ODS 1
Pesquisa mostra que perdão e gratidão ajudam a reduzir riscos de infarto e AVC
Estudo clínico brasileiro apresentado este ano no Congresso Americano de Cardiologia constatou redução da pressão arterial em pacientes estimulados a ter atitudes positivas
“Quando cheguei de volta ao Brasil, eu disse para mim mesma: ‘Agora vou viver, minha vida vai ser diferente’”. A decisão da aposentada Maria Gilnusa Lima Alencar, 64, veio após um momento traumático. Ela passou uma semana internada em um hospital em Salt Lake City, nos Estados Unidos, em 2022, após ser atendida sem praticamente conseguir respirar. O diagnóstico de cardiomiopatia hipertensiva, uma resposta do coração ao aumento da pressão arterial, somada à insuficiência respiratória aguda e hipertensão pulmonar, foi a consequência de anos de negligência com a própria saúde e bem-estar.
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O autocuidado ficou de lado. Ela foi acumulando mágoas e se isolou, em resposta ao momento de infelicidade em que se viu na cidade estrangeira, a 9 mil quilômetros da sua terra, Maceió, Alagoas. O enfrentamento negativo das situações difíceis da vida foi a única maneira como conseguiu agir, mas para a ciência, é uma conduta que oferece ainda mais riscos à saúde.
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Veja o que já enviamosO sentimento de raiva, por exemplo, aumenta em 44% a incidência de insuficiência cardíaca, fator de risco para AVC e infarto, de acordo com pesquisa da Universidade da Carolina do Norte. E a solidão e o isolamento social promovem o aumento da mortalidade precoce em 29%, como afirmam pesquisadores da Universidade Brigham Young.
Mas, do lado oposto, um estudo clínico brasileiro mostra, pela primeira vez, os efeitos diretos do estímulo de quatro sentimentos edificantes em pacientes hipertensos: perdão, gratidão, otimismo e propósito de vida. Trata-se do enfrentamento positivo, comportamento associado à espiritualidade, que hoje é estudado por vários pesquisadores e demonstra ter efeitos benéficos sobre o organismo humano e a saúde do coração.
O ensaio, realizado na Universidade Federal de Goiás, pela médica Maria Emília Teixeira, demonstrou que “doses diárias” de atitudes positivas são capazes de reduzir a pressão arterial sistólica (máxima), e de manter as artérias mais relaxadas, fator favorável para o controle da pressão. O professor e cardiologista Álvaro Avezum, diretor científico do Departamento de Espiritualidade e Medicina Cardiovascular (DEMCA) da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), é autor sênior da pesquisa.
Ela foi apresentada em março deste ano, no Congresso Americano de Cardiologia, na sessão Late Breaking Clinical Trials, em tradução literal, “Ensaios Clínicos de Última Hora”, quando o resultado é mostrado em primeira mão. E, no Congresso Brasileiro de Cardiologia, em outubro, foi eleito o melhor trabalho. Atualmente, está prestes a ser publicado.
Avezum detalha que o estudo durou 12 semanas e comparou 50 indivíduos em um grupo e 50 em outro, todos hipertensos e tomando medicamentos para a hipertensão, mas só um deles recebeu a intervenção baseada em espiritualidade.
O paciente fazia pequenas anotações diárias sobre circunstâncias onde o perdão, a gratidão, o otimismo e o propósito de vida eram necessários. O resultado é que após as 12 semanas, houve redução da pressão arterial sistólica em 7 milímetros de mercúrio e as artérias ficaram mais relaxadas no grupo estimulado a ter os sentimentos positivos.
A conclusão ainda não indica que as estratégias usadas no estudo devam ser aplicadas para tratar doenças, ao menos por enquanto. Mas as pesquisas apontam que aliar a espiritualidade à medicina promove benefícios reais e mensuráveis à saúde humana.
“No momento, nós testamos os efeitos na hipertensão arterial. Ainda vale a pena testar em outros tratamentos, como insuficiência cardíaca, diabetes, doença coronária, obesidade, etc. Este estudo é um indicador de benefício, então temos que usar a palavra correta: pode ser considerado no tratamento? Sim. Deve ser recomendado, não ainda. Mas temos o plano de estender para outras áreas e em uma população maior para sair do ‘pode ser considerado’ para o ‘deve ser indicado’”, destaca o médico.
Espiritualidade é essencial a todos, e não a exercitar pode trazer prejuízos à saúde
Durante o pós-operatório de uma cirurgia cardíaca com complicações, a depressão afetou ainda mais a saúde de Ederaldo Soares da Silva, 61. O ex-jogador profissional de futebol tinha vida de atleta, até acordar intubado na cama do hospital após infartar, em 2012, em consequência da hipertensão e do colesterol alto.
Por um ano e meio, a recuperação parecia não vir e o estado de saúde do comerciante o fazia desacreditar que viveria. “Meus amigos vinham me visitar como se estivessem vindo se despedir. Era pelo estado em que me encontravam”, lembra.
A melhora só ocorreu quando ele decidiu procurar um novo médico, que recomendou tratamentos mais eficazes. Corpo e mente começaram a reagir juntos e os sentimentos de tristeza e dúvidas deram lugar ao otimismo e propósito de vida.
“Os exames foram ficando favoráveis, fui ficando feliz e me fortaleci. Lembrei do exemplo do meu pai. Ele se operou do coração e só morreu muitos anos depois, por outras causas. Entendi que era o meu momento de escolher viver”, conta.
Católico praticante, Ederaldo diz que a fé o ajudou, e faz sentido cientificamente. Mas o Departamento de Espiritualidade e Medicina Cardiovascular da SBC ressalta que, para além da religião, a maneira positiva de enfrentar as situações – aliada na recuperação de pacientes – é resultado da espiritualidade, presente em todos os indivíduos, religiosos ou não.
