ODS 1
Nheçu: região das Missões resgata história de líder indígena que comandou resistência
Cacique e pajé dos Guarani Mbiya encabeçou oposição aos padres da Companhia de Jesus no atual território do Rio Grande do Sul
O território do Brasil e da América não foi descoberto, mas sim invadido pelos europeus. Caibaté – município de apenas 4.800 habitantes no interior do Rio Grande do Sul – é um dos locais que guarda as marcas desse processo de invasão, principalmente por portugueses e espanhóis. De origem Guarani, a expressão Caiboathê significa mato alto de muitos frutos e pertencia aos Guarani Mbyá até a chegada dos colonizadores espanhóis no século XVII. Ñezú, ou Nheçu, como passou a ser conhecido, foi um dos principais líderes da resistência indígena contra a aculturação promovida pelo estado colonial espanhol.
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Durante muito tempo Nheçu foi descrito como vilão, acusado de ter sido o mandante da morte de três padres da Companhia de Jesus: Roque Gonzales e Afonso Rodrigues – na redução de Todos os Santos do Caaró – e de João de Castilhos, na redução de Assunção do Ijuí, em 1628. Natural de Caibaté, este repórter conheceu em detalhes a história dos “Santos Mártires do Caaró”, como são chamados os padres, contada e exaltada nas escolas e em diversos espaços da cidade que tem no Santuário do Caaró, construído no local da morte dos padres, o seu principal ponto turístico e de reconhecimento como identidade.
Neste contexto, pouco se comenta sobre a reação dos jesuítas e espanhóis contra Nheçu e outros indígenas que não aceitavam a evangelização. Os números não são exatos, mas diferentes pesquisas mostram um processo de perseguição brutal realizado por jesuítas acompanhados de indígenas das reduções e uma tropa militar espanhola. “Eles dizimam, literalmente, terminam com toda a aldeia de Nheçu. Matam mulheres, crianças, indígenas, guerreiros e nesse entrevero, não se tem certeza absoluta disso, mas Nheçu se vê obrigado a fugir”, conta Josnei Weber, professor de História em Roque Gonzales, município que leva o nome do padre jesuíta.
“O Estado colonial espanhol, com a Companhia de Jesus, cria toda uma documentação, todo um elemento para falar na guerra justa. As justas causas para matar os indígenas que não queriam ser evangelizados”, explicou Júlio Quevedo, professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em palestra durante a quinta edição do Seminário Internacional de História, Educação e Turismo da Região das Missões, realizado em Caibaté na última semana de abril. O evento foi criado em 2017, com o objetivo de abordar diferentes perspectivas sobre o período das missões na América do Sul.
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Veja o que já enviamosApós realizar o mestrado em Desenvolvimento e Políticas Públicas pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Josnei Weber passou a se interessar pelo tema e estudar o encontro entre Roque Gonzales e Nheçu, o que o levou a fazer parte da Trilha da Integração Guarani-Jesuítica. O projeto, criado por Iraci Luft em 2018, procura resgatar o papel do líder Guarani como importante personagem da história de Roque Gonzales e da região. O trabalho, segundo Josnei, esbarra na resistência e um contexto religioso marcado pelo silenciamento das narrativas que olham para as missões pela perspectiva dos povos originários.
“A partir do momento em que você parece que dá um pouquinho de razão para o que Nheçu possa ter feito, automaticamente dá a impressão de que você está desautorizando os padres: está dizendo, então, que eles mereceram o que eles tiveram, ou coisa nesse sentido”, descreve Josnei. Através de caminhadas e palestras, por exemplo, os membros da trilha trabalham para mudar a visão de Nheçu como um vilão, sem justificar o assassinato dos padres ou buscar pôr a vida deles em uma balança com a dos indígenas que morreram na reação dos jesuítas.
“É o primeiro registro, até onde nós temos conhecimento, de resistência indígena armada ou organizada dentro do território do Rio Grande do Sul contra o processo de aculturação da Igreja Católica. Nós veneramos muito Sepé Tiaraju, sem dúvida nenhuma, mas Sepé é 100 anos depois”, pontua Josnei Weber, fazendo referência ao guerreiro Guarani que liderou a rebelião indígena contra o Tratado de Madrid no século XVIII.
