“Uma das capacidades que temos é a de falhar e aprender com as nossas falhas”. Professor de Língua Portuguesa e Literatura, Venícius Follmann de Oliveira acredita que existem usos adequados e inadequados para as ferramentas de inteligência artificial (IA) generativa na educação. Independente disso, ele sabe que seus alunos vão utilizar essas ferramentas e busca ensinar que não há atalhos para a construção do conhecimento.
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Venícius atua em duas escolas da rede estadual em Caibaté, município do interior do Rio Grande do Sul. Em uma delas, trabalha com uma turma multisseriada, com alunos em diferentes séries e, na outra, com turmas do 6°ano do ensino fundamental e do ensino médio. “Reconhecemos a escrita nos nossos alunos, sabemos quando são eles escrevendo e quando não são”, afirma o professor, formado pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).
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Veja o que já enviamosDados da 15ª edição da pesquisa TIC Educação mostram que sete em cada dez estudantes do Ensino Médio usam IA generativa para realizar pesquisas escolares. Nos anos finais do ensino fundamental, o percentual é de 39% dos estudantes com acesso à internet. A pesquisa também identificou que apenas 32% deles receberam orientações nas escolas sobre como utilizar de forma segura e responsável essas ferramentas.
A utilização das IAs não é feita apenas pelos estudantes. Segundo informações da Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (Talis) 2024, 56% dos professores das escolas brasileiras usam IAs para preparar aulas ou encontrar alternativas para ensinar conteúdos. O dado é superior à média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que ficou em 36%.
Pode ser uma oportunidade para que a escola repense essa avaliação tradicional baseada em um trabalho que o estudante entrega e que às vezes já nasce com esse potencial de recorte e cola
Coordenadora de educação do EducaMídia, programa de educação midiática do Instituto Palavra Aberta, Daniela Machado explica que existem duas perspectivas para pensar a relação entre educação e inteligências artificiais generativas – como Chat GPT, Copilot, Perplexity e Gemini. Uma das aplicações está ligada à gestão escolar e à avaliação da aprendizagem, já a segunda tem a ver com questões pedagógicas, ou seja, com os potenciais e riscos que essas ferramentas podem gerar nos processos de aprendizagem em sala de aula.
Daniela, jornalista e pós-graduada em Educação Digital e Midiática pela Universidade de Rhode Island (EUA), enfatiza que as redes de educação precisam estabelecer políticas sobre o uso de IAs nas escolas e pelos seus docentes. “O professor precisa estar ciente de quais são as políticas da escola em relação à inteligência artificial e de como se dá a escolha das ferramentas que serão adotadas. Precisamos de um foco muito grande na capacitação para utilizar da melhor forma possível essas ferramentas, e também pensar em questões de transparência e segurança sobre o uso de dados”, afirma a especialista do EducaMídia.
Aprender a perguntar
Professor de História na Estadual de Ensino Médio Cilon Rosa e no Colégio Marista Santa Maria (RS), Rodrigo Nathan Romanus Dantas observa que as IAs são a primeira fonte de busca dos estudantes. Em uma experiência com uma de suas turmas, ele pediu para os estudantes criarem tabelas a partir de dados de eleições da Primeira República e alertou para os riscos de pedir diretamente ao Chat GPT e outras ferramentas generativas.
“Aqueles que foram direto na IA e não fizeram a curadoria dos dados, tiveram como resultado dados inverídicos, inclusive a IA inventando partidos, inventando dados. E depois disso, fizemos uma discussão em sala de aula”, conta Romanus, como é mais conhecido. Para ele, trata-se de aprender a elaborar os comandos corretos, ou seja, de como perguntar e solicitar informações. No entanto, o docente menciona o risco de delegar decisões para esses softwares.
Daniela Machado, do EducaMídia, comenta algo semelhante e aponta a necessidade de que os professores avaliem a pertinência do uso dessas tecnologias em cada caso. “É sempre essencial que se pense na intenção pedagógica daquela atividade, e se faz sentido que a IA faça parte dela ou não”, explica.
