecida”, afirma a leitora.

O professor Jordane Alves, licenciado em letras, mestre em linguística e idealizador do projeto Conta Aí, uma iniciativa que promove rodas de conversa literárias entre os estudantes, reafirma justamente esta questão. Segundo ele, existem diversas realidades, assim como muitas formas de ser mulher no Brasil, porém, ao ter esse contato com a literatura, as realidades que antes pareciam distantes, de alguma forma, se aproximam: “por exemplo, ao mesmo tempo que você sofre, uma outra menina, diferente e distante de você, também passa por esse mesmo sentimento ao ler um determinado livro. Então eu acho que o poder da literatura é isso. Ao mesmo tempo que ela consegue nos mostra as nossas distâncias, ela é capaz de nos aproximar de alguma forma. Algumas dores, alguns sofrimentos acabam se tornando, de certa forma, semelhantes”. 

Eduarda reforça essa ideia ao evidenciar como os leitores, especialmente as mulheres, conseguem se enxergar nas personagens e encontrar um espaço de acolhimento dentro da literatura: “É muito especial termos esse espaço seguro dentro da literatura, onde podemos nos identificar, nos emocionar e não sermos julgadas por isso, justamente porque fazemos parte de um grande grupo que viveu experiências semelhantes”.

Como a literatura está se apresentando nas escolas?

O incentivo à leitura pode vir de muitas formas: pelos pais, como no caso da Eduarda; pela   influência dos amigos; ou até mesmo pelos meios tradicionais, como a escola.

Segundo o professor Jordane Alves, a leitura é uma competência global, essencial para todo o processo de aprendizagem. Ao ler, diversas habilidades são desenvolvidas, como a interpretação, que é fundamental tanto para compreender fatos históricos quanto para atuar em áreas de exatas, como interpretar corretamente uma questão de física ou um gráfico geográfico. Além disso, a leitura é uma ferramenta fundamental para o desenvolvimento da escrita. 

Nesse sentido, o professor esclarece que é comum se esperar que apenas os professores da área de linguagens sejam responsáveis por cobrar leitura, escrita e interpretação, porém, isso é um equívoco. A leitura é uma competência de todas as áreas do conhecimento, é algo macro, e deve ser incentivada de forma ampla, não apenas no campo linguístico.

“Fica muito nas costas de um profissional só, o que dá uma certa desmotivação. Já existe uma predisposição para o não. Por exemplo, sempre é pensado que não vamos conseguir convencer os alunos a lerem, que agora eles só querem ficar na internet, que jamais vão ler um livro inteiro. Então, existe uma visão definitiva de que adolescentes e jovens não leem, e eu tento, de uma maneira meio solitária, dizer que eles leem, sim, que não é porque eles têm a internet agora que eles não vão ler. A gente viu que tem uma galera aí que lê, então vamos botar esse povo pra ler, para ir além das redes sociais”, pontua o professor. 

Nesta mesma lógica, em muitas escolas existe a falta da pessoa que orienta a leitura, que sugere, que estimula e que convida o aluno a se envolver com o mundo literário, e muitas vezes, isso é a única coisa que falta, para o professor, o ato de convidar os alunos para fazer uma roda de leitura, pode acabar vir sendo “o fósforo e o gravetinho para a chama da leitura acender” ressalta o professor.  

Foto colorida de alunos reunidos no projeto literário "Conta Aí" no Instituto Federal Farroupilha, campus São Borja
Projeto literário “Conta Aí” no Instituto Federal Farroupilha, campus São Borja – (Foto: Jordane Alves)

A professora Kelen Rodrigues Acosta, que dá aulas de língua portuguesa para educação infantil, esclarece que o ato de chamar os alunos para ler é algo extremamente importante: “hoje em dia, os alunos estão muito mais nas telas do que nos livros. Se eu não trouxer esse hábito de leitura pra dentro da sala de aula, eles dificilmente levarão isso para casa”. Kelen observa que a escola tem um papel fundamental no acesso à leitura, e que para ela, é gratificante perceber que os seus alunos estão se dedicando e gostando de ler. “A nossa profissão é difícil, e trabalhar com crianças exige muito. Mas se a gente gosta do que faz e tenta as coisas, elas acontecem, e se a gente não tentar, nunca vai sair do lugar. O trabalho final acaba sendo sempre muito bom. É bom ver quando eles se esforçam e realizam leituras com excelência”, destaca a professora. 

