Com imagens de Yuri Fernandes e arte de Fernando Alvarus
MACAPÁ – O Amapá registra a pior taxa de escolarização entre crianças de 0 a 3 anos no país, com apenas 9,8% de matrículas, segundo o IBGE. Mas a capital do estado, Macapá, carrega uma marca ainda pior: só 7,9% das crianças destas idades estão contempladas com creches. Lá, há apenas uma instituição municipal, a Tia Chiquinha, e, mesmo assim, inaugurada em novembro de 2018.
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O descaso do poder público municipal, que tem o dever constitucional de assumir a educação infantil, vai além. Há dois prédios de creches prontíssimos para funcionar, com paredes pintadas, playground, bancadas e vasos sanitários adaptados para crianças pequenas, mas que são ocupados hoje apenas por vigilantes, que se revezam em turnos para impedir que as instalações sejam invadidas ou depredadas. Um deles está localizado no bairro Renascer e está pronto desde 2014. O outro fica em Novo Horizonte e está acabado desde 2015. Cada um poderia atender a 150 crianças, em dois turnos.
A Secretaria Estadual de Infraestrutura construiu os dois prédios, mas a prefeitura resiste em assumir sua gestão, comprando equipamentos como mesas e cadeiras e alocando professores e merendeiras. “Existe um jogo de empurra. O governo estadual construiu as instalações graças a emendas parlamentares, mas o município alega que não foi informado”, explica o promotor Roberto Alvares, da Defesa da Educação de Macapá, área criada em 2015 dentro do Ministério Público e da qual Alvares é o titular desde 2017.
Há um terceiro prédio inacabado, em Sol Nascente, cujas obras estão paradas e com as estruturas de aço pré-moldadas abandonadas. O banner da obra, orçada em R$ 1, 8 milhões, fruto de uma parceria do governo federal com o municipal, indica que sua conclusão deveria ter ocorrido em 22 de junho de 2019. Esta creche deveria atender de 195 a 208 alunos. Uma quarta creche, praticamente pronta, está localizada no conjunto residencial Macapaba, feito com os recursos do programa Minha Casa Minha Vida. Nela, há inclusive bancadas de granito com banheiras para bebês embutidas. Fora estas, um panfleto da Secretaria Municipal de Educação promete outras quatro: Tio Soró, Infraero II, Pedrinhas e a do Loteamento Amazonas.
Creches abandonadas
Quem nos mostrou o cenário de abandono foi o promotor Roberto Alvares. De táxi, seguimos um veículo 4 x 4 do Ministério Público para acompanhar as inspeções. Na primeira delas, no bairro Renascer, ele aponta para a parede do banheiro. “Está vendo essa diferença de cor no ladrilho?”, pergunta. “A bancada era alta, não seguiram as normas técnicas do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação)”, prossegue. “Como as crianças iam conseguir lavar as mãos ou escovar os dentes?”, questiona. “A Secretaria de Infraestrutura do estado teve que reformar essa escola três vezes já, depois de muita insistência nossa”. Ele conta que os vasos sanitários instalados eram para adultos e também tiveram que ser trocados para menores, de uso infantil. Dá pena de ver o cenário, pois a creche está tinindo, com paredes coloridas e o refeitório 100% acabado.
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De lá, partimos para a creche que deveria funcionar em Novo Horizonte. Foi construída nos mesmos padrões da situada no bairro Renascer, mas lá a situação é pior. Embora a infraestrutura interior do prédio seja de tão boa qualidade como a da primeira, o terreno não é capinado e, nos fundos, o mato praticamente chega à altura do promotor. O prédio também teve que ser reformando pelo menos duas vezes, uma delas por conta de um incêndio iniciado na área de vegetação seca, na lateral da escola.
Na terceira visita, o cenário é de total abandono. Alvares estica o banner da obra, já furado e desgastado pelo tempo, para mostrar mais uma promessa não cumprida. Há um buraco fundo de grandes proporções no terreno, e ele nos informa que seria a fossa séptica. Esta é uma escola pré-fabricada. Algumas estruturas estão erguidas e outras, largadas ao léu. Não há portão de entrada nem grades tampouco vigilantes para impedir o roubo das peças metálicas. Se tivesse sido acabada, esta creche poderia estar atendendo a entre 195 a 208 alunos.
Ao chegarmos no Conjunto Residencial de Macapaba, encontramos lá a secretária estadual adjunta de Infraestrutura, Gláucia Maders. O prédio da creche impressiona. Ao custo de R$ 2,8 milhões, ele foi construído dentro das regras do programa Proinfância (O Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil), que é uma das ações do Ministério da Educação para garantir o acesso de crianças a creches e escolas, mas também a melhorias da infraestrutura física da rede de educação infantil. Se funcionar em turno único, terá capacidade para acolher 182 crianças. Se forem dois turnos, 364. Além das banheiras para bebês já mencionadas, os banheiros e vestiários são totalmente adaptados. O colorido do local, das paredes às amarelinhas pintadas no chão, dão um ar de esperança. Mas ela é fugidia. Há muito mais crianças de 0 a 5 anos em Macapaba a serem atendidas do que comporta o prédio: duas mil.
E o que falta para ele funcionar? A secretaria de infraestrutura está cobrando acabamentos finais e transferirá a obra para a Secretaria Estadual de Administração, que passará a gestão para a prefeitura, como prevê a lei. Ainda faltam R$ 616 mil, entretanto, para a compra dos equipamentos, como mesas e cadeiras, que já estariam garantidos por uma outra emenda parlamentar.
