Contaminação por mercúrio ameaça bebês indígenas

Contaminação por mercúrio ameaça bebês indígenas

Especial 'Invisíveis dos Invisíveis' | Intoxicação nas aldeias pode influenciar nascimento de indígenas com deficiência. Fiocruz pesquisa contaminação intrauterina

Por Vanessa Monteiro | ODS 3 • Publicada em 24 de setembro de 2024 - 00:36 • Atualizada em 27 de setembro de 2024 - 09:44

Má formação, doenças raras e problemas neurológicos graves sem diagnóstico e sem encaminhamento para tratamento. Essa é a realidade de pelo menos 100 crianças e adolescentes indígenas de Itaituba, município da Bacia do Rio Tapajós, no Pará. As informações foram repassadas pelo médico Paulo César Basta, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Os dados são do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Rio Tapajós, que atende, além de Itaituba, os municípios paraenses Aveiro, Altamira, Novo Progresso, Trairão, Jacareacanga e também Apiú (no Amazonas).

Leu essas? Todas as reportagens da série especial ‘Invisíveis dos invisíveis’

Nesses municípios vivem um total de 14.884 indígenas, de 173 aldeias, pertencentes a nove etnias. A maior parcela de indígenas é da etnia Munduruku, que representa 81,69% dos indígenas atendidos pelo Dsei.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

Paulo Basta trabalha com saúde indígena há 25 anos e lidera um estudo para investigar o que está ocorrendo com a saúde dessa população, que estaria registrando um aumento no número de crianças com algum tipo de deficiência. A suspeita inicial já existe: contaminação por mercúrio, elemento químico utilizado na atividade de garimpo.

Existem estudos que apontam que a concentração de mercúrio no cérebro desse feto é de cinco a sete vezes maior do que no corpo da mãe

Paulo Basta
Médico e pesquisador da Fiocruz

“Costumamos dizer que o mercúrio tem uma predisposição, uma preferência pelo sistema nervoso central. O mercúrio se deposita no tecido nervoso e pode provocar lesões irreversíveis que vão comprometer a parte motora, cognitiva e sensitiva”, explica Paulo Basta.

É justamente no município de Itaituba, onde está sendo feita a pesquisa, que se concentra a maior área de exploração mineral no país. Segundo o MapBiomas, Itaituba tem 71 mil hectares de área minerada, o que equivale a uma área maior do que a cidade de Salvador (BA).

Cerca de 92% de área garimpada no Brasil está na Amazônia Legal, e a maior parte ocorre dentro de Territórios Indígenas (TI). Em 2022, a atividade garimpeira dentro das TI cresceu 265% em relação a 2018. Pelo menos 62% das novas áreas de garimpo nesses territórios foram abertas também nesse intervalo de tempo, coincidindo com os anos de governo do então presidente Jair Bolsonaro. Os territórios Kayapó, Munduruku e Yanomami são os mais afetados.

O garimpo em terras indígenas ocorre avesso à legislação e ao estabelecido na Constituição Federal, que determina que a atividade só pode ser realizada em território indígena após prévia autorização do Congresso Nacional. Ainda assim, por meio de decreto legislativo e mediante consulta às comunidades afetadas, que devem ter asseguradas a participação nesses resultados.

Com base na Constituição Federal e na convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Justiça Federal acatou, em janeiro último, à recomendação do Ministério Público Federal (MPF) e determinou que a Agência de Mineração Nacional (AMN) passe a indeferir todos os pedidos e processos para exploração de minério nas terras indígenas localizadas no município de Itaituba.

Amostras de cabelo para detectar contaminação por mercúrio. (Foto: Análise clínica em indígenas Mundurukus. Foto: Grupo de pesquisa Ambiente, Diversidade e Saúde da Fiocruz)
Amostras de cabelo para detectar contaminação por mercúrio. (Foto: Grupo de pesquisa Ambiente, Diversidade e Saúde da Fiocruz)

Mas as consequências já existem.

