ODS 1
Pesquisa adverte: tiroteios fazem mal à saúde… mental
Estudo revela que moradores de comunidades faveladas expostas à violência armada desenvolvem mais transtornos mentais e outras doenças
Na semana passada, dez pessoas morreram e cinco ficaram feridas numa operação policial no Complexo de Favelas da Penha, Zona Norte do Rio. Cinco clínicas da família na região suspenderam o atendimento domiciliar e, apesar de ficarem abertas, quase não foram procuradas pela população assustada com o conflito armado. Essa rotina – a polícia do Rio faz operações diárias nas comunidades favelas – não provoca apenas ferimentos à bala. Pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), divulgada nesta quarta-feira (09/08), revela que a porcentagem de pessoas com insônia prolongada, ansiedade e depressão e hipertensão arterial é muito maior nas comunidades onde esses tiroteios se repetem sistematicamente na comparação com outras áreas faveladas sem esses conflitos armados.
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De acordo com o estudo, pouco mais de 50% dos moradores das comunidades mais expostas a tiroteios causados pelas operações policiais sofrem com algumas dessas condições, em comparação a apenas 36% dos moradores das comunidades não afetadas pela rotina da violência armada. “É mais um efeito perverso dessa política de guerra às drogas. Além de impedir sistematicamente o acesso dos moradores aos serviços de saúde, os tiroteios provocados pelas operações policiais causam e agravam problemas de saúde, efeitos de de viver sob essa rotina de insegurança e medo”, afirma a cientista social Mariana Siracusa, coordenadora do estudo.
A pesquisa Saúde na Linha de Tiro: impactos da guerra às drogas sobre a saúde no Rio de Janeiro é a terceira etapa do projeto Drogas: Quanto Custa Proibir. A primeira, Tiro no Pé, tinha como foco o impacto no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio e São Paulo; a segunda fase, Tiros no Futuro, revelou o prejuízo da guerra às drogas na vida escolar dos alunos da rede pública municipal carioca – no dia do conflito com 10 mortos na Penha, mais de 3 mil crianças ficaram sem aula. “Este relatório mostra como, mesmo entre comunidades cariocas com características socioeconômicas semelhantes, as mais afetadas por operações policiais são aquelas onde mais se adoece”, destacam os pesquisadores do CESeC na apresentação do estudo.
A pesquisa entrevistou, em 2022, 1.500 moradores, maiores de 18 anos, de seis comunidades cariocas, favelas semelhantes do ponto de vista socioeconômico, mas expostas a diferentes níveis de violência armada: três – Nova Holanda, no complexo da Maré, CHP-2, no complexo de Manguinhos (ambas na Zona Norte), e Vidigal, na Zona Sul – frequentemente afetadas por tiroteios com a presença de agentes de segurança; outras três – Bancários, na Ilha do Governador, Conquista, no Caju (ambas na Zona Norte) e Jardim Moriçaba, na Zona Oeste – onde não houve registro de troca de tiros.
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Veja o que já enviamosAs comunidades foram escolhidas a partir dos dados do Instituto Fogo Cruzado de 2019 – os pesquisadores preferiram não utilizar informações de 2020 e 2021, que teriam influência da pandemia e da chamada ADPF das Favelas, ação no STF que impôs limites a operações policiais no período. “A série histórica recente mostra que as ocorrências de tiroteio se repetem nos mesmos lugares, alvos regulares das ações da polícia. Esses episódios de violência têm, na verdade, um efeito acumulado sobre a saúde dos moradores, um efeito, muitas vezes, de três décadas convivendo com tiros”, destaca Mariana Siracusa. O Fogo Cruzado, iniciativa que reúne informações sobre tiroteios, contabiliza dados desde 2017, mas favelas como as dos complexos da Maré, de Manguinhos ou da Penha são testemunhas dos conflitos armados entre policiais e criminosos desde a década de 1980 – mais uma prova de como é inútil e ineficaz a política de guerra às drogas.
Depressão, ansiedade, insônia
Os impactos na saúde mental da população exposta à rotina dos tiros ficam evidentes na pesquisa do CESeC. O estudo indicou que os moradores das comunidades com mais tiroteios apresentaram um aumento de 62% na chance de desenvolver depressão em comparação com os do outro grupo de favelas; o risco é maior para mulheres e pessoas com 45 anos ou mais. No caso da ansiedade, a chance de moradores das favelas com mais tiroteios provocados pelas operações policiais acumularem sintomas do transtorno é duas vezes maior que a dos moradores das outras comunidades; essa chance é três vezes maior para mulheres. “As mulheres são socialmente responsabilizadas pelo cuidado com os filhos, com aos idosos, com a casa. E, nessas comunidades, frequentemente únicas responsáveis pelo sustento da família. Há uma tremenda sobrecarga emocional sobre as mulheres submetidas a essa rotina de tiroteio”, aponta a coordenadora da pesquisa.
A insônia prolongada também é uma condição clínica associada à violência armada. Para moradores expostos a frequentes tiroteios, a chance de ter insônia é 73% maior em comparação com os das outras comunidades pesquisadas, risco mais elevado para pessoas acima de 45 anos. Além dos transtornos de saúde mental e do sono, a pesquisa também investigou possíveis impactos da convivência com os conflitos armados com doenças crônicas: não houve resultados significativos na comparação para casos de diabetes e bronquite/asma. Mas foi constatado que a chance de se ter hipertensão arterial é 42% maior entre os moradores das comunidades com mais tiroteios – e novamente as mulheres são mais afetadas do que os homens.