Escolas da Igreja são solução emergenciais
Na ausência do poder público, a Igreja Católica mantém quatro creches geridas pela Diocese, que atendem a 1.553 crianças entre 3 e 5 anos, em dois turnos. São creches conveniadas com a prefeitura, que cede os professores e as merendeiras. A manutenção, as contas de água, luz, gás, o mobiliário e a alimentação ficam por conta das obras sociais da Igreja, explica a irmã Letícia Brígida, responsável pela gestão das creches. Foi ela que nos abriu as portas do Centro Educacional Nossa Senhora de Nazaré, conhecida como creche do Tibúrcio, que doou o terreno, no bairro Universidade, à Igreja, em 2001.
[g1_quote author_name=”Irmã Letícia Brígida” author_description=”Coordenadora das creches conveniadas da Igreja em Macapá” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A conta que a prefeitura faz é de uma merendeira para 190 crianças. Eles se esquecem que o dever delas não é só cozinhar, mas fazer o pré-preparo para congelar as doações de alimentos que recebemos e manter a cozinha limpa
[/g1_quote]Quem cedeu recursos para a construção das quatro creches foi a Fundação Marcelo Cândia, da Itália, que também destina cinco mil euros mensais, suficientes para pagar os 15 funcionários responsáveis pela manutenção das instituições. Entretanto, eles já avisaram que reduzirão os recursos a partir de 2020 para estender sua atuação a outras localidades. “Só aqui nesta creche, eu precisaria de mais duas servente e mais duas merendeiras”, desabafa a irmã Letícia. “Mas junto turmas para não mandar as crianças de volta para casa”, diz. “A conta que a prefeitura faz é de uma merendeira para 190 crianças. Eles esquecem que o dever delas não é só cozinhar, mas fazer o pré-preparo para congelar as doações de alimentos que recebemos e manter a cozinha limpa”, critica.
Ela nos leva de sala em sala, mostra os materiais, como cola, papel, tesoura, tinta, todos em abundância, fruto de doações ou de recursos arrecadados em eventos sociais, como bazares para venda de roupas usadas. Na cozinha, mostra o cardápio com almoço e lanche e nega o pedido de uma merendeira para incluir refrigerante na salada de frutas das crianças. “Fica gostoso”, diz a cozinheira. A irmã Letícia abana a cabeça negando. “Faz mal”, sentencia. “Às vezes, peço à Secretaria de Educação para enviarem alimentos e eles só mandam achocolatado ou biscoito”, reclama ela, que tenta optar sempre por alimentos não industrializados.
Pontes, as favelas de Macapá
Mas o maior desafio da irmã Letícia será assumir o Centro Comunitário Padre Paolo Lepre, situado numa “ponte”. Ponte é como são chamadas as favelas de Macapá por um motivo autoexplicativo: os barracos são palafitas, situados em áreas alagadas e unidos por deques de madeira. Como em toda a Região Norte, lá há o período de verão, quando os meses são mais secos, e o de inverno, quando os rios enchem de volume e os canais transbordam. A convite da irmã Letícia, fomos até a Ponte Zerão, onde está a “creche” Paolo Lepre. Usei as aspas porque, como não há professores lá, apenas cuidadoras voluntárias, a frequência escolar das crianças não é válida para o histórico escolar delas.
[g1_quote author_name=”Miguel Soares” author_description=”Voluntário da creche Ponte Zerão” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Muitas crianças morrem afogadas porque ficam sozinhas em casa e moram em palafitas
[/g1_quote]O centro era mantido por uma freira italiana, Elisa Salvetti, que adoeceu e voltou para a Itália. Diante da possibilidade de encerramento de suas atividades, a irmã Letícia acha que é seu dever assumi-lo. O caminho por dentro dos deques da Ponte Zerão é arriscado. Não há cercas de proteção e as crianças deitam e se inclinam para tentar alcançar objetos ou brinquedos que caem na água, totalmente poluída e lotada de lixo. “Muitas morrem afogadas”, conta Miguel Soares, que é voluntário há três meses da Pastoral da Criança. “Elas ficam sozinhas em casa enquanto as mães vão trabalhar e isso acontece porque moram em palafitas”, explica. O centro comunitário nada mais é que um barraco de madeira, dividido em dois ambientes, que também sofre com os alagamentos no inverno. “Não recebemos nada da prefeitura. As contas de luz e gás é a Igreja que paga”, diz Silvia Maria da Silva, uma das voluntárias do local, que atende a 41 crianças.
Enquanto narra casos de violência doméstica com que tem que lidar, abusos da polícia, que já invadiu a sala de aula do centro em busca de bandidos, sob a alegação que teriam pulado o muro da escola para escapar, Silvia e sua filha, Luana Carvalho, de 25 anos, aguardam a chegada do irmão que está mais de 40 minutos atrasado para buscar o último aluno, de 5 anos. Pergunto a ele quantos anos tem seu irmão. Ele diz que não sabe, mas o menino chega em seguida e refaço a pergunta diretamente a ele. “Nove”, ele responde. Não é preciso dizer mais nada.
Sem resposta
Até o fechamento desta edição, a Secretaria Municipal de Educação de Macapá, procurada pela reportagem, não se manifestou.