Um bebê afetado ainda no período pré-natal, pode ter lesões irreversíveis no cérebro, que podem se manifestar como má formações e paralisia cerebral

Paulo César Basta
Médico e pesquisador da Fiocruz

O trabalho de Paulo Basta, em Itaituba, é feito junto ao Grupo de Pesquisa “Ambiente, Diversidade e Saúde”, da Fiocruz, com apoio da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai). A equipe também reúne especialistas do departamento de neurologia da Universidade de São Paulo (USP) e especialistas de instituições como o Instituto Evandro Chagas (LEC); a Universidade do estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a universidade de Harvard.

As crianças e adolescentes encaminhados pelo Dsei Tapajós passaram por avaliação de neuropediatras da USP e por exames clínicos, além de coleta de amostras de cabelo — o cabelo é um ponto chave para compreender a contaminação. “Analisamos amostras de cabelo como matriz biológica. Quando o mercúrio está no corpo, a tendência do organismo é tentar eliminar esse mercúrio. E isso ocorre a partir da saliva, urina, fezes, unhas e pelos cabelos”, analisa Basta. Os dados estão sendo processados e devem estar disponíveis até final deste ano.

Contaminação intrauterina

Em outra frente de trabalho, a equipe de Paulo Basta está acompanhando gestantes e recém-nascidos oriundos de dez aldeias Munduruku localizadas no Médio e Alto Tapajós (PA).  O estudo integra o projeto Proteção dos Povos Indígenas e Tradicionais do Brasil, financiado pelo governo da Alemanha, por intermédio da rede WWF. O objetivo é verificar se a contaminação de garimpo na região chega naqueles que ainda não deram os primeiros passos. E podem nem vir a dar.

“É um estudo longitudinal, porque vamos acompanhar essa criança avaliando seus marcos de neurodesenvolvimento. Nossa hipótese é que a exposição pré-natal do mercúrio está comprometendo o neurodesenvolvimento da criança”, diz.

A hipótese é fundamentada em mais de uma década de trabalho que Basta se dedica a compreender os impactos provocados pela presença de garimpeiros nos territórios ancestrais e o uso indiscriminado de mercúrio.

Segundo o pesquisador, as gestantes estão no grupo mais vulnerável, porque transmitem a contaminação ao feto a partir da placenta e do cordão umbilical. “Existem estudos que apontam que a concentração de mercúrio no cérebro desse feto é de cinco a sete vezes maior do que no corpo da mãe”, revela. Além da possibilidade de a mãe sofrer um aborto, como o sistema nervoso central ainda em desenvolvimento, o feto pode ter danos irreversíveis, apresentando má formação ou anomalias congênitas.

“Um bebê afetado ainda no período pré-natal, pode ter lesões irreversíveis no cérebro, que podem se manifestar como má formações e paralisia cerebral”, explica o médico.

Os resultados dessa intoxicação são a demora no desenvolvimento da criança, que leva mais tempo para conseguir sentar, sustentar a cabeça, dar os primeiros passos e falar as primeiras palavras. E conforme vai crescendo, é uma criança com dificuldade de aprendizado. “A partir do momento que o déficit cognitivo está instalado, não há mais tratamento, não há medicamento para curar uma lesão neurológica, então é algo que vai se prolongar para toda a vida”.

O trabalho de pesquisa com as mulheres grávidas e recém-nascidos começou em outubro de 2023. Antes de iniciarem as atividades, a equipe da Fiocruz treinou 30 profissionais do Dsei Rio Tapajós, entre enfermeiros, técnicos de enfermagem e agentes indígenas de saúde. São esses os profissionais que formam o sistema de vigilância e monitoramento das gestantes cadastradas. A indígena grávida é convidada a participar do estudo e, caso aceite, passa por uma entrevista, onde são coletados exames de acordo com o protocolo de pré-natal e amostras de cabelo, para a análise do mercúrio.

A mulher cadastrada passa pelo menos três vezes pela equipe da Fiocruz, da gestação ao parto. Após o nascimento, a equipe segue acompanhando o bebê até que ele complete os dois anos de idade. Até o momento, 100 mulheres indígenas estão cadastradas no estudo e 26 crianças já nasceram e estão sendo acompanhadas. Essa pesquisa encerra em novembro de 2026, quando a equipe já terá resultados mais conclusivos.

