‘Prova do Enem deixou uma certeza: este é o exame mais desigual da história’

Estudantes caminham para local de realização do Enem em São Paulo, no último domingo, 17. Foto: Ettore Chiereguini / AGIF via AFP .

Carlos Augusto Júnior, candidato que participou do ENEM 2020, fala sobre a apreensão, a falta de ar e o medo que marcaram a realização do concurso

Por Carlos Augusto Júnior | ODS 4 • Publicada em 18 de janeiro de 2021 - 12:39 • Atualizada em 22 de março de 2021 - 19:00

Estudantes caminham para local de realização do Enem em São Paulo, no último domingo, 17. Foto: Ettore Chiereguini / AGIF via AFP .

Já era de se imaginar que a aplicação do ENEM, durante uma pandemia que já dura quase um ano, fosse questionada e vista por muitos estudantes como um risco à saúde. De fato, todo o processo de realização da prova aconteceu sob disputa judicial em alguns estados da federação e o número de abstenções ultrapassou a margem de 50% de participantes inscritos. Apesar das altas taxas de transmissão de coronavírus, as provas foram mantidas pelo MEC em todo o país, exceto no estado do Amazonas, cuja capital chegou a registrar 198 sepultamentos na quarta-feira passada.

Não muito diferente do que apontam as notícias, a minha realidade ao realizar a prova foi muito similar a de outros estudantes: houve apreensão no momento da prova, falta de ar provocada pelo uso da máscara ao longo de cinco horas ininterruptas de duração e um número expressivo de pessoas que, por variadas razões, desistiram ou foram impossibilitadas de adentrar os locais de prova.

Por outro lado muito positivo, assim que cheguei à Escola Estadual Professor Soares Ferreira, em Mariana (MG), onde realizei o exame, não observei aglomerações no interior da instituição. Diferente de outras cidades no Brasil onde focos de aglomerações foram registrados e divulgados em redes sociais durante o dia. Na minha sala, por exemplo, havia 20 carteiras dispostas em quatro filas, mas apenas 13 pessoas marcaram presença. Acredito que esse número possa diminuir ainda mais no próximo domingo, quando serão realizadas as provas de ciências exatas e naturais. Ao longo dos corredores, o distanciamento de um metro estava sendo respeitado e havia faixas no chão indicando a distância correta a ser seguida. Nos banheiros, apenas era permitida a entrada reduzida de pessoas e havia água e sabão líquido disponibilizados sobre a pia. Talvez, no mesmo ambiente, fosse necessária a disposição de álcool em gel para um cuidado mais efetivo contra o coronavírus. No entanto, em vários outros pontos do colégio, inclusive na entrada das salas de aula, era possível encontrar gel antisséptico para uso.

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Mas, de fato, essa edição nos deixou uma grande certeza: está sendo o exame mais desigual de toda a história. Quem teve saúde, mínimas condições psicológicas, acesso à educação de qualidade e preparo durante todo o ano assolado pela pandemia, conseguiu realizá-lo. Porém, quem não teve nada disso, permaneceu em casa, com a esperança de um dia chegar à universidade com vida.

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Todo o procedimento de entrada nas salas de aula ocorreu seguindo alguns protocolos. Primeiramente, era necessário se identificar, a uma distância de um metro, retirando a máscara, por alguns segundos, para que a identidade do participante fosse checada. Em seguida, era solicitado o recolhimento de pertences como carteiras, celulares, óculos e chaves. Após isso tudo, o participante era orientado a entrar na sala, com o celular desligado, e escolher sua carteira, dispondo sobre ela alimentos, documento de identificação, álcool em gel, máscaras e o seu caderno de questões – considerada por mim uma das maiores dificuldades para quem prefere manter sobre a mesa apenas a prova, caneta e uma garrafa de água.

ENEM 2020: primeiro dia é marcado por desconforto, falta de concentração e abstenções
Escola Estadual Professor Soares Ferreira, em Mariana (MG), onde Carlos Augusto realizou a prova do Enem. “Ao longo dos corredores, o distanciamento de um metro estava sendo respeitado e havia faixas no chão indicando a distância correta a ser seguida. Nos banheiros, apenas era permitida a entrada reduzida de pessoas e havia água e sabão líquido disponibilizados sobre a pia”. (Fotos: Carlos Augusto)

Outro incômodo durante o exame foi o desconforto provocado pelo uso contínuo da máscara. É fato que seu uso no local é obrigatório, mas, ao mesmo tempo, era de se compreender que esse não se tratava do melhor momento para realização das provas, sobretudo pela desigualdade digital presente no país, pela falta de aulas a distância em escolas públicas, pelo medo que a pandemia nos impõe de compartilhar ambientes com pessoas aglomeradas e, sobretudo, pelo estado psicológico em que todos se encontram. Inclusive, contraditoriamente ao que postula o governo federal e ao ver suas prioridades na destinação de recursos para o setor de saúde gratuita e de qualidade, o Enem trouxe como tema “O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira” – um dos assuntos mais necessários e urgentes para que a sociedade evolua pautada no respeito, cidadania e inclusão.

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Nada garante, por exemplo, que, antes de chegar em casa, esses alunos não tiveram contato com outras pessoas infectadas, em ônibus, metrôs, ruas do país, dentre tantos outros lugares possíveis.

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Por fim, ao observar pela minha experiência durante este domingo, o ENEM conseguiu cumprir, pelo menos no meu local de realização da prova, com as recomendações dos órgãos de saúde: distanciamento social, uso de máscaras, álcool em gel e higienização. Porém, as medidas não foram suficientes para a inclusão efetiva de todos os participantes, já que o cuidado contra uma possível contaminação está no percurso realizado pelos alunos da sua casa até a escola. Nada garante, por exemplo, que, antes de chegar em casa, esses alunos não tiveram contato com outras pessoas infectadas, em ônibus, metrôs, ruas do país, dentre tantos outros lugares possíveis. Mas, de fato, essa edição nos deixou uma grande certeza: está sendo o exame mais desigual de toda a história. Quem teve saúde, mínimas condições psicológicas, acesso à educação de qualidade e preparo durante todo o ano assolado pela pandemia, conseguiu realizá-lo. Porém, quem não teve nada disso, permaneceu em casa, com a esperança de um dia chegar à universidade com vida.

Carlos Augusto Júnior

Carlos Augusto Júnior, 21 anos, estudante de jornalismo na Universidade Federal de Ouro Preto. Nasceu em Riacho de Santana, no interior da Bahia, e vê o jornalismo como uma janela de oportunidades para mudar a si mesmo constantemente e contribuir para a formação de um mundo mais igualitário e justo. É amante da escrita, da literatura e, nos momentos de ócio, canta e dedilha acordes no violão. Carlos também é professor de redação e por isso resolveu fazer a prova do ENEM.

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