ODS 1
Por todas as famílias, eu voto…
Dicionário 'Houaiss' vai mudar verbete para não mais restringir o núcleo familiar a homem, mulher e filhos
“Pela minha família, eu voto sim” . A frase – ouvida à exaustão durante a votação da admissbilidade do impeachment na Câmara dos Deputados, no último domingo, 17 – embutia não só a rejeição ao governo da presidenta Dilma, mas também a defesa da formação mais tradicional de família (homem, mulher e filhos) e a recusa em aceitar os novos arranjos familiares que, segundo dados do IBGE, já são maioria no Brasil. Com repetidas referências a Deus e críticas à cartilha de diversidade sexual nas escolas, entre outros avanços, não há como imaginar que aqueles parlamentares se referiam a casas chefiadas por mães ou pais solteiros, a avós que criam os netos, a casais homossexuais etc. Mas o significado dessa palavra, já ampliado na sociedade, está prestes a mudar também no “Grande Dicionário Houaiss”, num impulso dado pela campanha Todas as Famílias. No site, qualquer pessoa pode enviar a sua própria definição.
– Esse material será colhido, filtrado por especialistas e depois entregue a nós, o grupo dos Dicionários Houaiss, para tentarmos obter uma definição o mais exata possível do que anda pelo ar. Como esse processo de coleta ainda não começou, não é possível saber como será essa nova definição, se vier a acontecer – explica Mauro de Salles Villar, coautor do Grande Dicionários Houaiss e diretor do Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia.
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Veja o que já enviamosO dicionário, portanto, é todo ouvidos ao que se passa na vida real, bem distante do texto do retrógado Estatuto da Família, aprovado no ano passado por uma comissão especial da Câmara. Villar explica que o “Houaiss” registra e data os sentidos que as palavras tiveram historicamente, mas que as situações sociais e o entendimento das pessoas se movimentam continuamente e são dinâmicos.
[g1_quote author_name=”Mauro de Salles Villar” author_description=”Coautor do Grande Dicionário Houaiss” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]o que faz um dicionário prosseguir vivo é a sua atualização e sua sensibilidade às questões da vida que se desenrola sem parar. Caso contrário, sua função e utilidade se anulariam.
[/g1_quote]– Então, se uma nova palavra aparece na língua ou se um novo sentido começa a ser usado para uma palavra já existente, eles precisam ser registrados. Os dicionários são inventários da língua e do que pensam as pessoas que a falam. Funcionam como um espelho, refletindo o que existe. Não criam nada nem inventam nada, apenas refletem as imagens que encontram. Se há no ar um novo conceito de estrutura familiar, é preciso captá-lo e entendê-lo para defini-lo – diz Villar, ressaltando a necessidade de contínua renovação dos dicionários: – As novas palavras e os novos sentidos de palavras já existentes surgem todos os dias em qualquer língua viva. O Grande Dicionário Houaiss e os outros de sua família lexicográfica permanecem atentos a essa dinâmica, porque o que faz um dicionário prosseguir vivo é a sua atualização e sua sensibilidade às questões da vida que se desenrola sem parar. Caso contrário, sua função e utilidade se anulariam.
Cisgênero, cissexual, cissexualidade, transexual, transexualidade e transexualismo são alguns dos verbetes incluídos ou atualizados no “Grande Dicionário Houaiss”, que teve sua primeira edição impressa em 2001 e sua segunda edição lançada só na internet. “Não foi mais possível imprimi-la em papel”, destaca Villar. As atualizações, no entanto, não registram apenas avanços:
– O dicionário registra o máximo de sentidos que cada palavra ganhou através da sua história. Sentidos pejorativos e palavras desagradáveis, por isso, fazem parte necessária do inventário em que ele se constitui. As mudanças sociais e de comportamento levaram a que tais palavras ou acepções sejam registradas com informações sobre se há preconceito (e eventualmente a causa dele), se é palavra que pode ser sentida como agressiva ou pejorativa etc. Em todos os casos em que incidem problemas com grupos minoritários, oprimidos, alvos de violência ou preconceito etc. um grande cuidado existe nos registros que se faz.
Google também será procurado
No site do projeto Todas as Famílias, a diversidade marca as definições postadas. “É amor ao próximo como a si mesmo: é doação, sacrifício sem dor, carinho, respeito!”, escreve Danilo David. “Um grupo de pessoas unidas não pelo sangue, mas sim pelos laços afetivos”, resume Daniela Reis. Para Carlos Tufvesson, coordenador especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio, que apoia o projeto, criado pela agência NBS, ampliar o sentido da palavra é tão importante quantos as mudanças de legislação.