Segundo Venicius, a restrição ao uso de celulares nas escolas brasileiras contribuiu positivamente para o foco dos estudantes nas salas de aula. Ele destaca a importância de orientar os alunos sobre como buscar com essas ferramentas, no sentido do desenvolvimento de um senso crítico e capacidade de leitura de mundo. “Se nós perguntarmos errado, a resposta vai estar sempre errada. Não tem resposta certa para a pergunta errada. E uma pergunta certa só vem da capacidade de entender qual é o mundo à tua volta”.
Letramento e vieses nas respostas
Professora e coordenadora do Sindicato dos Professores de Santa Maria (Sinprosm), Marta Hammel menciona a preocupação com as respostas que as IAs oferecem. Ela observa o risco no apagamento de perspectivas, uma vez que, as ferramentas tendem a reproduzir padrões e estereótipos a partir dos dados e das diretrizes com as quais são alimentadas.
Daniela Machado cita a necessidade de mostrar aos estudantes como é feita a construção das IAs generativas, não apenas do ponto de vista técnico, mas principalmente sobre os vieses possíveis nas respostas. “É importante também proporcionar momentos para os estudantes perceberem a presença da inteligência artificial no nosso cotidiano, ainda que a gente não tenha pedido para que a IA fizesse parte de determinada atividade”, complementa, ao recordar da incorporação da inteligência artificial em buscadores, como o Google.
Quando se trata dessas tecnicidades burocráticas, por exemplo, que são preenchimentos de planilha e essas outras coisas, seria viável termos uma ferramenta
Em relação aos possíveis riscos de que estudantes copiem textos prontos em atividades escolares, os professores e as professoras entrevistadas pelo #Colabora não veem isso com um risco tão evidente, até pelo estilo identificável das respostas de IAs. “Pode ser uma oportunidade para que a escola repense essa avaliação tradicional baseada em um trabalho que o estudante entrega e que às vezes já nasce com esse potencial de recorte e cola. Isso poderia acontecer muito antes da inteligência artificial”, destaca Daniela.
O desafio é vencer o impulso da juventude por soluções imediatas. Sobre isso, Venicius conta que o trabalho costuma ser mais difícil com turmas novas e no início do ano letivo. O professor de português e literatura também menciona a preocupação com o desenvolvimento cognitivo e mesmo emocional dos adolescentes, com a capacidade de desenvolver coragem para errar e sentir emoções, algo intrínseco de experiências não digitais e humanas.
IA e o trabalho burocrático
O primeiro contato de Romanus Dantas com ferramentas de IA foi em 2023, quando ele ocupava o cargo de coordenador pedagógico na escola Cilon Rosa, em Santa Maria (RS). Na época, o professor aproveitou as possibilidades para auxiliar na reescrita do projeto político-pedagógico da escola, na adaptação de conteúdos para o AEE (Atendimento Educacional Especializado), além de organizar calendários e documentos.
Do ponto de vista da gestão escolar e do tempo, os docentes entrevistados também foram unânimes em defender alternativas para reduzir a carga burocrática no magistério. “Acho que ajuda bastante a organizar aulas, fazer planejamento. Potencializa bastante essa questão do uso do tempo, que é uma coisa tão valiosa dos professores que estão sempre sobrecarregados”, comenta Romanus, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e responsável por ministrar cursos sobre o tema para colegas professores.
Marta Hammel, do Sinprosm, também acredita que essas ferramentas podem ajudar no planejamento das professoras, inclusive, diante de outras demandas digitais. “Parece-me que há uma noção de que tudo que é digital vai facilitar a vida do professor”. Segundo ela, em muitos casos, os professores se transformam em construtores de tabelas, o que reduz o tempo para outras atividades mais ligadas ao ensino em si.
Venicius de Oliveira aponta que para o planejamento de aulas prefere buscar manualmente e construir os conteúdos a partir de suas próprias estratégias, porém, defende a possibilidade de uma IA para questões burocráticas. “Quando se trata dessas tecnicidades burocráticas, por exemplo, que são preenchimentos de planilha e essas outras coisas, seria viável termos uma ferramenta”, enfatiza o professor, também formado em Direito.
O docente de literatura também aponta a importância de que as universidades ofereçam formações e caminhos para lidar com essas novas tecnologias. Venicius também defende que a ideia de inteligência é algo que não pode ser reproduzido por algoritmos. “A inteligência é uma construção a partir de erros e de incompreensões, é um caminho que não tem como ser atalhado. Provoco os alunos em relação a isso”, enfatiza o professor.