ODS 1
Novo olhar na evolução de crianças com microcefalia
Professora da UFRPE lança livro para ajudar desenvolvimento de pessoas com Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZ) e desenvolve pesquisa para apoiar cuidadores
Graziella Vitoria Souza Tavares é vencedora até no nome. Quando nasceu com microcefalia, há 3 anos e 8 meses, o primeiro laudo médico constatou sua cegueira total. Hoje, depois de algumas cirurgias e muita estimulação visual, ela enxerga 45% com o olho esquerdo e 90% com o direito. Parece milagre, mas é a ciência evoluindo e aprendendo a lidar com a Síndrome Congênito do Zika Vírus (SCZ). Doutora em Psicologia Cognitiva, a professora Pompéia Villachan-Lyra, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), é uma das principais pesquisadoras do tema no país e explica a importância da estimulação precoce, entre 0 e 3 anos, para o desenvolvimento global das crianças nascidas com a SCZ após a epidemia de 2015.
Leia mais reportagens da série #100diasdebalbúrdiafederal
As dicas estão no “Guia prático para profissionais da educação”, recém-lançado por ela em coautoria com Eliana Almeida. O livro ressalta a necessidade de programas de orientação acessíveis a familiares e educadores para lidarem com bebês e crianças com microcefalia e outras alterações do neurodesenvolvimento.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosLEIA MAIS: Descobridores do Zika vírus no Brasil enfrentam falta de verba
LEIA MAIS: Malária durante a gestação pode causar microcefalia
[g1_quote author_name=”Pompéia Villachan-Lyra” author_description=”Doutora em Psicologia Cognitiva e professora da UFRPE” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
O caso da Grazi é impressionante. A capacidade de regeneração e reorganização do cérebro em função das experiências é diretamente relacionada com a estimulação precoce. Foi uma criança que passou por diversas cirurgias e teve um trabalho de estimulação precoce, em todos sentidos, inclusive no visual, intenso também.
[/g1_quote]Pompéia esclarece que, como foi a primeira vez na literatura médica mundial que se identificou a microcefalia pela infecção decorrente do vírus da zika durante a gestação, não se sabe muito ainda como será o desenvolvimento dessas crianças.”Mas é evidente a evolução delas. A plasticidade cerebral na primeiríssima infância, de 0 a 3 anos, é enorme. O caso da Grazi é impressionante. A capacidade de regeneração e reorganização do cérebro em função das experiências é diretamente relacionada com a estimulação precoce. Foi uma criança que passou por diversas cirurgias e teve um trabalho de estimulação precoce, em todos sentidos, inclusive no visual, intenso também.Muitas dessas crianças já viveram rotinas de estimulações intensas desde os primeiros semanas e meses de vida. Isso foi fundamental para a evolução do seu quadro clínico em todos os domínios do desenvolvimento. Mas, ao mesmo tempo, não sabemos como vai ser na sequência “, explica a neuropsicóloga, que foi consultora da Unicef, representando a UFRPE no projeto-piloto “Redes de Inclusão: garantindo direitos das famílias e das crianças com SCZ”.
Estimulação precoce ajuda cérebro do bebê
Pompéia ressalva que se trata de um quadro muito heterogêneo, que tem crianças com lesões cerebrais muito graves, que acarretam problemas de igual gravidade, como dificuldades de deglutição e de controle cervical, do tônus muscular e da cabeça. Em contrapartida, há outras crianças com déficits muito menores, inclusive com início de desenvolvimento da linguagem e controle motor muito maior.
Em ambos os casos, ela diz, o tratamento deve vir no cotidiano em todas as oportunidades de brincadeira e interação para a promoção do desenvolvimento em todas as áreas: motora, cognitiva, afetiva, aspectos sensoriais, de estimulação visual e auditiva. Segundo a especialista, o cérebro vai se moldar com base nas experiências vividas pelo bebê nesse período. Sempre, olhos nos olhos, com carinho e com afeto, seja em casa, na clínica ou na creche.