[g1_quote author_name=”Carlos Tufvesson” author_description=”Coordenador de Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Todos os processos jurídicos e jornais usam as definições dos léxicos, por exemplo. É bem importante chamar a sociedade para participar dessa definição, pois não estamos falando só de casais do mesmo sexo, mas sim dos vários arranjos familiares que existem no Brasil
[/g1_quote]– É importante que a sociedade possa entender – como eu acho que de certa maneira já entenda. Acredito que essa percepção já mudou desde a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo no Supremo Tribunal Federal. Ficou claro que, na verdade, são relações baseadas no amor. Até o voto do ministro Ayres de Britto muda o conceito de família já naquele momento, ou seja, família não é ligada à procriação, mas sim à relação de amor. E eu acho que isso é o mais importante, porque senão até pessoas que são estéreis não poderiam receber a proteção do Estado para fins de casamento. Infelizmente, temos sempre grupelhos que agem de forma contrária, querem impedir e até impor a sua forma de ver a vida aos outros. Isso é muito grave num Estado democrático de direito que se presume laico. É importante sempre irmos passos à frente. Todos os processos jurídicos e jornais usam as definições dos léxicos, por exemplo. É bem importante chamar a sociedade para participar dessa definição, pois não estamos falando só de casais do mesmo sexo, mas sim dos vários arranjos familiares que existem no Brasil.
[g1_quote author_name=”Carlos Tufvesson” author_description=”Coordenador de Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Meus sobrinhos cresceram sabendo que o Tio Carlos é casado com o Tio André e são pessoas muito bem resolvidas sexualmente. Eles não foram criados com tabus, mas sim com a verdade, a verdade do amor. E o amor não existe para ofender ninguém. Se ofender, é porque a pessoa realmente está com um problema.
[/g1_quote]O “Houaiss”, conta Tufvesson, receberá não somente as definições enviadas ao site da campanha, mas também serão colhidas as que estão sendo postadas nas redes com a hashtag #todasasfamilias. E este é o primeiro passo.
– Ainda não procuramos outros dicionários, vamos seguir com o Houaiss para essa fase do projeto e em um segundo momento podemos enviar a nova definição para os outros dicionários, explicando como chegamos ao novo verbete e solicitando a alteração. Também vamos procurar o Google porque acreditamos que muitas crianças e jovens atualmente buscam o significado das palavras pelo computador.
O coordenador destaca que a campanha não é uma resposta ao Estatuto da Família, que ele julga inconstitucional mas que incomoda por fazer um “marketing político que vai trazer sofrimento a várias pessoas”.
– Isso vai trazer o ódio para um país onde a cada 23 horas um homossexual é morto e, a cada dois minutos, uma mulher é agredida… Quando você tem representantes públicos que distorcem esse conceito de família, que dizem que uma mulher que não tem um homem em casa não faz parte do conceito de família, que ela deixa de ter a proteção do Estado, é uma barbaridade. Tanto é, que é inconstitucional. Mesmo assim, ficam fazendo um jogo de cena.
O momento conturbado do país, lembra Tufvesson, deixou o Estatuto da Família no “esquecimento”, na “obscuridade”. E o coordenador gostaria que ele, realmente ficasse esquecido.
– Eu ainda acredito na bondade e na solidariedade do ser humano. Quem é contra a proteção da família? Ninguém. Mas quando você percebe que, na verdade, isso vai tirar direitos civis de famílias constituídas por várias formas diferentes, é importante mostrar a realidade deste tal estatuto. As pessoas estão sendo instrumentalizadas. E isso é grave. É bom que fique bem no mofo do esquecimento, no escuro mesmo, pois lá é o lugar que lhes pertence.
Na mesma época em que preparava este texto para o #Colabora, fui incuída, à minha revelia, em um grupo no Facebook chamado “Minha família, meu patrimônio”, que, na verdade, era uma defesa de valores extremamente conservadores. Ofensivas como essas, Tufvesson diz que não lida, só lamenta.
– Se você pegar a Marcha pela Família, pelo título, vai achar que é uma coisa positiva. Não obstante, foi o início de um golpe. Já li em grupos como esse que a união de casais do mesmo sexo poderia colocar em extinção a procriação humana. É absurdo. Se os chineses fizessem as três refeições que devem fazer, faltaria comida no mundo. Logo, notamos que essa preocupação é totalmente teatral. Ninguém está preocupado se as pessoas vão procriar mais hoje em dia, mas sim com o controle demográfico – diz o coordenador, lembrando que as religiões sempre tiveram em sua raiz a procriação para “aumentar o seu rebanho”, mas que isso não pode ter qualquer relação como o Estado. – Eu tenho uma família há 21 anos e eu não sei o porquê de alguém ter de se proteger pela minha relação com o André (Piva). Ou porque o vizinho deve ficar incomodado. Pelo contrário, meu vizinho frequenta minha casa, os filhos dele também. Meus sobrinhos cresceram sabendo que o Tio Carlos é casado com o Tio André e são pessoas muito bem resolvidas sexualmente. Eles não foram criados com tabus, mas sim com a verdade, a verdade do amor. E o amor não existe para ofender ninguém. Se ofender, é porque a pessoa realmente está com um problema.
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Formada em Jornalismo pela UFF, nasceu em São Paulo, mas cresceu na cidade do Rio de Janeiro. Foi repórter do jornal “O Dia”, ocupou várias funções no “Jornal do Brasil” e foi secretária de redação da revista de divulgação científica “Ciência Hoje”, da SBPC. Passou os últimos anos no jornal “O Globo”, onde se dedicou ao tema da Educação. Editou a Revista “Megazine”, voltada para o público jovem, e a “Revista da TV”. Hoje é Editora do Projeto #Colabora e responsável pela Agência #Colabora Marcas.