Movimento Meninas Crespas resgata ancestralidade negra em Porto Alegre

Projeto nascido em escola pública é o primeiro no Rio Grande do Sul a receber o prêmio “Sim à Igualdade Racial”, do Instituto Identidades do Brasil

Por Emilene Lopes | ODS 10ODS 4 • Publicada em 27 de outubro de 2020 - 10:00 • Atualizada em 26 de dezembro de 2021 - 17:06

Integrantes do Movimento Meninas Crespas: prêmio “Sim à Igualdade Racial”, do Instituto Identidades do Brasil, na categoria Educação e Oportunidades (Foto: Nilveo Christiano/Divulgação)

A emoção tomou conta de muitas casas na Restinga, bairro da Zona Sul de Porto Alegre, no dia 10 de outubro. Adultos, adolescentes e crianças assistiram à cerimônia do Prêmio “Sim à Igualdade Racial”, do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), e vibraram ao saber que o Movimento Meninas Crespas havia vencido a categoria Educação e Oportunidades. O projeto trabalha a educação afrocentrada, desenvolvendo atividades sobre a história e cultura negra na comunidade.

É a primeira vez que uma iniciativa gaúcha leva para casa o maior prêmio sobre diversidade e inclusão da América Latina. “Ainda temos uma tradição ítalo-germânica muito forte no Rio Grande do Sul e as pessoas acham que poucos negros vivem no Estado. Então, ganhar esse prêmio foi a prova de que a gente existe e tem um trabalho com a negritude”, afirma Perla Santos, 37 anos, fundadora e uma das coordenadoras do projeto.

A premiação reconheceu a iniciativa que começou cinco anos atrás, após Perla atender um caso de racismo na Escola Municipal Senador Alberto Pasqualini, em Porto Alegre, na qual era professora. Ao ver o sofrimento e a baixa autoestima da aluna que vinha sendo humilhada, decidiu auxiliar da forma que podia, com diálogo e acolhimento. Ela começou a reunir garotas na hora do intervalo para falar sobre racismo e cultura negra.

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A professora Perla Santois, coordenadora do Meninas Crespas, com Manuela, filha de uma amiga, no colo: aulas de dança, história, língua Iorubá e debates sobre racismo (Foto: Arquivo Pessoal)
A professora Perla Santois, coordenadora do Meninas Crespas, com Manuela, filha de uma amiga, no colo: aulas de dança, história, língua Iorubá e debates sobre racismo (Foto: Arquivo Pessoal)
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Ela vivia dizendo que não era minha filha. Por mais que eu tentasse explicar, não entendia. O Movimento ajudou ela a se identificar como uma criança preta e entender que dentro da nossa negritude tem vários tons de pele

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O interesse foi imediato e, além das rodas de conversa, oficinas de turbante e desfiles foram realizados. Logo, o desejo de participar já não eram mais só dos estudantes, mas também dos pais. Com a pressão da comunidade, conseguiram até uma pequena sala dentro da escola para desenvolver as atividades. Mas, em 2018, quase tudo se perdeu.

Após três anos, o Movimento Meninas Crespas viu sua continuidade ameaçada. Perla recebeu a notícia de que não poderia mais dedicar 10 das suas 40 horas de trabalho na rede municipal de Educação para o projeto. Triste com a falta de perspectiva, a professora achou que esse seria o final da iniciativa. E foram as mães das alunas que mostraram que ela estava enganada. A comunidade queria continuar e ajudou a viabilizar outros espaços para os encontros.

Mães Crespas

Assim, o Meninas Crespas seguiu com aulas de dança, história, língua Iorubá e debates sobre racismo, com o objetivo de resgatar a ancestralidade e fortalecer a autoestima de crianças e jovens negros. Tudo isso em conjunto com as famílias e a participação das Mães Crespas, como elas apelidaram.

Uma das mães que hoje faz parte da coordenação do projeto é Inaí Nascimento, de 42 anos. A enfermeira mora no bairro Restinga com os dois filhos, Maria Clara, de 12 anos, e Bernardo, de 8 anos. Ela ficou encantada com a proposta ao participar de uma aula inaugural em 2019 e reconheceu um lugar seguro e rico para os filhos.

