Divã virtual para os profissionais de saúde na luta contra a covid-19

Psicólogos criam serviço de atendimento gratuito e virtual para trabalhadores na linha de frente do combate ao coronavírus; rede chega a mais de quatro mil voluntários

Por Telma Alvarenga | ODS 3 • Publicada em 17 de abril de 2020 - 08:30 • Atualizada em 19 de setembro de 2020 - 12:17

Profissionais de saúde em homenagem a um enfermeiro morto durante a pandemia em um hospital próximo a Maddri ( Foto: Pierre-Philippe Marcou / AFP)

Se enfrentar a pandemia do coronavírus não está fácil para ninguém, imagine para quem está na linha de frente desta guerra contra um inimigo invisível, desconhecido, que já provocou quase 150 mil mortes no mundo todo e que avança rapidamente, sem que ninguém tenha a menor ideia de quando e como poderá ser detido. Imagine passar o dia inteiro em um hospital, tratando doentes graves, e voltar para casa com pânico de infectar as pessoas que mais ama. Pior: imagine a angústia de saber que, daqui a pouco, terá que escolher entre quem vai ser tratado e quem vai morrer, porque, dizem todos os prognósticos, também no Brasil, como já acontece em outros países, vão faltar equipamentos para todos os casos que complicarem. Difícil imaginar. 

Foi pensando na dor que sentem os heróis anônimos desta guerra cruel que um grupo de cinco experientes psicólogos de São Paulo criou um projeto para oferecer a eles atendimento virtual gratuito. Não só para médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, mas para todas as pessoas que atuam nos locais que recebem pacientes com coronavírus, como os profissionais da limpeza, da cozinha e da recepção de hospitais. A ideia era fazer a ponte entre voluntários e os interessados em receber atendimento. Para começo de conversa, dispararam um whastapp, convocando amigos e conhecidos para empreitada. A expectativa era de recrutar cerca de 80 psicólogos. Em poucos dias, já eram 4.241. “Reverberou numa proporção que a gente não tinha ideia. O Whatsapp foi parar em Belém”, conta Evelyse Stefoni de Freitas Clausse, uma das idealizadoras. 

Psicóloga e especialista em políticas públicas, Marina Bragante se juntou ao grupo na primeira hora, encampando parcerias. Entre elas, com o grupo que criou o Mapa do Acolhimento, para conectar mulheres vítimas de violência a psicólogas e advogadas. “Eles tinham essa expertise e entraram para agilizar a construção de uma plataforma que caísse no mundo, que não ficasse restrita aos nossos amigos”, diz Marina, que é chefe de gabinete de uma deputada estadual e já foi secretária adjunta de Desenvolvimento Social do estado de São Paulo. Como no Mapa, a plataforma faz um “match” entre profissionais por aproximação geográfica. “Se um profissional da saúde pedir um atendimento e estiver numa cidade que não tem um psicólogo voluntário, mesmo assim ele vai ser atendido pelo CEP mais próximo, num raio de quatro mil quilômetros”, explica Camila Munhoz, que também está no grupo de coordenadores do projeto.

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Mais de mil profissionais procuraram ajuda

  Funciona assim: trabalhadores da saúde e psicólogos dispostos a atendê-los gratuitamente se cadastram pelo site www.rededeapoiopsicologico.org.br. São verificados seus registros profissionais nos Conselhos Regionais de Psicologia. O contato de um deles é enviado, por whatsapp, ao profissional que pediu apoio. A partir daí, cada dupla decide como e com que frequência se dará o atendimento, que tem por premissa ser sempre online e gratuito. “Fica a cargo do profissional que atende avaliar caso a caso e propor aquilo que entende como melhor. Ele tem essa liberdade. É um  atendimento pontual, porque vai acontecer enquanto durar a pandemia. Mas isso significa que alguns podem ser atendidos uma única vez e outros 15 vezes. Vai da escuta do profissional entender a demanda das pessoas, mas sempre seguindo os preceitos éticos e também a condição posta na plataforma: oferecer um trabalho voluntário”, diz Evelyse.

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Se a gente pensar a longo prazo, uma democratização de acesso ao trabalho psicológico, em termos de saúde mental, pode ser um ponto de virada que a pandemia permitiria

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Na segunda-feira, dia 6 de abril, a plataforma começou a ser divulgada oficialmente para os trabalhadores da saúde e os atendimentos começaram. Na sexta, dia 10, já eram 1.370 inscritos para receber atendimento. A democratização do atendimento psicológico é um dos pilares da plataforma. “Obviamente, nossos consultórios particulares têm mais médicos e enfermeiros. Foi me surgindo a dúvida de como ficariam os outros profissionais sem acesso à psicologia clínica, que ainda é, no Brasil, um campo elitizado”, diz Evelyse. Tanto a oferta de profissionais quanto a demanda, como está sendo possível constatar pela adesão ao projeto, são muito grandes. E expõem uma carência. “Nos últimos anos, houve uma deterioração do sistema público de saúde, em geral. Na psicologia,  havia uma oferta no SUS, nos CAPs (Centros de Atenção Psicossocial), nos CREAS (Centros de Referência Especializados de Assistência Social), mas isso também foi desmontado”, diz Jonas Boni, um dos coordenadores do projeto. Por isso, ele já pensa em um segundo momento da plataforma, pós-pandemia. “Se a gente pensar a longo prazo, uma democratização de acesso ao trabalho psicológico, em termos de saúde mental, pode ser um ponto de virada que a pandemia permitiria”. 