Pesquisadora recolhe amostras de peixe para detectar contaminação por mercúrio. (Foto: Grupo de pesquisa Ambiente, Diversidade e Saúde da Fiocruz)

Veneno à mesa

A equipe de Paulo Basta já esteve em outros momentos na região, e chegou a publicar um relatório, em 2020, sobre o impacto do mercúrio na Terra Indígena Sawré Muybu, do povo Munduruku, localizada nos municípios de Itaituba e Trairão (PA). A pesquisa se deu a partir da solicitação da Associação Indígena Pariri, que representa o povo Munduruku do médio rio Tapajós.

No estudo, realizado entre outubro e novembro de 2019,  foram analisadas amostras de cabelo de 200 indígenas. Todas apresentaram contaminação por mercúrio. O principal meio de contaminação? Alimento.

Das 88 amostras de pescado consumido pelos indígenas, entre 17 espécies diferentes de peixes, todas tinham níveis elevados de mercúrio. Em uma das espécies, a piranha preta, o nível de mercúrio era quatro vezes maior do que o permitido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a comercialização do pescado.

“Isso significa que os indígenas dessa região estão ingerindo quase 20 vezes mais mercúrio do que as doses recomendadas pela Agência de Proteção Ambiental Norte Americana”, conclui Basta. Das 57 crianças avaliadas, nove apresentaram problemas nos testes de neurodesenvolvimento.

Na Amazônia, a contaminação ocorre, principalmente, de duas maneiras: quando no processo de “limpeza” do ouro nas casas de queima, o garimpeiro inala e se contamina com os vapores de mercúrio.  E quando o mercúrio é despejado nos rios, se transformando em metilmercúrio e impregnando na carne dos peixes, base da alimentação nos territórios indígenas e comunidades tradicionais.

No estudo feito pelo MapBiomas em 2022, pelo menos 186 mil hectares de área garimpada na Amazônia brasileira ficam a menos de meio quilômetro de algum curso d’água.

O médico explica que a contaminação por mercúrio no corpo humano se instala de modo lento, progressivo e insidioso. Segundo ele, uma família que mora em aldeia indígena e que se alimenta de pescado contaminado cerca de duas vezes ao dia, todos os dias, está sendo envenenada aos poucos a cada refeição. O mercúrio vai ser absorvido pelo trato gastrointestinal e vai cair na corrente sanguínea, onde se distribui em diferentes órgãos do corpo humano.

“A medida que ele vai se depositando, e esses depósitos e concentrações de mercúrio vão aumentando, eles vão provocando lesões nos tecidos desses órgãos afetados e as lesões vão se instalando. A cada nova refeição, uma pequena e nova dosagem de veneno vai se depositando e, à medida que essas lesões vão progredindo, começam a aparecer os sintomas”.

Apesar de várias evidências científicas sobre os malefícios do mercúrio, o Brasil não tem um centro de referência e acolhimento para tratamento, e não possui uma rede de laboratórios dentro do Sistema Único de Saúde capaz de fazer análises de rotina

Paulo Basta
Médico e pesquisador da Fiocruz

O pesquisador explica que muitos sinais de contaminação acabam se confundindo com sintomas de outras doenças, o que dificulta o diagnóstico. “Adultos, por exemplo, podem ter dor de cabeça crônica, gosto metálico permanente na boca, ter diminuição no campo visual, zumbido no ouvido, insônia, irritabilidade. São sintomas genéricos se confundem com os de uma série de outras doenças e dificulta inclusive o entendimento da própria pessoa afetada de fazer esse vínculo ao mercúrio. E também confundem os agentes de saúde na identificação de que aqueles sintomas são sinais de intoxicação”, diz.

Conforme a contaminação vai progredindo, vão aparecendo problemas motores, como tremores das mãos e dos pés, além de diminuição da força, impedindo a realização de tarefas simples do dia a dia e que ocorriam antes da contaminação. “Atividades como subir uma escada, uma ladeira, a pessoa contaminada sente tontura, vertigem. À medida que os sintomas vão progredindo, as pessoas vão desenvolvendo um quadro semelhante a Doença de Parkinson”, diz, comparando os sintomas da contaminação ao da doença neurológica que afeta os movimentos.

