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Veja o que já enviamosQuando nossa analista decide se aposentar
No começo, não era fácil me abrir, expor minhas dores de favelado; mas encontrar semanalmente a terapeuta abriu a minha mente
Não é só uma sexta qualquer. Hoje, encerro minhas consultas com minha terapeuta. Não, não ganhei alta. ‘É apenas a minha aposentadoria’, ela me disse há algumas semanas, dando um espaço para que minha cabeça pudesse girar e entender o acontecido. A aposentadoria de nosso/a analista não é uma notícia fácil de digerir, sobretudo quando essa relação é tão longeva. Daquele tipo de notícia em que a gente fica sem chão; e não de graça.
No começo, eu tinha apenas 16 anos, era morador da Rocinha e ainda encucava com a questão de ser atendido numa sala da Visconde de Pirajá, em Ipanema, mesmo transitando à vontade por toda a cidade. Mas confesso que não era a coisa mais confortável do mundo descer o ‘morrão’ e chegar num lugar onde, até a abertura da porta do consultório, recebia olhares de cima a baixo. Dava vontade de perguntar se queriam entrar comigo na salinha e encontrar com Freud.
Ela, bem… eu nunca fiz questão de saber sua idade, mas tenho a hipótese de estar na casa dos 70. E ali, mais que uma fenda que diferenciava-nos na faixa etária, e sobretudo, a questão de classe e raça – e, mesmo com isso, perceber semelhanças, a partir de nossas trajetórias. Mas confesso: não era fácil me abrir, expor minhas dores de favelado, o peso de ser a exceção em um país que mata pessoas que trazem as características que carrego minuto sim, minuto também.
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Veja o que já enviamosE mais que isso: lutar contra um fato que custa muito ao outro, tendo ele que ouvir a recomendação “faça terapia”. Hoje uma espécie de meme, há uma década era visto como algo disruptivo. Quem fazia, tinha “coragem” de se expor; e levava a pecha de ser o “maluco” da turma. Mas espera: é maluco dialogar com alguém por uma hora, quase, para entender suas ações? E sendo negro? E sendo jovem?
Um preconceito que, mesmo com o passar dos anos e a democratização – às duras penas – de acesso ao atendimento psicológico, ainda se é percebido quando uma pesquisa realizada pela Talk Inc traz à tona uma tendência crescente no Brasil: a de que 1 em cada 10 brasileiros recorre a chats de inteligência artificial para desabafar, buscar conselhos ou simplesmente conversar. E não faz isso no campo real do jogo. Seria medo?
E nem é cogitada uma tentativa em grupo, como a que assisti no documentário disponível na plataforma Aquarius: “Irvin Yalom: De Frente Para o Sol”, que dá conta de explanar sobre a vida do psiquiatra e autor de best-sellers norte-americano, reconhecido por seu trabalho com terapias em grupo.
“Fazia parte do meu papel ser bastante ativo na formação do grupo, moldando suas normas e trazendo o grupo para o ‘aqui e agora’, lembrando – os de que o presente é o mais relevante e encontrando maneiras de levá-los do exterior para o interior”, diz Irvin, em um trecho do documentário.
Depois de dez anos, eu mudei. Já não moro mais na Rocinha, transito com medo pela cidade, mas tenho convicção de que encontrar aquela senhora semanalmente abriu a minha mente. É claro: psicanálise não é o “nirvana”, mas ajuda um bocado.
Pra hoje, só posso tentar procurar um outro divã pra lamentar a aposentadoria devida.
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