O racismo e as reações à violência racial em dois hemisférios

Manifestação em Nova York contra a morte de George Floyd, negro assassinado por policiais brancos em Minneapolis (EUA): protestos contra racismo lá e aqui no Brasil (Johannes EISELE / AFP)

Em meio à pandemia, brasileiros negros que vivem nos Estados Unidos comparam as atitudes racistas e os protestos da população nos dois países

Por Viviane Faver | ODS 16 • Publicada em 3 de junho de 2020 - 08:57 • Atualizada em 11 de fevereiro de 2021 - 16:42

Manifestação em Nova York contra a morte de George Floyd, negro assassinado por policiais brancos em Minneapolis (EUA): protestos contra racismo lá e aqui no Brasil (Johannes EISELE / AFP)

A combinação da pandemia e crimes racistas cometidos por autoridades foi o estopim para disparar a bomba relógio que já estava sendo alimentada há anos. Não só os negros, mas toda a sociedade que parece ter chegado ao limite com as injustiças no mundo, em especial Estados Unidos e Brasil. Seria esse o motivo de fazer pessoas irem às ruas, com raiva, arriscando suas vidas em meio a uma pandemia letal na tentativa de reivindicar seus direitos e protestar contra crimes racistas? A maioria acha que sim.

[g1_quote author_name=”Luis da Silva” author_description=”Diretor do escritório da Central Única das Favelas em Nova York” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

No Brasil, as pessoas desrespeitam os negros em todos os lugares, com ofensas e xingamentos pesados, de teor racista, e tudo acaba com um pedido de desculpa sem nenhuma consequência. Aqui nos EUA, os negros conhecem seus direitos e, por isso, sabem como argumentar e reconhecer exatamente como são tratados

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Os Estados Unidos estão no sétimo dia de protestos, com milhares de pessoas nas ruas em mais de 70 cidades, pedindo justiça por George Floyd, 46 anos, negro sufocado por um policial branco, no último dia 25 de maio, em Minneapolis, depois de detido sob suspeita por tentar usar uma nota falsa de US$ 20 num supermercado. O crime gerou uma explosão movida pela frustração genuína e legítima ao longo de décadas de falha nas práticas policiais e no sistema de justiça criminal nos EUA.

Manifestação batizada de 'A Vigil and March for Black Lives" (Uma vigília e marcha pelas Vidas Negras) em Nova York (EUA), nesta terça-feira, 2/6: sétimo dia consecutivo de protestos contra a violência racial e homenagens às vítimas (Foto: Viviane Faver)
Manifestação batizada de ‘A Vigil and March for Black Lives” (Uma vigília e marcha pelas Vidas Negras) em Nova York (EUA), nesta terça-feira, 2/6: sétimo dia consecutivo de protestos contra a violência racial e homenagens às vítimas (Foto: Viviane Faver)

Indignação semelhante aconteceu no Brasil, quando, na mesma semana da morte de Floyd, o menino João Pedro, 14 anos, foi morto dentro de casa por policiais durante uma operação em São Gonçalo, Rio de Janeiro. A revolta dos negros brasileiros, que também sofrem há anos com a brutalidade da polícia e o preconceito da elite, só aumentou – lembrando que o Brasil foi o último País do mundo a abolir a escravidão. Não demorou muito para os protestos contra o racismo começarem no Brasil, influenciados pelos dos EUA. Mas até que ponto podemos comparar essas histórias?

Conversamos com brasileiros que vivem nos EUA e têm dupla nacionalidade. Luis da Silva mora em Nova York desde 2005 e dirige o escritório da ONG Central Única de Favelas (CUFA), que funciona num casarão no Brooklyn. “Não podemos nos esquecer que essas rebeliões são consequências de vários fatores, inclusive nesse momento de pandemia, em que as pessoas tiveram uma mudança de vida radical, principalmente pobres e negros. Os protestos são quase como uma válvula de escape, manifestando tudo ao mesmo tempo”, analisa.

Luis da Silva mora em Nova York desde 2005 e dirige o escritório da ONG Central Única de Favelas (CUFA): “Por mais que tenhamos uma lei que diz que a prática do racismo é crime inafiançável, o número de pessoas condenadas por racismo quase não existe” (Foto: Arquivo pessoal)

O diretor da CUFA destaca a impunidade do racismo no nosso país. “Por mais que tenhamos uma lei que diz que a prática do racismo é crime inafiançável, o número de pessoas condenadas por racismo quase não existe. No Brasil, as pessoas desrespeitam os negros em todos os lugares, com ofensas e xingamentos pesados, de teor racista, e tudo acaba com um pedido de desculpa sem nenhuma consequência”, aponta. “Aqui nos EUA, os negros conhecem seus direitos e, por isso, sabem como argumentar e reconhecer exatamente como são tratados. Estamos protestando contra a polícia claramente racista e sabemos que existem movimentos fascistas, nazistas por trás disso tudo. Isso tem que acabar, não há mais espaço para o extermínio de gente preta”.

