Os dois lados da moeda do serviço de saúde pública para pessoas trans no Brasil

De um lado, modelo dialoga com os princípios de equidade e integralidade do SUS. Do outro, portas fechadas, preconceito e falta de acesso a exames e medicações.

Por Adriana Amâncio | ODS 3 • Publicada em 27 de janeiro de 2023 - 10:54 • Atualizada em 6 de fevereiro de 2023 - 07:53

Além de oferecer atendimento ambulatorial, o Espaço Trans oferece orientação sobre direitos e formas de enfrentar preconceito. Foto Arnaldo Sete

“É um local de saúde que você se sente acolhida. Aqui, se você está ciente da escolha, é encaminhado para o bloco cirúrgico. Temos uma facilidade imensa de acesso aos profissionais de saúde neste espaço”. Este é o relato de Abby Moreira, a primeira mulher trans a ocupar a Guarda Municipal de Jaboatão dos Guararapes, município da Região Metropolitana do Recife. 

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Desde 2016, Abby é usuária do Espaço Trans, o único serviço especializado de atendimento à saúde integral nas regiões Norte e Nordeste e um dos cinco que há em todo o país. Os outros quatro estão distribuídos em Goiânia, Rio de Janeiro e São Paulo. Foi na unidade de Recife, que, em 2020, Abby realizou a cirurgia de redesignação sexual. 

Hoje, ela é uma mulher translésbica – possui o gênero feminino e orientação afetiva sexual por mulheres. Infelizmente, os pontos positivos que Abby ressalta no Espaço Trans não fazem parte da realidade na rede pública de saúde. Essa questão é uma das pautas importantes a se refletir neste dia 29 de janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans.

Elas chegam em busca da cirurgia, mas encontram atendimento acolhedor, humanizado. A gente acaba orientando outras pessoas sobre direitos, vai além da questão de saúde

Ericka Deliylah
Secretária do Espaço Trans

Entre as usuárias, são comuns relatos de longas filas de espera devido a ausência de serviços especializados, discriminação de profissionais de saúde, dificuldades de acesso a exames médicos e medicações, especialmente à terapia hormonal que o paciente precisa realizar logo após a cirurgia, e pelo resto da vida. Um bom exemplo é o que Lilian Fonthinelly, mulher trans e ativista de Direitos Humanos da Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans), vivencia nos serviços. “Muitas vezes, criam serviços especializados e quando a gente busca atendimento, as portas estão fechadas ou tem filas enormes. A gente tenta fazer um exame de mama, não consegue. Não tem exame nem para as mulheres cis! E tem a medicação [hormonal] que a gente não consegue [no atendimento público]. Quem tem 90 reais para pagar, compra na farmácia; quem não tem, sofre”, lamenta. 

Os relatos de Abby e Lilian revelam duas realidades bem diferentes na saúde pública voltada às pessoas trans. De um lado, um modelo que dialoga com os princípios de equidade e integralidade do Sistema Único de Saúde (SUS). Do outro, discriminação e precariedade. Em comum, as descrições reforçam o princípio de equidade previsto no SUS e baseado no Artigo 196 da Constituição Federal, que afirma que a Saúde é um direito de todos e dever do Estado, e a urgência de alcançar as pessoas trans. 

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Abby Moreira, mulher translésbica: usuária do Espaço Trans desde 2017. Foto Arnaldo SeteAbby Moreira, mulher translésbica: usuária do Espaço Trans desde 2017. Foto Arnaldo Sete

Acolhimento e fácil acesso

O Espaço Trans, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), nasceu de um projeto experimental entre os anos de 2000 e 2010. Lá, Joyce realizou sua mudança de sexo, acompanhada pela jornalista e, hoje, professora da Universidade Federal de Pernambuco, Fabiana Moraes, que deu origem à premiada reportagem “O nascimento de Joyce”, hoje documentada em livro homônimo. 

Tenho problemas com o meu sexo biológico desde os cinco anos, quando comecei a usar as roupas da minha irmã. Cresci numa família em que tudo se resume a céu e inferno. A demora em assumir minha identidade de gênero e iniciar a transição foi até perceber que não estava errada, o erro estava nas pessoas

Abby Moreira
Guarda Municipal

Com o fim da iniciativa, o local se tornou um centro de atendimento à saúde integral das pessoas trans, regido pela portaria do Ministério da Saúde nº 2803, de 2013, que redefine e amplia o processo transexualizador no SUS. Nesta lógica, avalia a secretária do Espaço Trans, Ericka Deliylah, a unidade ampliou sua capacidade de atenção. “Elas chegam em busca da cirurgia, mas encontram atendimento acolhedor, humanizado. A gente acaba orientando outras pessoas sobre direitos, vai além da questão de saúde”, explica. 

A equipe multidisciplinar envolve psicólogos, assistente social, psiquiatra e oferece além das consultas e cirurgias, rodas de diálogo para aprofundar temas de interesse e promover a interação. “Acredito que esse contato prepara a pessoa trans para lidar melhor com a sociedade”, aponta Ericka.