O estudo do CESeC revelou ainda que, além do desenvolvimento dessas condições de saúde de longo prazo (hipertensão, insônia, ansiedade, depressão), os tiroteios provocam impactos imediatos na população dessas comunidades faveladas. “A pesquisa desmente completamente essa ideia de que os moradores das comunidades estão acostumados com essa rotina de violência, que se tornaram resilientes. Muitos sofrem com reações físicas durante os tiroteios”, enfatiza Mariana Siracusa. A pesquisa apontou que, pelo menos, 30% dos moradores de comunidades submetidas à violência armada relataram efeitos negativos imediatos como sudorese, falta de sono, tremor e falta de ar durante episódios de tiroteio; 43% afirmaram sentir o coração acelerado ao ouvir tiroteios na sua vizinhança.
Unidades fechadas
A Secretaria Municipal de Saúde não divulgou dados sobre atendimento e funcionamento nas clínicas da família nas comunidades analisadas pelo estudo para a comparação. Mas as entrevistas com os moradores são eloquentes para mostrar como os tiroteios provocados pelas operações policiais interferem na oferta dos serviços de saúde, resultando no fechamento de unidades, na ausência de profissionais e na impossibilidade de deslocamento até os serviços. Nas comunidades mais expostas aos conflitos armados, 59,5% das pessoas disseram que a unidade de saúde já havia sido fechada em algum momento; 31,6% souberam de algum episódio em que profissionais de saúde deixaram de trabalhar e 26,5% informaram que já haviam sido obrigados a adiar a procura por um serviço de saúde em função dos tiroteios.
O Fogo Cruzado constatou 1.556 tiroteios próximos a unidades de saúde na Região Metropolitana em 2020 – levantamento feito exatamente para medir o impacto durante a pandemia, quando a população necessitava mais de atendimento médico. Esses episódios se repetem como rotina, como ocorreu no conflito com 10 mortes na Penha. Em 2022, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, foram contabilizados 445 fechamentos de unidades de saúde em função da violência. “O prejuízo causado à saúde pela interrupção sistemática dos serviços pode ser difícil de medir, mas é evidente: as pessoas são obrigadas a faltar a consultas marcadas a meses, a interromper tratamentos, a não conseguir um atendimento mais emergencial porque o posto está fechado ou porque o profissional não pode chegar devido aos tiroteios”, exemplifica Mariana Siracusa. “A saúde é um direito básico, sistematicamente negado pela própria ação do estado”, acentua a cientista social e coordenadora do estudo.
O estudo lembra ainda que a chamada guerra às drogas tornou necessária a adoção, pela Secretaria Municipal de Saúde, de um protocolo utilizado em contexto de conflitos armados para possibilitar a manutenção dos atendimentos. Essa metodologia visa minimizar os efeitos da violência armada na prestação de serviços públicos essenciais – como saúde, educação e assistência social – e foi desenvolvido pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha na atuação em zonas de conflitos armados e guerras. A SMS do Rio estabeleceu um sistema de risco com três cores e divulga, em tempo real, a situação das unidades do município – vermelho para alto risco, onde há tiroteios; laranja, risco em avaliação após temporada vermelha, e amarelo, risco moderado.
O custo econômico do prejuízo à saúde
Como parte do projeto Drogas: Quanto Custa Proibir, a pesquisa Saúde na Linha de Tiro buscou também mensurar uma parte dos prejuízos econômicos da guerra às drogas no adoecimento de pessoas e no funcionamento dos serviços de saúde. No grupo das três comunidades mais afetadas pelos tiroteios (Nova Holanda, CHP-2 e Vidigal), 6,8% dos adultos ficaram impedidos, por pelo menos um dia, de realizar atividades rotineiras, como estudar e trabalhar, por questões de saúde. A não realização dessas atividades gerou uma perda de R$ 1.391.209,00 em um ano para o conjunto dos moradores das três comunidades mais expostas à violência armada.
Os pesquisadores estimaram que as unidades de saúde das comunidades mais expostas a tiroteios não funcionaram aproximadamente três dias a menos por ano em comparação às unidades das outras comunidades: o custo anual desses fechamentos para os cofres públicos e para a sociedade foi de R$ 316.963,72. Há também um custo adicional para o Estado no aumento do adoecimento nas comunidades mais afetadas pela violência. O custo anual do tratamento de paciente com hipertensão arterial ou depressão pode variar entre R$ 69 mil e R$ 95 mil, em valores de 2022.
O estudo conclui que “o atraso na realização de consultas e exames de rotina por conta da interrupção do funcionamento de unidades de saúde, o impedimento na realização das atividades cotidianas e os agravos em diversas condições de saúde devido a exposição rotineira à violência armada revelam um outro aspecto da política repressiva de drogas” e recomenda seu detalhamento em outras pesquisas e o debate amplo pela sociedade. “A guerra às drogas afeta toda a sociedade brasileira. Mas são os moradores de comunidades, pobres e negros, que mais adoecem com essa escolha política do Estado. Com essa pesquisa, queremos chamar atenção para essa realidade”, afirma a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do CESeC e do projeto Drogas: Quanto Custa Proibir.
O relatório Saúde na Linha de Tiro alerta que discurso de que, no Brasil, se vive uma guerra, e que o comércio de drogas precisa ser combatido a qualquer preço, tem servido para justificar uma política baseada em permanentes incursões policiais em favelas e periferias. “Ao fim e ao cabo, são os moradores de favelas e periferias que sofrem, adoecem e vivem sob estresse, medo e ansiedade”, aponta o documento do CESeC.
Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade