Era para ser uma conversa rápida, de meia hora, no máximo. Mas virou um papo longo, profundo e divertido. O tema: a iniciativa pioneira que Paulo Gustavo teve de ceder, por um mês, o próprio perfil no Instagram para que a filósofa, acadêmica e escritora Djamila Ribeiro pudesse levar o debate sobre as questões raciais no Brasil para um público “que ainda não havia se sensibilizado com o tema”, como ele mesmo explicou. Uma amiga em comum, a atriz e roteirista Mônica Martelli intermediou o contato. “Vocês vão se dar muito bem… os dois gostam de conversar!”, me disse ela. “Ele vai adorar essa prosa, Alexandre”, confirmou Djamila.
No dia 2 de junho de 2020, data em que começaria a “ocupação” da Djamila, ele postou: “Me sinto na obrigação de ajudar e o meu melhor posicionamento será de escutar e aprender! Vamos visibilizar as vozes que sempre falaram, mas não foram ouvidas! Vamos aprender juntos? Essa é uma luta de todas e todos! Conhecer e entender o racismo no país é nossa responsabilidade política! Já li livros e artigos dela e acho ela uma gênia! Estarei acompanhando essas aulas e voltamos a nos encontrar em julho! Obrigado Rainha Djamila, por topar entrar na minha conta e trazer histórias e conhecimentos que vão tocar e transformar milhares de pessoas.”
Para mim – homem branco, heterossexual, jornalista e professor de História da África na PUC-Rio – a atitude do Paulo era de uma coragem muito poucas vezes vista e exercida. Então propus aos colegas do #Colabora um texto a respeito, dando ênfase ao ineditismo dessa dobradinha entre Paulo Gustavo e Djamila Ribeiro. Mostrando também que vários outros artistas também se dedicaram à causa ao seguirem o exemplo deles.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosLiguei para a casa de Paulo Gustavo e, logo de cara, tomei um susto. Quem atendeu o telefone logo depois do primeiro toque foi a dona Hermínia! A própria, claro! Eu quase engatei “Olá, dona Hermínia, o Paulo está?” mas, meio confuso e tenso, fiquei mesmo no simples: “Por favor, eu gostaria de falar com o Paulo”.
Do outro lado da linha uma gargalhada e a resposta: “Sou eu! É você o amigo da Mônica e o marido da Bianca? Não reconhece essa minha voz inconfundível?”
Foi a primeira das várias gargalhadas que daríamos em uma conversa que durou duas horas. No final, minha mulher comentou: “deve ter sido boa mesmo essa conversa, daqui de fora do escritório eu só ouvi você rindo!”
E foi mesmo! Paulo Gustavo e eu falamos de uma infância que nem sabíamos ter em comum em Niterói, de uma ou outra cena dos filmes, do fato de ele estar trabalhando “quatro vezes mais” em casa do que se estivesse indo para o escritório, de algumas passagens engraçadas com os filhos aprendendo a imitar os sons dos animais da fazenda, a gente fazendo pouco caso da Galinha Pintadinha apesar de reconhecermos o valor terapêutico dela, e também a prova de amor e de coragem que era trocar fraldas recheadas de cocô… no caso dele e do marido Thales Bretas, fraldas em dose dupla.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]Nos últimos momentos do papo, acabamos dividindo o medo que ambos tínhamos a respeito da covid-19. Éramos pais e o maior medo de um pai e/ou uma mãe é morrer enquanto os filhos ainda são muito pequenos e não podermos dar o carinho, o amor, a educação e o convívio que eles – e nós – merecemos! Não só os filhos, ele não queria deixar o Thales, a mãe, a irmã ou os amigos desamparados! Lembro muito do Paulo dividindo comigo esse medo e o fato de ter desenvolvido o que ele chamou de “neurose de limpeza” porque ele não queria “dar o menor mole pro vírus”.