O acolhimento, como bem destacou Abby, fez toda a diferença em sua vida. Nascida em lar evangélico, que condena a transexualidade, ela cresceu reprimindo o desconforto com seu sexo de origem. Apenas na fase adulta, criou a consciência de que o seu desejo não era algo nefasto. “Tenho problemas com o meu sexo biológico desde os cinco anos, quando comecei a usar as roupas da minha irmã. Cresci numa família em que tudo se resume a céu e inferno. A demora em assumir minha identidade de gênero e iniciar a transição foi até perceber que não estava errada, o erro estava nas pessoas”, relembra. Ela considera que as mulheres trans “são muito discriminadas em outros serviços, aqui [no Espaço Trans] encontram acolhimento”. 

O ambulatório especializado, criado para atender 130 pessoas, hoje acompanha 320 mulheres e homens trans, com fila de espera de 850 pacientes. “O meu trabalho, muitas vezes, é de jogar um balde de água fria [em quem busca atendimento]. O ideal é que todo hospital universitário tivesse um centro desse, com olhar mais sensível para a população trans”, reivindica a secretária do espaço. 

Superlotação, falta de estrutura e discriminação

Segundo Lilian Fonthinelly, da Amotrans, Pernambuco é um dos estados com o maior número de ambulatórios trans. Na região metropolitana do Recife, são seis unidades. Ainda assim, “não dá conta, pois a população trans têm crescido muito”. Segundo ela, quem não tem acesso aos serviços especializados evita ir para o atendimento geral com medo de intolerância. “A população se esquiva do serviço devido aos atendimentos preconceituosos”, reforça.

Ela lembra que, para as trans em condição de pobreza, a situação é ainda mais grave. “Tem meninas que vivem só da prostituição, não têm dinheiro para comprar o hormônio que deve ser tomado diariamente”. Outra queixa é sobre o acompanhamento médico hormonal e a realização de exames de rotina, a exemplo dos exames preventivos de câncer de mama. 

“A gente precisa fazer exames regulares [aferição de hormônio]. Muita gente tem preconceito e diz que nós, mulheres trans, não precisamos de exame [preventivo] de câncer de mama. Mas a gente precisa, botamos silicone”, pondera. A transição feita junto a um serviço médico de saúde é importante para evitar a aplicação de materiais industriais, que podem causar doenças. Muitas mulheres que não têm acesso ao serviço de saúde pública recorrem a este tipo de prótese.

Doença, não – um direito

Desde 1990, a transexualidade deixou de ser considerada doença, tendo sido retirada da Classificação Internacional de Doenças (CID). Ainda assim, essa condição é patologizada – tratada como transtorno mental, inclusive em diversos serviços de saúde. “Em outros serviços que fazem o mesmo trabalho que aqui [Espaço Trans], existe a exigência do laudo psiquiátrico para você fazer a cirurgia. Não estamos lidando com questão de saúde mental, mas corporal”, sublinha Abby.

Éricka, que é travesti e trabalha no Espaço, há sete anos, acompanha o esforço das pessoas que enfrentam diversas dificuldades para acessar o serviço. “Temos uma usuária que realizou a cirurgia já perto dos 60 anos e sofreu bastante preconceito de idade. Mas ela levou de boa, hoje, enfrenta dificuldades financeiras, mas chega aqui feliz, demonstrando que a cirurgia a deixou ainda mais realizada”, relata. 

O Espaço Trans atende pacientes de diversos estados brasileiros. Muitas chegam ao local sem nenhuma condição de se alimentar. “Vi usuárias comendo bolacha com café frio. A gente vê o desgaste que é vir todo mês, sem ajuda de custo”, defende Éricka, que avalia como positiva a aposta do serviço na “lógica despatologizante”, a transexualidade como um direito e uma questão de saúde sexual.

O valor pago pelo Tratamento Fora de Domicílio (TFD) para alimentação do paciente e acompanhante é de R$ 16,80, que dá R$ 8,40 para cada um. Em Recife, o preço médio de uma marmitex é R$ 12.

Lilian Fonthynelli: preconceito ainda entranhado no serviço de saúde afasta a população trans. Foto arquivo pessoal

Sopram ventos de esperança

Para Abby Moreira, que, hoje atua na Secretaria de Direitos Humanos de Jaboatão dos Guararapes, os últimos quatro anos não foram fáceis para a população trans. “Fomos demonizados, mesmo assim, resistimos, sobrevivemos”, orgulha-se. Agora, a população conta com a Secretaria Nacional LGBTQIA+, que integra o Ministério Nacional de Direitos Humanos, e é encabeçada pela comunicadora social e ativista Symm Larrat. 

Abby vê o momento como oportuno para superar os desafios no acesso ao SUS. “Um homem trans não vai se sentir à vontade em estar no meio de mulheres cis fazendo exame ginecológico. Então, é preciso organizar os serviços de saúde e capacitar os profissionais para que atendam a população trans adequadamente. Essa população ainda está muito afastada do SUS”, enfatiza.

Ericka defende que é importante os cursos de medicina incluírem cadeiras sobre atendimento à população trans. “Também são necessários mais centros especializados para acolher e atender transexuais”, conclui.

Adriana Amâncio

Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.

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