“Precisamos utilizar essa plasticidade como aliada. Toda situação é uma oportunidade de promoção do desenvolvimento e estabelecimento do contato do olhar, de ajudar a criança a superar seus desafios, a fazer o que não fazia antes, controlar o pescoço, participando na interação com os pares, das rodas de conversa e leitura, nas atividades de musicalização. Temos exemplos belíssimos da inclusão dessas crianças, brincando no pátio, com areia, pintando com as outras e em atividades como passar por dentro de um túnel, um minhocão, e todos curtindo com ela, superando seus desafios”, ela exemplifica.
Casa pintada de preto e branco para facilitar visão
Inabela Souza Tavares, mãe de Grazi, viu de perto esses recursos darem certo. Ela foi picada pelo mosquito Aedes aegypti aos 5 meses de gestação. Após o nascimento, já havia percebido que a microcefalia afetara principalmente a visão da sua filha, mas não se deu por vencida ao ser desenganada por uma médica que disse que a menina, que tem Vitoria no nome, era cega. Inabela chorou bastante, mas, junto com familiares, foi atrás de médicos de outras especialidades, como neurologia, oftalmologia, pediatria e psicologia.
“A primeira médica deu a certeza de que minha filha não tinha visão. Perguntei à doutora se havia alguma coisa que eu podia fazer, e ela disse: ‘Infelizmente não. Sua filha é cega. Se um dia ela vier a enxergar, será um vulto branco e um vulto preto’. Então, decidi adaptar minha casa. Pintei as paredes e o teto de preto e branco, com os móveis da mesma cor, e comecei a montar um centro de reabilitação dentro de casa, com todos os materiais que a gente confeccionava e outros que recebíamos de doação”, relembra Inabela.
Depois de uma cirurgia para correção de estrabismo, Grazi já está no seu quinto óculos. E não para de evoluir. Nem de enxergar a vida com bons olhos. As primeiras lentes, de -12 graus de miopia, não existiam por aqui e tiveram que ser trazidas de fora. Nos óculos seguintes, a miopia caiu para -9,5, no lado direito, e -9, no esquerdo; e, na sequência, para -7,5 e -7, respectivamente. Agora, a miopia já regrediu para -6,5 e -4.
Na creche municipal de Recife em que Grazi estuda, há outra criança, da mesma idade, com microcefalia em decorrência da epidemia de zika. Em fotos e vídeos enviados por Inabela, é possível ver que tanto as demais crianças quanto os educadores ajudam Grazi nas atividades, como descer no escorrega, pintar e desenhar. E vibram com Grazi a cada vitória. A mãe também comemora a evolução, que não foi apenas visual. “Foi em todos os sentidos, em várias coisas que ela não fazia. Ela segue a rotina da creche certinho como as outras crianças. Come, junto com elas, as cinco refeições por dia. Interage nas brincadeiras, principalmente com música”, festeja Inabela.
[g1_quote author_name=”Mirella Almeida” author_description=”Mestranda em Educação da UFRPE” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
Há barreiras como preconceito e estigmas sociais, medo, estereótipos e falta de formação teórico-prática a respeito da SCZ. Faltam também relação profissional e trabalho em equipe por toda a comunidade escolar, adaptação curricular, estrutura física, compreensão da importância do papel da família na relação família-escola e do papel da educação na inclusão dessas crianças.
[/g1_quote]Dificuldades e preconceito no acolhimento em creches
Mas nem tudo são flores nas creches. Mestranda em Educação na UFRPE, Mirella Almeida fez uma pesquisa de campo em sete creches da prefeitura de Recife e um centro municipal de educação infantil que atendem crianças com microcefalia. Ela constatou que os principais desafios no acolhimento dessas crianças e, de uma forma geral na educação inclusiva, são falta de políticas públicas que assegurem a entrada e permanência delas. O estudo faz parte de sua dissertação “Inclusão de crianças com a síndrome congênita do vírus zika em creches públicas de Recife: um novo capítulo na educação brasileira”, defendida na última semana de agosto, sob orientação da professora Pompéia.
“Há barreiras atitudinais, como preconceito e estigmas sociais, medo, estereótipos e falta de formação teórico-prática a respeito da SCZ. Faltam também relação profissional e trabalho em equipe por toda a comunidade escolar, adaptação curricular, estrutura física, compreensão da importância do papel da família na relação família-escola e do papel da educação na inclusão dessas crianças. A compreensão do quadro clinico e das especificidades da criança também se constitui um desafio”, enumera Mirella.