Uma das conquistas da Trilha da Integração Guarani-Jesuítica foi a instalação, no ano passado, de duas estátuas de Nheçu, uma no Cerro do Inhacurutum, local reconhecido como um dos pontos de atuação do cacique e pajé, e outra na praça central de Roque Gonzales, onde também existem estátuas dos três padres jesuítas. “Teve publicação, teve matéria em jornais, online, em páginas de Facebook, questionando por que, na mesma praça onde estavam estátuas de padres, estaria a estátua de quem mandou matar esses padres”, revela o professor sobre as reações contrárias à instalação das estátuas do líder indígena. A quinta edição da trilha está marcada para os dias 3 e 4 de agosto como foco em: história, ecologia e espiritualidade.
O projeto colonial e as Missões na América do Sul
Pelos termos do Tratado de Tordesilhas (1494), o território do atual Rio Grande do Sul passou a “pertencer” à Coroa Espanhola. De acordo com Júlio Quevedo, como parte do processo de colonização foram criadas políticas indigenistas para ocultar o genocídio praticado contra os povos originários da América. “E aí entra a Companhia de Jesus, fiel aliada do Estado colonial espanhol, que vai receber uma série de benefícios para vir a essa região, para colonizar os indígenas e deixá-los vinculados aos interesses do Estado colonial espanhol”, explica o pesquisador da UFSM.
A área destinada para a Companhia de Jesus abrangia aproximadamente 700 mil km², desde o sul do Mato Grosso e Paraguai, até parte da Argentina e todo o Rio Grande do Sul. Jornalista e doutor em história, Luiz Carlos Tau Golin pesquisa sobre a história das missões e as nações autóctones, como define os povos indígenas que ocupam a região.
Tau Golin contextualiza o modo de organização das reduções jesuítico guarani, criadas a partir da ideia de civilizar o bárbaro, adotada pelas nações ibéricas (Portugal e Espanha) com relação ao indígenas, “não reconhecendo sua cultura e seus modos de vida”. O pesquisador e professor universitário aposentado pontua ainda que a própria forma como as missões são descritas apaga a participação dos indígenas nesse sistema de organização.
Segundo o pesquisador, escritor de diversos livros sobre o período, “todas as formas de modo de vida interno da redução, era um modo de vida indígena e cristão”. Tau Golin explica a divisão do tempo produtivo, algo introduzido pelos jesuítas – sendo 50% para o tupambaé, destinado para a administração colonial, e 50% para o abambaé, para cada um dos cacicados que faziam parte da redução.
Após a formação das reduções, parte do projeto jesuíta buscava a inclusão dos indígenas como “súditos” da coroa espanhola, segundo Tau Golin, para proteger esses povos da servidão através da “mita” e da “encomienda” e do genocídio pelos bandeirantes. “Quando os jesuítas conseguem isso se forma nas Missões um campo de proteção muito grande. Então, muitos caciques começaram a aderir ao projeto missioneiro em função disso. Não era uma opção pelo deus cristão”, afirma o jornalista.
Essa ideia de “proteção” associada ao projeto missioneiro é questionada por Renato Jacob Schorr, 73 anos, vice-presidente da Associação Cultural Nheçuanos. “Eles trabalhavam para quem? Três dias por semana eles trabalham para o tupambaé. De quem era o tupambaé? Para onde foi a produção? Para onde foram as riquezas?”. Com o intuito de resgatar a história da resistência indígena, a associação criou o Manifesto Nheçuano, inspirado na figura cacique e pajé Guarani. “É fundamental que a história de Nheçu venha à tona”, afirma Renato Schorr.
Segundo Renato Schorr, a visão que existe sobre as Missões é superficial, justamente por ocultar essa dimensão da aculturação. “Eles tinham sua religião, seu modo de vida, por que alguém teria que tirar de si algo que lhe é intrínseco?”, questiona. Ele cita a dificuldade enfrentada para desenvolver as atividades da Associação Cultural Nheçuana, criada em 2009. “Está uma situação muito mais favorável de você mencionar Nheçu, porque existia uma oposição ferrenha a esse nome”, conta Renato.
Quem realmente foi Nheçu?
O primeiro problema relacionado ao tratamento da história do líder indígena começa pelo fato de que, os poucos registros que se tem dele foram escritos pelos jesuítas após o episódio do Caaró. Josnei Weber ressalta que o próprio nome dele é alvo de debates, não apenas pela grafia em Ñezú, ou Nheçu, termo que significa “a reverência” e está associado a influência que ele possuía na região. Independente disto, o principal, segundo o professor, é desmistificar a ideia que existia uma disputa entre o “bem e o mal”.
