ODS 1
Os dois lados da moeda do serviço de saúde pública para pessoas trans no Brasil
De um lado, modelo dialoga com os princípios de equidade e integralidade do SUS. Do outro, portas fechadas, preconceito e falta de acesso a exames e medicações.
“É um local de saúde que você se sente acolhida. Aqui, se você está ciente da escolha, é encaminhado para o bloco cirúrgico. Temos uma facilidade imensa de acesso aos profissionais de saúde neste espaço”. Este é o relato de Abby Moreira, a primeira mulher trans a ocupar a Guarda Municipal de Jaboatão dos Guararapes, município da Região Metropolitana do Recife.
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Desde 2016, Abby é usuária do Espaço Trans, o único serviço especializado de atendimento à saúde integral nas regiões Norte e Nordeste e um dos cinco que há em todo o país. Os outros quatro estão distribuídos em Goiânia, Rio de Janeiro e São Paulo. Foi na unidade de Recife, que, em 2020, Abby realizou a cirurgia de redesignação sexual.
Hoje, ela é uma mulher translésbica – possui o gênero feminino e orientação afetiva sexual por mulheres. Infelizmente, os pontos positivos que Abby ressalta no Espaço Trans não fazem parte da realidade na rede pública de saúde. Essa questão é uma das pautas importantes a se refletir neste dia 29 de janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans.
Entre as usuárias, são comuns relatos de longas filas de espera devido a ausência de serviços especializados, discriminação de profissionais de saúde, dificuldades de acesso a exames médicos e medicações, especialmente à terapia hormonal que o paciente precisa realizar logo após a cirurgia, e pelo resto da vida. Um bom exemplo é o que Lilian Fonthinelly, mulher trans e ativista de Direitos Humanos da Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans), vivencia nos serviços. “Muitas vezes, criam serviços especializados e quando a gente busca atendimento, as portas estão fechadas ou tem filas enormes. A gente tenta fazer um exame de mama, não consegue. Não tem exame nem para as mulheres cis! E tem a medicação [hormonal] que a gente não consegue [no atendimento público]. Quem tem 90 reais para pagar, compra na farmácia; quem não tem, sofre”, lamenta.
Os relatos de Abby e Lilian revelam duas realidades bem diferentes na saúde pública voltada às pessoas trans. De um lado, um modelo que dialoga com os princípios de equidade e integralidade do Sistema Único de Saúde (SUS). Do outro, discriminação e precariedade. Em comum, as descrições reforçam o princípio de equidade previsto no SUS e baseado no Artigo 196 da Constituição Federal, que afirma que a Saúde é um direito de todos e dever do Estado, e a urgência de alcançar as pessoas trans.
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Veja o que já enviamosAbby Moreira, mulher translésbica: usuária do Espaço Trans desde 2017. Foto Arnaldo Sete
Acolhimento e fácil acesso
O Espaço Trans, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), nasceu de um projeto experimental entre os anos de 2000 e 2010. Lá, Joyce realizou sua mudança de sexo, acompanhada pela jornalista e, hoje, professora da Universidade Federal de Pernambuco, Fabiana Moraes, que deu origem à premiada reportagem “O nascimento de Joyce”, hoje documentada em livro homônimo.
Com o fim da iniciativa, o local se tornou um centro de atendimento à saúde integral das pessoas trans, regido pela portaria do Ministério da Saúde nº 2803, de 2013, que redefine e amplia o processo transexualizador no SUS. Nesta lógica, avalia a secretária do Espaço Trans, Ericka Deliylah, a unidade ampliou sua capacidade de atenção. “Elas chegam em busca da cirurgia, mas encontram atendimento acolhedor, humanizado. A gente acaba orientando outras pessoas sobre direitos, vai além da questão de saúde”, explica.
A equipe multidisciplinar envolve psicólogos, assistente social, psiquiatra e oferece além das consultas e cirurgias, rodas de diálogo para aprofundar temas de interesse e promover a interação. “Acredito que esse contato prepara a pessoa trans para lidar melhor com a sociedade”, aponta Ericka.
O acolhimento, como bem destacou Abby, fez toda a diferença em sua vida. Nascida em lar evangélico, que condena a transexualidade, ela cresceu reprimindo o desconforto com seu sexo de origem. Apenas na fase adulta, criou a consciência de que o seu desejo não era algo nefasto. “Tenho problemas com o meu sexo biológico desde os cinco anos, quando comecei a usar as roupas da minha irmã. Cresci numa família em que tudo se resume a céu e inferno. A demora em assumir minha identidade de gênero e iniciar a transição foi até perceber que não estava errada, o erro estava nas pessoas”, relembra. Ela considera que as mulheres trans “são muito discriminadas em outros serviços, aqui [no Espaço Trans] encontram acolhimento”.