Pompéia também teve essa percepção de um cenário desafiador no trabalho, que desenvolve com Mirella, de formação para profissionais da educação, envolvendo especificamente conteúdos relacionados à SCZ e estratégias pedagógicas para a inclusão dessas crianças nas creches. No primeiro semestre deste ano, a convite da prefeitura de Recife, elas realizaram uma formação para cerca de 300 profissionais.
A professora reconhece que seria hipocrisia dizer que não há preconceito, de modo geral, com as deficiências. Segundo ela, a discriminação relacionada à SCZ deve-se a um estigma social devido à epidemia do vírus da zika e da microcefalia, que gera medo, desconfiança, desespero e pena em certas ocasiões, principalmente por falta de informações sobre a doença. A professora recorda uma situação que virou emblemática:
“No momento inicial de uma formações, perguntei quais eram as expectativas e que tipo de sentimentos esperar. Uma das profissionais respondeu que, se aparecesse uma criança com microcefalia, ela pediria para se aposentar. Essa foi uma fala que, para mim, foi muito impactante. Depois, em outro momento do curso, tive um depoimento super emocionante dessa mesma profissional de como foi importante se deparar com as crianças nessa situação e como isso mudou a forma de ela ver e lidar com as crianças e as diferenças. De fato, o preconceito existe, mas pode ser superado. E é nisso que a gente aposta. Por isso, a formação, o contato com o conhecimento e a experiência são de extrema importância”.
Cenário de depressão entre cuidadores
Em outra frente, Pompéia desenvolve a pesquisa “Supporting Caregivers Affected by Zika”, de apoio a cuidadores de crianças afetadas pelo zika. O estudo, em parceria com a Universidade do Nebraska, nos Estados Unidos, e apoio da Fundação Maria Cecília Solto Vidigal, analisou um universo de 50 cuidadores de Recife.
Desse total, 20% dos cuidadores relataram níveis moderados ou graves de depressão; entre 10 a 24% dos cuidadores apontaram um nível de estresse parental alto ou clinicamente significativo; e 6% mostraram sintomas moderados de ansiedade. O estado de Pernambuco foi o mais afetado pela epidemia de zika no fim de 2015. Em abril de 2019, 74 cidades corriam risco de surto de zika, dengue e chikungunya.
Agora, a pesquisa está em fase de análise desses dados, além da transcrição de 10 entrevistas qualitativas com cuidadores para esclarecer os desafios vivenciados por famílias de crianças com SCZ em casa. A equipe planeja iniciar pesquisas com a Universidade de São Paulo, onde docentes de enfermagem expressaram interesse em colaborar para otimizar os cuidados com crianças e famílias em ambientes hospitalares a fim de melhorar os resultados de saúde e bem-estar.
“Essas crianças só vão ter o desenvolvimento saudável assegurado se os seus cuidadores também estiverem bem. Sabemos como a rotina de cuidados médicos e de estimulação, de incerteza em relação à doença, além da precariedade de condições básicas, de moradia e saneamento básico, são fatores muito estressores para essas famílias. O objetivo dessa parceria é entender quais são as demandas de suporte psicossocial dessas famílias, suas condições de saúde mental, investigando aspectos como depressão, ansiedade, estresse e necessidade de suporte”, explica Pompéia.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”none” size=”s” style=”solid” template=”01″]98/100 A série #100diasdebalbúrdiafederal pretende mostrar, durante esse período, a importância das instituições federais e de sua produção acadêmica para o desenvolvimento do Brasil
[/g1_quote]Relacionadas
Carioca, mas cidadão do mundo. De carona na boleia de um caminhão ou na classe executiva de um voo rumo ao Qatar, sempre de malas prontas. Na cobertura de um tiroteio na cracolândia do Jacarezinho ou entrevistando Scarlett Johansson num hotel 5 estrelas em Los Angeles, a mesma dedicação. Curioso por natureza, sempre atrás de uma boa história para contar. Jornalista formado na UFRJ e no Colégio Santo Inácio. Em 11 anos de jornal O Globo, colaborou com quase todas as editorias. Destaque para a área de educação, em que ganhou o Prêmio Estácio em 2013 e 2015. Foi colunista do Panorama Esportivo e cobriu a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016.