“Ele conhecia todas as histórias dos antepassados e, conhecendo as histórias dos antepassados, isso transmite confiança para os Guaranis”, descreve Josnei. Nheçu é retratado como um hábil orador e que passa a ser confrontado pela presença do padre Roque Gonzales, filho de pai espanhol e mãe Guarani e que, por isso, conseguia convencer alguns indígenas a se converterem. “O embate religioso foi o primeiro. O segundo foi o embate político. Porque o poder político de Nheçu derivava muito, segundo alguns relatos, das suas esposas. Cada esposa que ele tinha era uma aliança política com determinada tribo”, acrescenta o membro da Trilha da Integração Guarani Jesuítica. A poligamia seria fortemente condenada pelos jesuítas.
Conforme menciona Tau Golin, Nheçu realizava rituais com uso de elementos religiosos indígenas, como a erva mate, para desbatizar aqueles que haviam aderido à religião cristã. Tudo isso, somado a poligamia e aos embates religioso e político, fizeram com que o cacique e pajé fosse caracterizado como um feiticeiro “tentado pelo diabo através desses elementos como a erva mate”, complementa o pesquisador.
Tau Golin descreve o ritual simbólico feito na morte dos padres como parte do conflito cultural e religioso que caracterizou a oposição entre Nheçu e o catolicismo. “Esse ato foi duramente reprimido pelos padres e pelo estado espanhol, porque é formado um poderoso exército, com mais de mil indígenas leais ao projeto jesuíta, e que saem através dos responsáveis pela morte dos padres para serem exemplos”. O destino do líder Guarani também é incerto e, de acordo com o jornalista, a possibilidade mais aceita é de que ele tenha fugido para o território dos Jês no Alto Uruguai, onde um grupo de bandeirantes teria o encontrado e executado.
O pesquisador destaca que Nheçu é uma figura que se assemelha a outros líderes indígenas que fizeram resistência à colonização e que também tiveram suas histórias apagadas. “É fundamental retomar aquilo que existia no passado e foi impedido de se desenvolver como vinha acontecendo há séculos. Quando os padres chegaram, os Guaranis já estavam há mais de 2 mil anos no território”. Para Tau Golin, retomar a história desses povos e de Nheçu é importante para entender o que contexto atual dos povos originários.
Além disso, o jornalista faz uma crítica a falta de tratamento e reconhecimento das nações indígenas dentro dos estados nacionais. “Os países, estados-nações da América, possuem uma perversidade absoluta no tratamento sobre os povos indígenas. Então, estamos diante de uma das maiores tragédias da humanidade, na relação entre os povos indígenas e os estados coloniais e nacionais”, afirma.
Os Guarani Mbyá no século 21
Com uma tradição de séculos habitando o território compreendido como a região das Missões, os Guarani Mbyá hoje fazem parte de uma minoria e, sua principal luta, segue sendo em defesa de sua cultura. Presente no Seminário Internacional das Missões em Caibaté, o coral “Jerojy Mbaete”, que significa “Grupo Coragem”, foi idealizado com esse objetivo.
Criado em 2000 na Aldeia Tekoá Koenju, que fica na Reserva Indígena Inhacapetum, junto ao Parque Histórico Nacional das Missões, em São Miguel das Missões, onde estão as ruínas mais preservadas das reduções jesuíticas guarani. o grupo conta com a participação de crianças e adolescentes Guarani Mbyá. “A gente começou já há vários anos. Na verdade, o costume dos Guarani é assim: na aldeia, as crianças sempre praticam, cantam sobre a natureza, sobre o ambiente, então criamos na própria aldeia essa música com coral”, explica Cristino Franco, um dos coordenadores do grupo.
Com olhares tímidos, as crianças que compõem o coral encantam o público com as canções e música. No entanto, nenhum dos palestrantes do seminário realizado em Caibaté é indígena, assim como da maioria dos eventos do tipo, o que reflete os resultados de anos de opressão pelos estados coloniais e nacionais. Ainda assim, a iniciativa de debater a história missioneira através de diferentes perspectivas e olhares, assim como a instalação das estátuas de Nheçu, demonstra um caminho para que narrativas antes silenciadas encontrem espaço. A pergunta final que fica no imaginário deste repórter é: quais seriam as palavras de Nheçu, sendo esse hábil orador, em um seminário como esse?
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.