Já em relação a capacidade cognitiva, o médico explica que a pessoa afetada pelo mercúrio começa a ter problemas de memória. “Não lembram mais os caminhos que faziam, o nome das pessoas, e, às vezes, começa a ter dificuldade de articular um pensamento mais elaborado. E a medida que esse problema vai progredindo, a pessoa, se já for idosa, pode apresentar um quadro semelhante ao Alzheimer e à demência”.

Herança do século XVI

A atividade do garimpo na Amazônia vem desde o século XVI, como indica um estudo do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Embora o histórico de exploração tenha centenas de anos, foi na década de 70 que a atividade começou a ganhar força na região. Com a crise do petróleo, o preço do ouro aumentou e do dólar declinou – uma combinação perfeita para estimular ainda mais as atividades de garimpagem em solo amazônico na década seguinte.

Um projeto de Lei (PL 1011/2023) proposto pelo senador Randolfe Rodrigues (REDE/AP) busca instituir a Política Nacional de Prevenção da Exposição ao Mercúrio no país. A última movimentação do processo foi em março deste ano.

Os dados das pesquisas e a pressão social para que medidas sejam tomadas foram a base para criação do Fórum Paraense de Combate aos Impactos da Contaminação Mercurial na Bacia do Tapajós.  A iniciativa foi do Ministério Público Federal (MPF) e do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) em conjunto com a sociedade civil organizada. O fórum tem a participação de diferentes instituições de ensino, pesquisa, representantes da sociedade civil, do judiciário, de ONGs,  representações de indígenas, sindicatos e grupos de defesa da Amazônia.

Um dos objetivos dos pesquisadores e lideranças indígenas é o funcionamento do Centro de Referência para as Patologias Decorrentes do Mercúrio (CREPAM), no Pará, que seria dedicado a acolher a demanda de pessoas afetadas na Bacia do Rio Tapajós. Mas o centro ainda não se tornou realidade.

“Apesar de várias evidências científicas sobre os malefícios do mercúrio, o Brasil não tem um centro de referência e acolhimento para tratamento, e não possui uma rede de laboratórios dentro do Sistema Único de Saúde capaz de fazer análises de rotina”, dia Paulo Basta.

Em 2013 o Brasil foi um dos países que assinaram a Convenção de Minamata, acordo internacional proposto pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). A convenção recebeu esse nome porque Minamata é uma cidade no Japão, onde por mais de duas décadas uma empresa despejou mercúrio no principal rio que banha a cidade, contaminando gravemente o meio ambiente e a população.

O acordo visa eliminar o uso do mercúrio, evitando principalmente a contaminação ambiental e humana ocasionadas pelo uso do metal e estabelece uma série de regras e estratégias que devem ser cumpridas pelos países. As nações signatárias se comprometem a desenvolver ações para identificar e proteger as populações em risco potencial de contaminação por mercúrio. No Brasil,  A promulgação da Convenção se deu pela publicação do Decreto nº 9.470, de 14 de agosto de 2018.

Em 2024, o Governo Federal, a partir do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, lançou um documento, denominado “Projeto Avaliação inicial da Convenção de Minamata sobre mercúrio”, contendo cerca de 200 páginas destinadas a fazer um panorama do uso do mercúrio no país e orientando sobre um planejamento de curto, médio e longo prazo para a implementação da convenção no país.

Para Basta, todo esse conjunto de medidas deveria virar política pública de proteção dos territórios, independente de qual governo estiver na ocasião. E deve ser considerada urgente e prioritária a interrupção imediata das atividades garimpeiras, assim como a completa desintrusão das terras indígenas afetadas pela mineração ilegal. “Se nada for feito, o mercúrio ainda vai ficar circulando por mais 100 anos na Amazônia”.

Especial Invisíveis dos Invisíveis (Arte: Pablo Candeia)
Vanessa Monteiro

Vanessa Monteiro é de Belém (PA), jornalista e divulgadora científica na e da Amazônia. Especializada em comunicação científica, responsabilidade socioambiental e mestra em comunicação. Atua com jornalismo profissional desde 2008, o que inclui experiência na comunicação pública, jornalismo de revista, impresso e tv. É também pesquisadora da imprensa radiofônica paraense e estudante da comunicação acessível. Adepta da linguagem simples, pois entende que a comunicação é uma das principais barreiras que impedem a inclusão.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile