Universidade e comunidade contra a leptospirose

Projeto da Universidade Federal da Bahia mobiliza jovens da periferia para pesquisa sobre doença

Por Thais Borges | ODS 3ODS 4 • Publicada em 27 de julho de 2019 - 08:00 • Atualizada em 5 de agosto de 2019 - 18:43

Pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva da Ufba com jovens dos bairros: oficinas para entender a doença e participar da pesquisa (Foto: Terezinha Jesus)
Pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva da Ufba com jovens dos bairros: oficinas para entender a doença e participar da pesquisa (Foto: Terezinha Jesus)

Na divisa entre os bairros de Marechal Rondon e Alto do Cabrito, na periferia de Salvador, o Dique do Cabrito chama atenção. “Poderia ser o cartão postal de nosso bairro, mas, devido à falta de saneamento básico, o esgoto vai direto para as águas do Dique. Antigamente, ele alimentava as pessoas. Hoje, transmite doenças”, diz a assistente social e agente de saúde Emília Machado, 54 anos, moradora de Marechal Rondon.

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Nos últimos anos, o Dique até passou por obras de reurbanização e macrodrenagem tocadas tanto pela prefeitura quanto pelo governo estadual. Mesmo assim, ainda é um dos locais considerados críticos pelos moradores da região. O que nem ela, nem a maioria dos moradores, imaginava era que a sua própria indicação viria a fazer parte de um dos maiores estudos sobre a leptospirose em Salvador. Desde 2017, um grupo de pesquisadores liderado pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Ufba) busca entender o risco da doença em bairros populares da cidade.

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O estudo tenta identificar a ocorrência de pessoas soroprevalentes – ou seja, quem tem o anticorpo para a doença no sangue – em quatro bairros periféricos soteropolitanos. Além Alto do Cabrito e Marechal Rondon, a pesquisa envolve também os bairros de Rio Sena e Noca Constituinte. Entre 2013 e 2017, Salvador teve 243 casos confirmados de leptospirose, de acordo com o Datasus.

“A seleção dessas quatro comunidades foi dada porque a leptospirose se repete anualmente na cidade de Salvador, nos bairros periféricos. São os locais onde a infraestrutura, o saneamento e as oportunidades são mais reduzidas no que no resto da cidade”, afirma o pesquisador Ricardo Lustosa, um dos responsáveis pela investigação.

A leptospirose é uma infecção aguda, causada por bactéria do gênero leptospira, transmitida por animais – ratos, porcos, cachorros e outros – para os seres humanos. O contágio ocorre pelo contato direto com a urina do animal infectado; no Brasil, os ratos são os principais transmissores e os índices da doença aumentam nas temporadas chuvosas.

Desigualdade social

Desde o início do projeto, cerca de 1,3 mil pessoas já participaram do chamado ‘soroinquérito’, ou seja, tiveram uma amostra de sangue coletada e analisada. Como o estudo é inédito, os resultados por comunidade ainda não podem ser divulgados. No entanto, é possível adiantar que cerca de 10% dos participantes tiveram resultados positivos para o histórico de contato prévio com a leptospira, a bactéria que transmite a doença.

[g1_quote author_name=”Alexandre Mota” author_description=”Estudante e estagiário do projeto” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Eu não sabia o quão grave era. As pessoas moram ali porque não têm para onde ir. Isso alimentou minha mente de maneira absurda para correr atrás dos nossos direitos como cidadão

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Segundo o pesquisador, o grupo tem observado diversas dimensões associadas à doença, a exemplo da desigualdade. Essa disparidade, inclusive, existe até mesmo dentro de cada bairro – mesmo em uma determinada comunidade, há áreas mais vulneráveis que outras.

Uma das conclusões da pesquisa, até o momento, foi de que as famílias com renda familiar menor do que um salário mínimo têm mais probabilidade e risco de se infectar com a leptospira. “Como estamos atentos a essa realidade, entendemos que, para haver mudança, precisa haver um envolvimento da comunidade, por isso, estamos trabalhando com jovens”, diz Lustosa.

Bairro do Alto do Cabrito: saneamento precário e alto índice de doenças com vista para o Dique do Cabrito (Foto: Ricardo Lustosa)

Foi daí que veio a ideia para o projeto Jovens Inovadores, que conta com a participação de jovens com idades entre 15 e 22 anos, todos moradores dos quatro bairros envolvidos. Eles foram treinados para, dentre outras atividades, aplicar questionários aos moradores que participaram do estudo.

Nas entrevistas, pedem que os moradores indiquem pontos de risco para a saúde na comunidade, assim como respondem perguntas como motivos pelos quais escolheram aqueles locais e quem poderia resolver os problemas. Entre os locais apontados, está justamente o Dique do Cabrito.

“Nessas perguntas, queremos compreender o que eles entendem por risco á saúde no bairro. Nós observamos que há uma sobreposição entre o que eles indicam como local de risco e a concentração de casos positivos com histórico para leptospirose. Então, a percepção dos moradores é eficiente em indicar locais de possíveis riscos à saúde”, explica o pesquisador. Essa participação, inclusive, pode ser considerada para o planejamento de melhorias no bairro.