[/g1_quote]Mas também falamos de assuntos sérios, aqueles que me fizeram ligar e trocar esse dedo de prosa. Ele me pareceu sempre muito consciente do lugar de privilégio que tinha e exercia. “Apesar de gay, sou branco, né? E branco já tem umas 10 casas de vantagem!”, ele me disse. Por isso foi tão importante a atitude dele em, como pessoa branca, fazer algo que chamasse a atenção sobre o debate racial e que também despertasse o interesse de outras pessoas brancas para questões como “lugar de fala” e “racismo estrutural”. Estávamos vivendo as consequências diretas do assassinato do segurança George Floyd, nos EUA, e da comoção mundial que pautou o movimento “vidas negras importam” (black lives matter).
Paulo, como fã confesso da Djamila, dizia que era preciso causar um certo desconforto para as pessoas poderem “enxergar o que estava na cara de todo mundo, mas poucos tinham coragem ou vergonha de assumir”, que o racismo – e consequentemente a luta antirracista – começava, primeiro, ao assumir a própria ignorância sobre o assunto porque “a gente, que é branco, não domina. E a gente precisa se informar para se incomodar, porque o racismo está em tudo que é lugar! Eu fiquei mais atento, comecei a perceber o racismo mais rápido. Se eu consegui ficar com o olhar menos ingênuo eu tinha que tentar sensibilizar mais gente. Era a minha obrigação como figura pública!”, defendeu o ator. E foi o que ele fez naquele mês de junho de 2020 e que foi seguido por vários colegas atores e outras personalidades durante meses.
Aquela conversa sincera nos aproximou, dois estranhos que se descobriram amigos de infância há duas horas. Nos últimos momentos do papo, acabamos dividindo o medo que ambos tínhamos a respeito da covid-19. Éramos pais e o maior medo de um pai e/ou uma mãe é morrer enquanto os filhos ainda são muito pequenos e não podermos dar o carinho, o amor, a educação e o convívio que eles – e nós – merecemos! Não só os filhos, ele não queria deixar o Thales, a mãe, a irmã ou os amigos desamparados! Lembro muito do Paulo dividindo comigo esse medo e o fato de ter desenvolvido o que ele chamou de “neurose de limpeza” porque ele não queria “dar o menor mole pro vírus”.
Mesmo com todos os cuidados, eu e ele nos infectamos. Paulo bem antes de mim. No momento em que escrevo estas lembranças estou emergindo de mais de 12 dias com a covid-19. Ao contrário do Paulo, tive o que os médicos chamam de “sintomas brandos”. Mesmo assim eu e minha mulher passamos por dias de fadigas, cansaços, fraquezas, febres e uma espécie de “fog mental”, como diz o doutor Dráuzio Varella. Uma confusão de pensamentos que vão desde a vontade de melhorar logo, ao medo de morrer sufocado se for preciso correr contra o tempo para dar entrada em uma emergência. Não há escapatória desses pensamentos e desses sentimentos.
É por isso que eu digo com todas as letras que essa doença não é apenas uma “gripezinha”, é um vírus que devasta a saúde e o psicológico de qualquer um. É difícil. É sofrido. Assim como vinha sendo muito sofrido acompanhar o tempo todo em que o Paulo passou lutando contra essa doença, além das correntes de orações que os amigos em comum fizeram extensivamente em todo o período no qual o comediante, ator e roteirista ficou internado.
Ele foi um guerreiro. Tem e teve muito mais coragem e honradez no campo de batalha do que o bando de “líderes” que menosprezam o coronavírus e, pior, convencem outros de que o vírus não merece ser levado a sério. Bom, pelo menos até ser convocado para depor em uma CPI ou ser espremido pelas evidências cada vez mais óbvias de que a teimosia negacionista que levou centenas de milhares à morte tem algumas impressões digitais indeléveis. E cada um de nós sabe de quem são as marcas desses dedos.
Já poderíamos ter vacinado TODAS as pessoas com mais de 40 anos há meses. Como Israel e os EUA fizeram. E não foi por falta de apelos, como o próprio Paulo Gustavo escreveu em um dos últimos posts: “CADÊ A VACINA MEU DEUS? Se liga na aglomeração, gente. Sair de casa apenas quem precisa TRABALHAR!”
Paulo, você passou como um cometa! Não foi em vão. Muito obrigado.