Eu duvido que exista, em algum metro quadrado deste planeta, uma mulher que nunca tenha sido chamada de fútil.
A palavra, de aparência inofensiva, é uma das ferramentas mais antigas de controle do patriarcado. “Fútil” é o adjetivo que ele inventou para deslegitimar tudo o que as mulheres constroem fora da lógica do poder masculino.
Como escreveu Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo, o mundo foi criado pelos homens e para os homens; às mulheres coube o confinamento nas pequenas esferas, aquelas sem prestígio, onde a ação parece não produzir História (o que, na real, é uma enorme mentira). O paradoxo é cruel: são forçadas à margem e depois acusadas de se interessar pelo que é “menor”.
A estrutura é antiga e funciona com precisão. Se um homem dá chilique por causa de time de futebol, está extravasando a emoção. Uma mulher ri alto em uma mesa de bar e é considerada histérica. Ele discute carros, tecnologia, investimentos, e o discurso é lido como conhecimento. Se ela fala dos mesmos assuntos, está “se metendo onde não devia”. O desequilíbrio é tão naturalizado que parece neutro. Mas é ele quem organiza o mundo. O que chamam de futilidade é o reflexo de uma exclusão política.
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Veja o que já enviamosA misoginia tem essa lógica circular: cria as condições da subordinação e, em seguida, transforma os efeitos dessa subordinação em falhas individuais. Se uma mulher se preocupa com beleza porque sabe que seu valor social depende disso, é julgada como frívola, vaidosa e superficial. Somos consideradas mais sensíveis, mas, se expressamos sentimentos, somos taxadas de frágeis. Nada que venha do feminino é lido como pensamento, racionalidade.
E por isso o desprezo às “coisas femininas” e às mulheres persiste. a maior ameaça a um menino é “parecer mulherzinha” ou fazer algo como se fosse uma. O maior temor de um estuprador na cadeia é virar mulherzinha, como se ser mulher fosse suficiente para justificar ser alvo de violência sexual. O objetivo é simples: despolitizar e esvaziar o feminino, para que a gente continue sendo silenciada, violada, diminuída.
O problema nunca foi a futilidade: é quem define, historicamente, o que importa. Enquanto o masculino continuar sendo sinônimo de universal, tudo o que vier das mulheres será lido como exceção, capricho, ornamento. E chamar uma mulher de fútil, frívola, superficial, vazia…funciona como uma mordaça simbólica. Mas talvez seja hora de devolvê-la.
Se “fútil” é o que o patriarcado chama de tudo que escapa à sua ordem, então que sejamos, com prazer, fúteis. Porque é justamente nas margens que se cria o que o patriarcado mais teme: outras formas de vida, outras formas de poder. Ser chamada de fútil, no fim das contas, é só o preço de não caber na linguagem que eles criaram para nos domesticar.