Antes de morar em Nova York, Luis era um dos integrantes do grupo de rap Defensores do Movimento Negro (DMN), durante 15 anos, e costumava dar palestras em periferias e favelas paulistanas sobre racismo e autoestima. “O problema é que os negros do Brasil ainda querem se ajustar ao universo branco por acreditar que ‘somos todos iguais’, mas isso não passa de ilusão. Temos culturas diferentes, somos descendentes de um continente diferente. O mais importante é o respeito — se não gostam da gente, não camuflem, assumam a intolerância para que a gente não se iluda e crie nossas próprias condições de prosperidade”, afirma.

[g1_quote author_name=”Monica Costa” author_description=”Empresária brasileira que mora no estado americano de Maryland” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Aqui, a Constituição é estudada na escola, o discurso é inclusivo e eles fazem parte da nação, dando o poder de argumentar e conhecer seus direitos. Ao contrário do Brasil, em que o governo prefere deixar o povo cego, o que nos deixa sem saber como nos defender

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O diretor do escritório da CUFA em Nova York também chama atenção para a passividade do negro brasileiro em comparação ao americano. “Os brasileiros se acostumam com essa situação constante, o que não faz nenhum sentido. Existem algumas lutas a serem travadas, como fazer com que as leis de proteção ao ser humano sejam realmente respeitadas e que atos racistas sejam punidos. Também gostaria que o nosso povo não se deixasse dividir por classes sociais, graus de instruções e categorias artísticas, o que acaba os distanciando naturalmente da maioria pobre e preta do Brasil, para atenderem a uma categoria mais intelectualizada sobre a questão racial”, acrescenta.

Existe solução? “A melhor saída é que não importa se é negro de favela ou doutor; a nossa luta tem que ser por justiça. Gostaria que os bons policiais abrissem a boca e falassem algo contra essa brutal desumanidade, para que realmente possamos acreditar que não está a serviço dessa corporação e aceitamos tudo calado”, frisa.

A empresária brasileira Monica Costa, radicada nos Estados Unidos: “Só somos ouvidos quando entramos em ação e fazemos barulho” (Foto: Arquivo pessoal)

Com a mesma linha de pensamento de Luis, a carioca Monica Costa, que se mudou há 33 anos da favela em Santa Teresa, Rio de Janeiro, para Maryland, nos EUA, afirma que existe, sim, uma grande diferença na formação dos negros americanos e brasileiros: a escola pública de qualidade é uma das grandes vantagens americanas. “Aqui, a Constituição é estudada na escola, o discurso é inclusivo e eles fazem parte da nação, dando o poder de argumentar e conhecer seus direitos. Ao contrário do Brasil, em que o governo prefere deixar o povo cego, o que nos deixa sem saber como nos defender”, argumenta.

Monica – hoje empresária bem sucedida, dona da empresa de mecânica Wilniq Auto Body & Mechanical Repairs – destaca a importância dos protestos contra o racismo e a falta de humanidade na pandemia, quando o povo preto ainda é tratado com menos valor. “Os protestos são a única maneira que temos de sermos ouvidos. Só somos ouvidos quando entramos em ação e fazemos barulho. Como mulher negra, mãe de dois filhos, é muito frustrante ver isso tudo acontecendo aqui. Já temos evidência suficiente de que esse jogo não é justo”, ela, acrescentando que, segundo estudos feitos por entidades americanas, qualquer pessoa que chega aos EUA sem documentos, entre dois a três anos morando no país, já está fazendo mais dinheiro do que qualquer negro cidadão americano formado por uma faculdade.

 

Viviane Faver

Viviane Faver, jornalista carioca freelancer radicada em Nova Iorque. No Brasil, começou a estagiar no Jornal do Commercio, onde permaneceu por 10 anos na editoria de economia. Resolveu largar tudo e se mudar para NY em 2014, onde começou a fazer freelas para o jornal O Extra, O Dia, CNN Style (Londres), entre outros.
Também trabalha com documentários, o mais recente foi o 'Queen of Lapa', que ganhou o premio no festival LGBT, NewFest, em Nova Iorque, dezembro do ano passado - conta a história das travestis na Lapa, no Rio de Janeiro.

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