O pastor Milton Ribeiro não foi o primeiro ministro da Educação do governo Bolsonaro a mostrar seu desprezo às universidades. Seu antecessor Abraham Weintraub as considerava antros de balbúrdia e espalhava fake news sobre extensas plantações de maconha. O primeiro ministro da Educação nomeado por Bolsonaro, Ricardo Vélez Rodríguez, também defendia que universidade não devia ser para todos, mas “reservadas para uma elite intelectual”, pregou, ainda em 2019.
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As argumentações de Ribeiro e Vélez são semelhantes, igualmente elitistas e totalmente primárias porque desconhecem a realidade do país. A universidade, no Brasil, é para privilegiados – mesmo com a política de cotas, o estímulo a bolsas e a criação de novos cursos (tudo em governos anteriores). Para não esquecermos, o atual ministro disse, em entrevista à TV Brasil, que a “universidade deveria, na verdade, ser para poucos, nesse sentido de ser útil à sociedade”. A frase de Ribeiro faz parte de uma velha argumentação de que há mais oportunidades para técnicos do que profissionais com ensino superior. “Tenho muito engenheiro ou advogado dirigindo Uber porque não consegue colocação devida. Se fosse um técnico de informática, conseguiria emprego, porque tem uma demanda muito grande”, continuou o pastor.
[g1_quote author_name=”Mário Sérgio Cortella” author_description=”Professor, filósofo e doutor em Educação” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O problema do Brasil não é excesso de universidade; é falta de emprego. O ensino superior já é para poucos. Estatisticamente, a fala indica um futuro que já é presente. Qualidade sem quantidade não é qualidade, é privilégio
[/g1_quote]Naturalmente, não mostrou qualquer dado sobre a pujança do mercado para técnico de informática (a expressão embute certo desconhecimento sobre tecnologia da informação). Mas nem foi original. Vélez Rodríguez – nascido na Colômbia, discípulo de Olavo de Carvalho – usara os mesmos argumentos. “Não faz sentido um advogado estudar anos para virar motorista de Uber. Nada contra o Uber, mas esse cidadão poderia ter evitado perder seis anos estudando legislação”, disse, em entrevista ao Valor, repetindo o argumento de que o ensino técnico garante retorno financeiro maior e mais imediato, sempre sem dados.
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Veja o que já enviamosEstudo de 2019 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que avaliou as 45 nações membros ou parceiras da organização, mostrou que apenas 21% dos brasileiros de 25 a 34 anos têm Ensino Superior Completo. Na Coreia do Sul, país muito citado pelo seu desenvolvimento, 70% da população entre 25 e 34 anos concluíram o ensino superior; nos Estados Unidos, tão querido pelos bolsonaristas, a porcentagem é de 49%. O Brasil também está atrás de todos os países da América Latina incluídos na pesquisa: México (24%), Colômbia (30%), Chile (34%) e Argentina (40%).
A mesma pesquisa explica ainda por que é natural os jovens sonharem com a universidade. Os brasileiros formados no Ensino Superior ganham, em média, mais do que o dobro (140%) de quem só cursou o Ensino Médio – o que, na verdade, também é uma distorção. A média entre os países da OCDE é de um salário 40% maior para quem tem o diploma de graduação. Mas, no Brasil, onde são poucos a alcançar o ensino superior, o diploma é mais valorizado. A universidade aqui – não custa repetir – já é para poucos. E olha que melhorou: em 2008, eram 11% dos brasileiros com ensino superior completo naquela faixa. O percentual quase dobrou com a criação de 18 universidades federais nos governos Lula e Dilma e, principalmente, com os incentivos ao ProUni e ao Fies.
Os ministros de Bolsonaro gostam de falar de ensino técnico de nível médio, mas não consta qualquer iniciativa do MEC para fortalecer o ensino profissional e tecnológico a não ser a criação de um novo Catálogo Nacional de Cursos Técnicos (CNCT). Nas entrevistas (na de Vélez em 2019 e na de Ribeiro em 2021), inexiste citação ao Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), criado exatamente para ampliar a oferta de cursos, particularmente no ensino médio. Sem querer provocar, de 2002 a 2014 foram criados mais de 300 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia – todos eles, com obrigação de ofertarem metade de suas vagas para o ensino médio. O governo Bolsonaro prioriza a criação de escolas cívico-militares.
O problema do Brasil, com quase 15 milhões de desempregados, é a falta de oportunidades para quem quer trabalhar com qualquer formação. Sei que os ministros da Educação não parecem gostar de dados, mas vamos lá: de acordo com o IBGE, a taxa de desemprego para pessoas com ensino médio completo ou superior incompleto foi de 17,5%, o dobro da registrada para o nível superior completo (8,3%). Quanto mais escolaridade, aliás, mais inserção: a taxa de desocupação para as pessoas que tem até o ensino médio incompleto está em 24,4%.
Em sua coluna na CBN, o professor Mario Sergio Cortella, doutor em Educação, criticou a fala do ministro. “O problema do Brasil não é excesso de universidade; é falta de emprego. O ensino superior já é para poucos. Estatisticamente, a fala indica um futuro que já é presente. Qualidade sem quantidade não é qualidade, é privilégio. Ela não é só elitista, ela é equivocada”, atestou. “Não é exclusão ou contradição entre a formação técnica e profissional e a formação no ensino superior, é preciso ampliar o acesso aos dois. Não dá para você abaixar o rio, em vez de levantar a ponte”.
O presidente da SBPC, Renato Janine, ex-ministro da Educação, classificou como “muito equivocada” a manifestação de Milton Ribeiro. “Naturalmente, nenhum país tem todas as pessoas formadas no ensino superior. Mas o Brasil começou a se civilizar quando dobrou o acesso à universidade. Mesmo assim, sua taxa de 21% ainda está longe dos nossos vizinhos como Argentina e Chile”, apontou Janine ao participar do programa jornalístico Sua Excelência, O Fato, no YouTube. “A quantidade de cursos superiores ainda é pequena e a qualidade das instituições com fins lucrativos fica muito a desejar, ainda está longe da qualidade do ensino nas instituições públicas, como também das confessionais e comunitárias”, analisou, criticando ainda a falta de investimento no Pronatec.