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Profissional de saúde sinaliza com um coração dentro do hospital temporário dentro do Billie Jean King National Tennis Center em Nova York (Foto: Johannes Eisele / AFP)

O projeto cresceu tanto e tão rapidamente que os idealizadores sentiram a necessidade de criar um outro grupo de psicólogos para dar apoio aos que estão prestando atendimento. “A ideia não é controlar esses voluntários. É um movimento de solidariedade. Pensamos em oferecer um cuidado para eles que, indiretamente, é um cuidado para o serviço também. Convidei outros 11 profissionais que têm experiência com grupos. Oferecemos dois ou três grupos por dia (por teleconferência), para que eles possam trazer o que estão vivendo nesses atendimentos e trabalhar suas próprias angústias”, diz Luciana Lafraia.

Não é obrigatório que os voluntários participem desses grupos. “Damos autonomia para o profissional trabalhar como ele quiser. Ele pode preferir contar com sua própria rede de apoio, com seu supervisor, seus colegas”, explica Camila Munhoz. Mas, segundo Luciana, a procura tem sido  alta. “Os psicólogos também estão muito angustiados com toda essa situação, com o desconhecido, o novo. Por isso, começamos não com supervisão, mas com grupos de elaboração da experiência. Estamos juntos com eles nesse desconhecido, no mesmo barco”. 

Um dos desafios dos psicólogos é justamente lidar com uma situação absolutamente inédita. Estão, como diz Luciana Lafraia,  “construindo um trem em pleno movimento”. Evelyse faz coro: “É uma situação absolutamente ímpar, ninguém tem essa experiência para nos contar. Não sabemos como se dá essa clínica, como podemos chamá-la, que contornos ela vai ter”. No mar de incertezas em que o mundo foi jogado com a pandemia, o que se sabe é que ninguém sairá incólume dessa experiência. “Acho que todos sairemos com marcas psíquicas”, diz Evelyse.

Medos e angústias mais frequentes

Como Jonas e Camila, além de participar da concepção e coordenação do projeto, Evelyse também está atendendo a alguns profissionais de saúde que se cadastraram e que, claro, têm suas identidades preservadas. Ela lista alguns exemplos de medos e angústias que aparecem nas sessões virtuais:

Contágio

 “Primeiro, medo do contágio. Isso é unânime. O vírus não tem a letalidade que todo mundo imagina (no Brasil, no dia 15 de abril, a taxa de mortalidade estava  em 6,1%, e na Itália, o país com maior índice, chegou a 12,5%). Mas o que acontece com os profissionais da saúde é que eles têm 100% dos casos que complicam nas mãos. E havia todo um discurso de que era um vírus que só matava idosos (e pessoas com comorbidade). Eles começaram a ver que isso não é verdade”

Escolhas

“Eles já sabem que, a partir de um certo momento, vão ter que fazer escolhas, como aconteceu na Itália. E e a previsão é de que o Brasil chegue aos números daquele país. Eles sabem que quando é declarada uma pandemia, uma epidemia, um estado de calamidade pública, essas escolhas são aceitáveis do ponto de vista jurídico.  Mas não são do ponto de vista humano. Isso gera um conflito ético. Eles têm uma avaliação técnica para fazer, só que ter de fazer essa escolha por falta de recursos é muito dolorido”

Família

“Há um campanha para que as pessoas fiquem em casa. Mas eles têm que trabalhar, deixando as crianças em casa, sem que elas possam ficar com os avós. Muito maior do que o medo do contágio, é o medo de ser um vetor.  Por isso, muitas pessoas têm entrado em um certo isolamento: quem tem filho imunodeprimido, marido com alguma doença respiratória. Há um certo dormir com o inimigo. E cada decisão que precisa ser tomada é muito dura”

Futuro interrompido

“Outra coisa que aparece é o rompimento de planos que estavam sendo construídos. O que eu faço com o casamento que estava marcado, com a viagem que eu faria? Toda a sociedade está vivendo isso, mas eles vivem num nível mais exacerbado. Temos relatos de pessoas que começam a parar de fazer  trabalhos que seriam de longo prazo. Por exemplo, pesquisa. Porque continuar pesquisando HIV, por exemplo? É como se a humanidade fosse acabar”

 

Telma Alvarenga

Jornalista formada pela PUC-Rio. Tem passagens pela revista Veja, Veja Rio, Jornal do Brasil, O Globo, Correio (BA) e Projeto #Colabora, desempenhando funções de editora, colunista e repórter. Professora no curso de Comunicação Social da Faculdade Social da Bahia em 2010, está finalizando seu mestrado no Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio

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