O ambulatório especializado, criado para atender 130 pessoas, hoje acompanha 320 mulheres e homens trans, com fila de espera de 850 pacientes. “O meu trabalho, muitas vezes, é de jogar um balde de água fria [em quem busca atendimento]. O ideal é que todo hospital universitário tivesse um centro desse, com olhar mais sensível para a população trans”, reivindica a secretária do espaço.
Superlotação, falta de estrutura e discriminação
Segundo Lilian Fonthinelly, da Amotrans, Pernambuco é um dos estados com o maior número de ambulatórios trans. Na região metropolitana do Recife, são seis unidades. Ainda assim, “não dá conta, pois a população trans têm crescido muito”. Segundo ela, quem não tem acesso aos serviços especializados evita ir para o atendimento geral com medo de intolerância. “A população se esquiva do serviço devido aos atendimentos preconceituosos”, reforça.
Ela lembra que, para as trans em condição de pobreza, a situação é ainda mais grave. “Tem meninas que vivem só da prostituição, não têm dinheiro para comprar o hormônio que deve ser tomado diariamente”. Outra queixa é sobre o acompanhamento médico hormonal e a realização de exames de rotina, a exemplo dos exames preventivos de câncer de mama.
“A gente precisa fazer exames regulares [aferição de hormônio]. Muita gente tem preconceito e diz que nós, mulheres trans, não precisamos de exame [preventivo] de câncer de mama. Mas a gente precisa, botamos silicone”, pondera. A transição feita junto a um serviço médico de saúde é importante para evitar a aplicação de materiais industriais, que podem causar doenças. Muitas mulheres que não têm acesso ao serviço de saúde pública recorrem a este tipo de prótese.
Doença, não – um direito
Desde 1990, a transexualidade deixou de ser considerada doença, tendo sido retirada da Classificação Internacional de Doenças (CID). Ainda assim, essa condição é patologizada – tratada como transtorno mental, inclusive em diversos serviços de saúde. “Em outros serviços que fazem o mesmo trabalho que aqui [Espaço Trans], existe a exigência do laudo psiquiátrico para você fazer a cirurgia. Não estamos lidando com questão de saúde mental, mas corporal”, sublinha Abby.
Éricka, que é travesti e trabalha no Espaço, há sete anos, acompanha o esforço das pessoas que enfrentam diversas dificuldades para acessar o serviço. “Temos uma usuária que realizou a cirurgia já perto dos 60 anos e sofreu bastante preconceito de idade. Mas ela levou de boa, hoje, enfrenta dificuldades financeiras, mas chega aqui feliz, demonstrando que a cirurgia a deixou ainda mais realizada”, relata.
O Espaço Trans atende pacientes de diversos estados brasileiros. Muitas chegam ao local sem nenhuma condição de se alimentar. “Vi usuárias comendo bolacha com café frio. A gente vê o desgaste que é vir todo mês, sem ajuda de custo”, defende Éricka, que avalia como positiva a aposta do serviço na “lógica despatologizante”, a transexualidade como um direito e uma questão de saúde sexual.
O valor pago pelo Tratamento Fora de Domicílio (TFD) para alimentação do paciente e acompanhante é de R$ 16,80, que dá R$ 8,40 para cada um. Em Recife, o preço médio de uma marmitex é R$ 12.
Sopram ventos de esperança
Para Abby Moreira, que, hoje atua na Secretaria de Direitos Humanos de Jaboatão dos Guararapes, os últimos quatro anos não foram fáceis para a população trans. “Fomos demonizados, mesmo assim, resistimos, sobrevivemos”, orgulha-se. Agora, a população conta com a Secretaria Nacional LGBTQIA+, que integra o Ministério Nacional de Direitos Humanos, e é encabeçada pela comunicadora social e ativista Symm Larrat.
Abby vê o momento como oportuno para superar os desafios no acesso ao SUS. “Um homem trans não vai se sentir à vontade em estar no meio de mulheres cis fazendo exame ginecológico. Então, é preciso organizar os serviços de saúde e capacitar os profissionais para que atendam a população trans adequadamente. Essa população ainda está muito afastada do SUS”, enfatiza.
Ericka defende que é importante os cursos de medicina incluírem cadeiras sobre atendimento à população trans. “Também são necessários mais centros especializados para acolher e atender transexuais”, conclui.
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Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.