“O conjunto de valores morais, emocionais e mentais que norteiam o que pensamos, como nos comportamos e como agimos, seja no relacionamento da pessoa consigo mesma ou com os outros, isso é espiritualidade. Qualquer ser humano, esses 8,2 bilhões que vivemos no planeta Terra, todos nós temos”, explica o cardiologista Álvaro Avezum.
Entre as diretrizes do Departamento, a diferenciação entre espiritualidade e religiosidade recebe destaque para esclarecer a médicos e pacientes que o objeto de estudo em questão é a soma de atitudes presentes em todas as pessoas, independente de crenças. E não as exercitar de forma positiva pode trazer danos à saúde, a médio e longo prazo. O médico destaca que o enfrentamento negativo, quando a pessoa cultiva raiva, ódio, ressentimento e vingança, são sentimentos capazes de provocar o adoecimento.
A aposentada Gilnusa Alencar viveu na prática os efeitos nocivos desse enfrentamento enquanto morou nos Estados Unidos. O ambiente insalubre no trabalho, o estranhamento com a língua inglesa, a diferença cultural, a distância dos amigos, tudo contribuiu para a fragilização da espiritualidade que nela sempre foi latente. Os sentimentos a adoeceram, primeiro mentalmente, e, em seguida, os problemas passaram a se manifestar no corpo.
Cientificamente, o cardiologista explica que o que ocorre no organismo é uma reação severa e perigosa. O corpo recebe maior descarga adrenérgica, ou seja, mais adrenalina na circulação, o que aumenta a frequência cardíaca e a pressão arterial.
O nível de cortisol (hormônio do estresse) também aumenta e ocorrem as arritmias. A coagulação do sangue sofre alterações, que podem promover eventos trombóticos, e há maior chance de inflamação no sangue, fator de risco para aterosclerose coronária, ou obstrução das artérias.
“Existe um nexo entre o enfrentamento negativo e essa alteração mecanística de hormônios. Essas alterações, ocorrendo repetidamente, durante dias, semanas ou mesmo anos, chega uma hora em que o tecido adoece e aí tem a eclosão da doença”, detalha Avezum.
No caso de Gilnusa, a doença a deixou em uma cadeira de rodas por conta da obesidade e do cansaço, e um aparelho de oxigênio de uso contínuo. A cura só veio quando ela conseguiu voltar ao Brasil, voltou a frequentar a praia, lugar em que se sente conectada com a natureza, passou a fazer caminhadas e outras atividades de relaxamento.
“O que me fez ficar curada foi o exercício da gratidão, do perdão. A gratidão cura, o amor cura, o perdão cura”, diz.
Ela tem razão. Pesquisa da Universidade Autônoma de Madri afirma que quando estamos satisfeitos com a nossa própria vida, temos 12% menos risco de mortalidade. E, quando temos propósito de vida, a redução é de 17%, segundo estudo da Icahn School of Medicine at Mount Sinai.
Religião e espiritualidade não são sinônimos
A tendência de as pessoas associarem espiritualidade à religião fez a SBC, em suas diretrizes, destrinchar três importantes conceitos para o estudo do tema. A espiritualidade é definida como o conjunto de valores morais, mentais e emocionais. A religião é conceituada como um sistema organizado de crenças, práticas e dogmas. E o terceiro conceito é a religiosidade, que é o quanto o indivíduo acredita, segue e pratica uma religião, seja em templos ou de forma individual.
A cardiologista Adelle Cristine, integrante do DEMCA, comenta que a pessoa que utiliza o enfrentamento religioso negativo como prática pode atribuir a doença a um “castigo divino” ou se sente culpada por comportamentos que teve e que pensa ter contribuído para o adoecimento. “Felizmente, esses casos parecem ser minoria”, afirma.
Mas a religião tem também a interferência positiva, como demonstra um estudo conduzido por ela e outros pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe. Uma análise dos pacientes identificou que aqueles com maiores níveis de religiosidade e espiritualidade apresentaram menor prevalência de consumo de álcool, tabagismo, hipertensão, dislipidemia (níveis elevados de gordura no sangue) e eventos cardiovasculares, como AVC e infarto. Eles também tinham, em geral, hábitos de vida mais saudáveis e maior adesão a tratamentos de saúde.
“Ainda é preciso que haja mais estudos clínicos controlados para que a gente possa compreender melhor de que forma isso ocorre e como esse resultado influencia em termos de redução do número de infartos e AVCs. Mas também já existem estudos que demonstram a influência positiva da religiosidade e espiritualidade na saúde, independente dos efeitos benéficos que são atribuídos ao autocuidado”, afirma a cardiologista.
Diante das descobertas, a cardiologia, no Brasil e no mundo, caminha para um futuro que une ciência e espiritualidade e que remete ao passado, com atendimentos clínicos mais humanizados e atentos ao paciente. “Como disse o médico William Osler, é mais importante saber que tipo de paciente tem a doença e não que tipo de doença tem o paciente. Então, o futuro será um resgate a essa tão falada humanização na relação médico-paciente, mantendo todo o benefício da tecnologia já existente, mas também abordando esses outros aspectos. E uma vez que a gente faça isso, o futuro será de prevenção, e aquilo que é passivo de prevenção tem que ser implementado”, pontua o cardiologista Álvaro Avezum.
Jornalista por formação com o desejo e compromisso de informar com verdade, responsabilidade e empatia. Acredita no jornalismo como ferramenta de transformação e inclusão social. Atuou em redações no estado de Alagoas, sua terra natal, e tem colaborado com reportagens para veículos como Estadão, Istoé e Portal Terra.