Mas além do incentivo à leitura, a escola também acaba sendo o início e a base para muitos questionamentos. Pensando nisso, uma série de atitudes podem acabar contribuindo para questionar a desigualdade de gênero dentro da literatura, amplificando vozes e visibilidade para a escrita feminina. 

A professora Bruna comenta que para isso acontecer, ela estabelece um método que ela considera como socrático: “Eu faço muitas atividades com os alunos, uma delas é dividir a turma em grupos para lerem determinados autores. A partir disso, sempre algum aluno questiona o motivo de não ter nenhum título escrito por mulheres. E daí, depois dessa percepção que eles mesmo têm, eu começo os debates”. Para a professora, é importante que as vezes os alunos sejam os próprios protagonistas do ensino, pois segundo ela, os alunos não devem ser considerados tábuas rasas, eles são capazes de compreender caso o ensino seja dado de forma paciente e com o incentivo para a reflexão, já que é necessário que eles tenham antes um exercício inserção dentro da leitura, para só depois, compreenderem as questões de gênero.

Outro ponto importante, é a conscientização dos espaços dedicadas à esses títulos femininos, no caso das escolas, são as bibliotecas. De acordo com o professor Jordane, as escolas precisam se adaptar às mudanças literárias, acrescentando nas prateleiras as autoras contemporâneas, principalmente brasileiras. Mas para além da biblioteca, dentro da sala de aula também. “Nós já lemos muito homens nesses dois mil anos e pouco, então, temos que levar pra dentro da sala de aula escritoras, poetas, mulheres que são referências políticas. Mas sem cair na armadilha de dizer que não é pra ler homens. Eles também escreveram coisas importantes. A ideia é ler os dois sem distinção”, esclarece o professor. 

Jordane também observa que está surgindo um movimento que aponta para mudanças significativas no cenário da literatura dentro das escolas, em comparação com alguns anos atrás. Como exemplo desse contraste, Bruna Martiolli relembra que, durante sua época escolar, havia muitas restrições de leitura: livros de Clarice Lispector e até mesmo de José Saramago não eram permitidos. Ela conta que, certa vez, seu pai precisou ir até a escola para buscar um livro que havia sido recolhido.

Então, diante desse cenário, a literatura avançou em muitos aspectos nos dias de hoje. O professor comenta que existe um movimento bonito de ressignificação: “Os alunos sabem quem é Djamila Ribeiro, eles sabem quem é a Conceição Evaristo, assim como diversas outras autoras. Então eu percebo que algo está acontecendo, não é uma coisa da nossa cabeça, existe um movimento bem bonito, que está dando pra literatura uma nova cara, principalmente uma literatura mais feminina, e também, com mais melanina”.

Foto colorida da professora Kelen Acosta é especialista em literatura brasileira e desenvolveu um projeto para os seus alunos chamado Café Literário
A professora Kelen Acosta é especialista em literatura brasileira e desenvolveu um projeto para os seus alunos chamado Café Literário – (Foto: Arquivo Pessoal)

A literatura nas redes sociais

Com o avanço da internet e o crescimento das redes sociais, as comunidades literárias se tornaram mais visíveis e passaram a abrigar um número cada vez maior de leitores. O TikTok, especialmente por meio da hashtag BookTok, tem se consolidado como uma das principais ferramentas para atrair novos leitores e incentivar o hábito da leitura. De acordo com escritores e pesquisadores, a plataforma tem exercido grande influência sobre a escolha das leituras. 