Jovens

Ao todo, pouco mais de 100 jovens já passaram pelo projeto. No ano passado, 60 foram treinados ao longo do ano. Este ano, outros 40 estão passando por capacitações. Na pesquisa, eles também são responsáveis pelo registro de fotografias e participam do desenvolvimento de aplicativos geográficos. Nos apps, os jovens podem indicar os lugares mais vulneráveis e sugerir intervenções.  “Em contrapartida, esses jovens recebem cursos de informática, cidadania e mapeamento. Nossa intenção é formar lideranças e ativistas que venham a trabalhar na melhoria do seu bairro”, diz Lustosa. Uma vez que o treinamento for concluído, começa o trabalho de campo. Por dia, são previstas, no mínimo, cinco visitas.

[g1_quote author_name=”Emília Machado” author_description=”Assistente social e moradora de Marechal Rondon” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Nosso objetivo principal é a redução de danos. A maioria dos jovens sofreu traumas terríveis, perdeu pais e irmãos para o tráfico, alguns já tentaram suicídio.Hoje, a Ufba nos proporciona não só cursos, mas apoio integra

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Além dos Jovens Inovadores, o projeto tem três estagiários da comunidade que recebem uma bolsa de R$ 550, além de dois estagiários iniciantes voluntários, que recebem ajuda de custo. Um dos estagiários é Alexandre Mota, que participa do projeto desde março de 2018. Morador do Alto do Cabrito desde que nasceu, Alexandre conta que, antes de ser integrante da pesquisa, evitava transitar por algumas regiões do bairro. Não frequentava algumas áreas justamente pelas condições de saneamento na área, com esgoto e lixo a céu aberto.

Quando passou a fazer parte do estudo, percebeu que a situação era ainda mais dramática. “Por mais que eu soubesse, eu não sabia o quão grave era. Tem pessoas que você acha que estão ali porque querem, mas, não. Elas moram ali porque não têm para onde ir. Isso alimentou minha mente de maneira absurda para correr atrás dos nossos direitos como cidadão”, afirma.

Jovens das comunidades que participam do projeto da Ufba: cursos de informática, cidadania e mapeamento (Foto: Whitney Howell)

Ele foi convidado a participar depois de uma reunião em um teatro da comunidade. Hoje, faz de tudo um pouco: tem incumbências que vão desde o controle de qualidade e o acompanhamento do sistema de formação geográfica até funções de auxiliar iniciativo.

“Essa iniciativa é uma grande oportunidade. Por mais que o objetivo seja a pesquisa, antes do projeto, eu estava em casa e não fazia nada para dar um rumo para minha vida. Agora, tem várias oportunidades”, diz ele, que agora pretende fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Ainda não sabe qual curso escolher: está em dúvida entre jornalismo e ciência da computação.

Ele já está colhendo alguns dos frutos do estudo. Depois de ter visto uma palestra sobre empreendedorismo e tecnologia, criou uma empresa para oferecer cursos gratuitos aos moradores dessas comunidades, ao lado de cinco amigos. “Esse projeto nasceu do Jovens Inovadores. Agora, a gente está buscando financiamento e investidores, porque vamos oferecer cursos de informática básica e noções de web”.

Desdobramentos

Boa parte dos jovens participantes vêm de um projeto da assistente social Emília Machado, moradora de Marechal Rondon. Há pouco mais de dois anos, quando uma quatro jovens morreram em uma chacina no bairro, ela decidiu criar uma iniciativa que trouxesse entidades e parcerias para o bairro, como a pesquisa da Ufba. “Nosso objetivo principal é a redução de danos. A maioria deles sofreu traumas terríveis, perdeu pais e irmãos para o tráfico, alguns já tentaram suicídio. Mas temos amor à causa, assim como a universidade. Hoje, ela (a Ufba) nos proporciona não só cursos, mas apoio integral”, conta.

Para ela, o saldo para a comunidade é positivo. A Ufba, diz, não só tem passado a mensagem sobre os cuidados com a leptospirose. Um dos desdobramentos do projeto, inclusive, é a participação de integrantes em reuniões com um grupo de trabalho com secretarias de saúde locais para traçar estratégias para enfrentar a doença. “A Ufba está fazendo o papel dela, que é detectar o problema junto com os órgãos responsáveis. O melhor é que estão levando os nossos jovens para ser multiplicadores”, comemora.

A pesquisa recebe financiamento internacional: primeiro do Medical Research Council, entidade britânica, cujos recursos já estão sendo finalizados; e, por fim, da Fundação Bill e Melinda Gates, que deve apoiar os estudos até abril de 2020. O projeto conta com parcerias com a Escola Politécnica e com o Instituto de Humanidades, Artes e Cultura (Ihac). Ao todo, mais de 30 pesquisadores – entre estudantes e professores – estão envolvidos.

Devido a esse financiamento, as bolsas não foram afetadas pelo contingenciamento de repasses anunciado em março pelo governo federal. No entanto, como a Ufba anunciou medidas de contenção de despesas no início de julho, o grupo teve que se adaptar.

Uma das medidas foi justamente a redução do horário de funcionamento – até agosto, quando começa o segundo semestre letivo, a universidade só vai funcionar no turno matutino. A proposta veio com o objetivo de reduzir o consumo de energia elétrica, água e outras contas.

Assim, ao longo de todo o mês de julho, o grupo reduziu os trabalhos de escritório em até 50%. O roteiro de atividades de campo foi mantido, mas atividades como planejamento e análise de material foram afetadas.

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71/100 A série #100diasdebalbúrdiafederal pretende mostrar, durante esse período, a importância  das instituições federais e de sua produção acadêmica para o desenvolvimento do Brasil

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Thais Borges

Thais Borges é jornalista e baiana. Trabalha no Correio*, em Salvador, e gosta de escrever sobre o cotidiano.

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