Maria Clara, com a mãe, Inaí: descoberta da identidade, superação da timidez e paixão pelo Maculelê (Foto: Arquivo Pessoal)
Maria Clara, com a mãe, Inaí: descoberta da identidade, superação da timidez e paixão pelo Maculelê (Foto: Arquivo Pessoal)

Maria vinha enfrentando problemas com imagem e identificação. Seu tom de pele é mais escuro que o da mãe, o que a fazia se sentir diferente dentro da família. Além disso, estava querendo alisar o cabelo para esconder o volume dos seus cachos. “Ela vivia dizendo que não era minha filha. Por mais que eu tentasse explicar, não entendia. O Movimento ajudou ela a se identificar como uma criança preta e entender que dentro da nossa negritude tem vários tons de pele”, relata Inaí.

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Ainda temos uma tradição ítalo-germânica muito forte no Rio Grande do Sul e as pessoas acham que poucos negros vivem no Estado. Então, ganhar esse prêmio foi a prova de que a gente existe e tem um trabalho com a negritude

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O Meninas Crespas também aumentou o círculo de amizades de Maria e a ajudou com a timidez. Além disso, ela descobriu novas habilidades e talentos. Auxilia a mãe desenvolvendo as artes para as postagens das mídias sociais do projeto e descobriu o Maculelê, uma dança folclórica de origem afro-brasileira e indígena. “Eu gosto muito de dançar e conheci o Maculelê no primeiro encontro que participei. Quando tu está dançando é como a professora fala, tu sente uma energia diferente, como uma guerreira mesmo”, explica Maria.

O caçula Bernardo também adora as aulas e seu interesse é elogiado por Perla, que reconhece o empenho e questionamentos que a criança faz nos encontros. A reclamação dele é a falta de outros meninos no projeto, formado em sua maioria por meninas. Já a mãe acha a convivência positiva, pois reforça o respeito e empatia com as mulheres.

Mães crespas: grupo ajudou a manter movimento e agora também participam de atividades do Meninas Crespas, ao lado das crianças (Foto: Nílveo Christiano/Divulgação)
Mães crespas: grupo ajudou a manter movimento e agora também participam de atividades do Meninas Crespas, ao lado das crianças (Foto: Nílveo Christiano/Divulgação)

Não foram só os filhos que se beneficiaram com o Meninas Crespas. Depois de algumas oficinas de dança para adultos, Inaí e outras mães foram incentivadas a continuar ensaiando e fazer uma apresentação no Teatro do CIEE, em Porto Alegre. Inaí lembra com emoção a felicidade que sentiu no dia. Ela, que nunca havia subido em um palco ou participado de uma apresentação artística, aceitou o desafio e adorou a experiência.

Legado de Oliveira Silveira 

Perla é a prova de como o contato com narrativas afrocentradas são importantes na formação de uma identidade negra. Aos 17 anos, por indicação de um professor que enxergou talento nos seus textos, ela conheceu Oliveira Silveira. O escritor gaúcho foi um dos pesquisadores que deu origem ao Dia da Consciência Negra. Foram muitos encontros e conversas sobre música, poesia, cultura e militância que mudaram completamente a visão da jovem Perla.

Para ela, o Meninas Crespas é a continuação do trabalho dele. E um legado que só cresce. A pandemia e a possibilidade das aulas online ampliaram o alcance do projeto. Antes focado somente no bairro Restinga, agora a iniciativa recebe alunos de outros bairros, cidades e até Estados. Neste semestre, em apenas quatro dias, 67 pessoas se inscreveram para participar das aulas. Em 2019, havia 25 alunos. Perla conta que a experiência tem sido positiva e que estão estudando maneiras de continuar com o atendimento virtual para alunos de fora do bairro.

O próximo passo é transformar o Movimento em Instituto Meninas Crespas para ampliar ainda mais o trabalho. “É mais do que um projeto, ele faz parte da nossa família. E a gente não abandona família, né?!”, afirma Inaí.

Emilene Lopes

Emilene Lopes é uma jornalista gaúcha com experiências no setor público, em agências de comunicação e empresas de jornalismo. Atualmente, vive como freelancer, trabalhando em projetos de cultura e gastronomia. Também faz parte do Lição de Casa, um projeto de jornalismo independente e colaborativo, que investiga os impactos da pandemia na educação brasileira. Em 2019, produziu o documentário “Histórias do Cine Gomes Jardim” para o seu projeto pessoal Retratos de Guaíba.

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