Livros que viralizam no BookTok constantemente se encontram entre os mais vendidos. Obras como “Os Sete Maridos de Evelyn Hugo”, de Taylor Jenkins Reid, “A hipótese do amor”, de Ali Hazelwood, e “Mentirosos”, de E. Lockhart, são alguns exemplos de títulos que ganharam destaque mundial a partir da repercussão na plataforma. Um dos fenômenos literários mais recentes é “Quarta Asa”, de Rebecca Yarros, que viralizou no TikTok e alcançou enormes proporções, a ponto do último livro da série, até o fechamento desta reportagem, ter uma pré-venda de 2.5 milhões de livros. 

Durante o período da pandemia, a busca pela literatura aumentou significativamente. Muitas pessoas redescobriram ou descobriram o prazer da leitura em meio ao isolamento social. Segundo dados do Quarto Painel do Varejo de Livros no Brasil, divulgado em 2020, entre março e abril houve um aumento da procura de ebooks e vendas online de livros físicos. Nesse contexto, o TikTok  se destacou como um espaço de troca entre os leitores, passando a ditar tendências e influenciar diretamente o mercado editorial. Com isso, é perceptível que as redes sociais, quando bem utilizadas, conseguem transformar a vida de uma pessoa.

Muitos criadores de conteúdo literário, como Paola Aleksandra, afirmam que estamos diante de uma nova onda de leitores impulsionados pela internet. Anos atrás, o Youtube desempenhou um papel fundamental na formação de leitores e no surgimento de criadores voltados para a literatura. Esse crescimento tem contribuído para, além do aumento da leitura, também para o fortalecimento da literatura produzida por mulheres. Essas plataformas permitiram que escritoras e leitoras ganhassem mais visibilidade e espaço para se expressarem livremente. 

Eduarda Costa, mais conhecida como Dudinha, começou a sua jornada como influencer literária muito jovem, por volta de 2015, quando passou a mostrar seus livros, fazer resenhas e até ler trechos das obras em seus vídeos. Em suas redes sociais, ela acompanha o movimento de valorização da escrita feminina: “Eu fico muito feliz que elas vêm ganhando mais espaço. Porque hoje em dia tem tantas escritoras incríveis que encontraram na internet um lugar que elas possam divulgar o seu trabalho. Tantas meninas que produzem conteúdo pro BookTok também, sem medo nenhum de falar que elas choram com o livro, que elas surtam com o livro, sabe? (…) Então, tá tudo bem a gente surtar com os livros. Tá tudo bem a gente chorar com os livros. E que a gente busque cada vez mais ler escritoras femininas. Porque elas vêm ganhando mais espaço nesse mercado. E eu fico extremamente feliz. Porque são tantas mulheres talentosas. Então, eu sempre estarei aqui para aplaudi-las”.

Ela também acredita que as redes sociais ajudam as mulheres a se sentirem mais representadas e à vontade para expressarem seus sentimentos sobre os livros: “Eu acho que é muito legal que hoje em dia as mulheres não têm medo de mostrar esses hobbies e mostrar, tipo, toda essa loucura sem serem julgadas. Porque aí as meninas ficam sem vergonha de serem quem elas são na internet ou entre amigos”.

Sempre busco dar mais espaço mais visibilidade mesmo para escritoras femininas até porque elas são as que eu mais leio

Eduarda Costa
Influencer literária

Além de criadores de conteúdos, profissionais da área também reconhecem o impacto positivo da internet na divulgação da literatura. A professora e influencer literária Bruna Martiolli também destaca que as redes sociais têm sido essenciais para descobrir novos autores e tornar o acesso ao universo literário mais democrático: “A internet é um espaço em que eu descubro muita gente, que eu descubro muitos autores e autoras,  então é muito rico pra mim nesse sentido, é por isso que eu tô nas redes sociais mesmo. E eu acho que o compartilhar, o falar e, sobretudo, identificar que a literatura não é algo sacro, imaculado só pra quem tá dentro das pesquisas e só pra quem é muito erudito, é uma coisa que precisa ser disseminada e democratizada urgentemente,  principalmente com os jovens”.

Martiolli também faz um alerta sobre o consumo excessivo de obras estrangeiras: “Tenho muitos receios quanto a isso, porque nós somos falantes da língua portuguesa, nós somos falantes da língua da poesia, nós temos muito mais pra dizer e pra aprender. Então, eu acho que é, sobretudo, importante ler uma literatura produzida por mulheres e pela nossa gente,  pelo nosso próprio idioma”.

