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Veja o que já enviamosCovid-19: uma doença (quase) se vai, ficam as outras
Fim da emergência sanitária é vitória sobre o coronavírus, mas humanidade deixou de aprender lições oferecidas pela pandemia
O cientista africano, que se acostumou a pisar no freio da volúpia dos humanos, clamando por sensatez e temperança diante da ameaça global, enfim se permitiu boas novas – e na sexta-feira (5), anunciou o fim da emergência sanitária mundial pela covid-19. Diretor-geral da OMS, o biólogo etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus declarou “com grande esperança” a tardia vitória da humanidade.
Leu essa? O diário da covid-19
Exatos 1.192 dias se passaram desde o 30 de janeiro de 2020, quando o planeta mergulhou na pandemia, virando do avesso o modo de viver contemporâneo. A nova doença transformou os humanos em venenosos uns para os outros, devido ao contágio do novo coronavírus, que se dava pela respiração.
Detectado inicialmente em Wuhan, China, o mal se espalhou por todos os continentes e nunca mais vai embora (tanto que a pandemia não acabou, apenas a emergência em torno dela). Matou oficialmente 6.921.614 pessoas, em 765.222.932 casos confirmados – números subestimados, pela falta de notificação completa em quase todos os países.
No Brasil, morreram 702.116 homens, mulheres e crianças, entre as 37.511.921 ocorrências atestadas pelos órgãos de saúde. Um e outro são menores do que a quantidade real, por causa da postura errática do país e da sociedade em relação ao problema. Sobretudo pela escolha eleitoral de 2018, quando se aboletou na presidência um ex-militar protagonista de criminoso desgoverno, causador de pelo menos 400 mil mortes que poderiam ser evitadas, com políticas de saúde minimamente eficientes.
O país virou exemplo internacional de descalabro e incompetência no combate à covid-19. O mundo assistiu chocado à barbaridade ocorrida em Manaus, quando pessoas morreram sufocadas, sem acesso a oxigênio nos hospitais; aos escândalos de corrupção em hospitais de campanha; ao desperdício de equipamentos de saúde; à súcia da cloroquina e da mentira do tratamento precoce; ao atraso e à tentativa de corrupção na compra de vacinas; aos caos na economia e ao egoísmo da elite, que não abriu mão de regalias como a herança escravocrata do trabalho doméstico.
Cleonice Gonçalves, 63 anos, empregada em uma casa no Leblon, foi a primeira morte por covid-19 no Estado do Rio. Seus patrões exigiram que ela continuasse trabalhando, apesar de todas as recomendações dos cientistas. A patroa, que chegara da Itália poucos dias antes, transmitiu o vírus fatal à mulher negra, moradora de Miguel Pereira, no interior fluminense.
Perdemos Laíla, Aldir Blanc, Nelson Sargento, Paulo Gustavo, Ubirany do Fundo de Quintal, Tarcisio Meira, Daniel Azulay, Maria Prestes, Sergio Sant’Anna, David Corrêa, Carlos Lessa, Daisy Lúcidi, Eduardo Galvão, Nicette Bruno, Paulinho do Roupa Nova, Agnaldo Timóteo, Genival Lacerda. E o Aloy, o Rodrigo Rodrigues, o André Machado, o Marco da Cris, a Najá, o Hugo Sacopã… Até hoje e para sempre, todos os sobreviventes têm alguém para chorar e sentir saudade, por causa da pandemia.
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Veja o que já enviamosA crise sanitária impôs novos hábitos – isolamento social, uso de máscaras, home office, videoconferência, cuidado na higiene, comércio online – e agravou mazelas sociais até então naturalizadas. O acesso à água potável, a urgência de universalização do saneamento, modernização dos sistemas coletivos de transporte, a fome, a necessidade de democratização da internet são as mais graves.
A pandemia gritou ao mundo, mais do que qualquer outra questão social, o valor da saúde pública. No Brasil, o SUS renasceu como ferramenta essencial – a ponto de um antigo defensor da privatização do setor, o médico sul-matogrossense Henrique Mandetta, transformar-se em eufórico garoto-propaganda do sistema. Ao exaltar a estrutura brasileira que está, com todos os senões, entre as melhores do mundo, acabou demitido do cargo de ministro da Saúde pelo chefe, Jair Bolsonaro. (Foi substituído por um bizarro general que conjugou escandalosa ignorância e constrangedora subserviência, afundando ainda mais o país na crise.)
A ciência trabalhou heroicamente, na linha de frente de hospitais e laboratórios e no combate à desinformação que grassa nas redes sociais. Margareth Dalcolmo, Natália Pasternak, Denise Garrett, Mellanie Fontes-Dutra, Atila Iamarino, Roberto Medronho, Isaac Schrarstzhaupt e vários outros ainda hoje se empenham na trincheira do conhecimento. Agradecimentos infinitos a eles.
Vieram, ainda que tardiamente, os avanços científicos, especialmente a vacina, produzida em velocidade recorde – e a humanidade pôde vislumbrar alguma normalidade. Voltamos a circular, retomamos viagens, reuniões e festas. Mesmo com todo o sufoco, o Brasil e o mundo não mudaram para melhor, como sonhavam os otimistas. A riqueza se concentrou ainda mais, a pobreza se agravou e os índices de poluição, que encolheram no tempo do isolamento, voltaram a subir. Mesmo os índices de vacinação murcharam com a reabertura. Os bípedes que mandam na Terra não se emendam, ô raça…
O fim da pandemia, em si, ainda demora (a de HIV mesmo não acabou), oferecendo mais lições por serem aprendidas. Os cientistas atestam que outras virão, no bojo dos equivocados comportamentos humanos. O remédio mais necessário seria inocular bom senso nas pessoas.
Missão, essa sim, impossível – porque algumas doenças são invencíveis.
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