Nesse cenário de valorização da escrita feminina, surgiu uma campanha para a disseminação da leitura de livros escritos por mulheres dentro das redes sociais, através da hashtag #LeiaMulheres, inspirada pela iniciativa internacional #ReadWomen2014, criada pela escritora Joanna Walsh em 2014. No Brasil, o movimento ganhou força e se transformou no projeto Leia Mulheres, idealizado em 2015 por Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques. A hashtag rapidamente se espalhou pelo Twitter, Facebook e Instagram, sendo usada para indicar, recomendar e valorizar livros escritos por mulheres. A força do movimento continua até os dias de hoje, principalmente no Instagram e TikTok, onde criadores de conteúdo e os próprios leitores continuam usando a hashtag para divulgar o trabalho de escritoras e fortalecer a presença feminina no mercado literário.

Atualmente o projeto Leia Mulheres conta com clubes de leitura no Brasil e no exterior, dedicados à leitura de obras escritas por mulheres. Os encontros, gratuitos e abertos ao público, acontecem em livrarias, centros culturais e no formato online, democratizando ainda mais o acesso a obras literárias de autoras. A mediação do clube é feita por mulheres de diferentes profissões, que leem os mais variados estilos literários, de clássicos a contemporâneos, de nacionais a internacionais. 

Mais do que leitora, Dudinha reconhece ainda a responsabilidade que tem enquanto influencer no incentivo à leitura de obras escritas por mulheres:“O meu papel na sociedade é esse. Tudo que a gente puder fazer para mudar esse cenário nem que sejam pequenas atitudes a gente tem que fazer. Então eu, com a minha estante que acho que é 70% de escritoras femininas, sempre busco dar mais espaço mais visibilidade mesmo para escritoras femininas até porque elas são as que eu mais leio elas são as que eu mais me identifico elas são as que eu mais gosto, geralmente. Então, sempre que eu puder vou estar indicando escritoras femininas e aumentando cada vez mais essa comunidade de leitoras maravilhosas”.

Diversos influenciadores digitais presentes no nicho literário, seja no TikTok, Youtube ou Instagram, acreditam que, por meio da grande visibilidade das redes sociais, é possível sim ampliar o espaço das mulheres no mercado editorial. Eduarda Costa ainda ressalta: “Quanto mais mulheres no mercado de trabalho, seja literário ou não, melhor. Então, a minha parte, que é divulgar os livros que eu amo, eu tô fazendo, e eu espero que, com isso, eu consiga incentivar cada vez mais pessoas a consumirem esse tipo de conteúdo, consumirem mais autoras, e divulgarem, e fazerem cada vez mais. No boca a boca mesmo, a gente vai transformando o mundo”.

Livros escritos por mulheres que você precisa ler

  1. Antes do Baile Verde, da Lygia Fagundes Telles
  2. A Hora da Estrela, da Clarice Lispector;
  3. Olhos D’Água, da Conceição Evaristo; 
  4. A Pequena Coreografia do Adeus, da Aline Bei;
  5. Mulherzinhas, de Louisa May Alcott;
  6. Orgulho e Preconceito, da Jane Austen; 
  7. Jane Eyre, Charlotte Brontë;
  8. O Conto da Aia , de Margaret Atwood;
  9. Fim de Festa, da Renata Wolff;
  10. Pessoas Normais, da Sally Rooney. 

Gabriela Antunes e Ana Carolina Conceição

Gabriela Fonseca Antunes, estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), campus São Borja (RS), atua, desde 2024, no Projeto Rádio Unipampa, no programa Unipampa Informa, que cobre notícias da universidade e da comunidade local, e integra o grupo de pesquisa “A perspectiva hedonista no cinema”; Ana Carolina de Moura Conceição, estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), atua na Assessoria de Comunicação Institucional (Ascom) da Unipampa, participou como bolsista voluntária do projeto Crônicas da Cidade, veiculado na Folha de São Borja, e também integra o grupo de pesquisa “A perspectiva hedonista no cinema”

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