ODS 1
Covid-19 abala mercado de drogas ilícitas
Aumento de preço, drogas mais pesadas e compras desenfreadas elevam os riscos à saúde dos usuários
*Ian Hamilton e Alex Stevens
O mercado de drogas ilícitas no Reino Unido fatura mais de 10 bilhões de libras por ano (cerca de R$ 63 bilhões de reais) – faturamento isento de impostos. Ao contrário da economia em geral, temos um conhecimento limitado sobre como ela funciona. Mas, como a economia em geral, certamente não está imune à interrupção causada pela covid-19.
À medida que as fronteiras se fecham, o fornecimento e a distribuição da maioria das drogas estão cada vez mais restritos – particularmente aqueles que dependem de ingredientes produzidos na China. Já estamos ouvindo relatos de reduções nos suprimentos, por exemplo, de “Spice”, canabinóide sintético que geralmente é importado dessa parte do mundo. Também há problemas na rede de distribuição. O decreto de ficar em casa afetará a capacidade dos revendedores baseados nas grandes cidades de realizar em suas redes locais de distribuição , onde eles lançam seu produto em cidades menores e áreas rurais.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosAs secas anteriores de heroína no Reino Unido e na Austrália foram acompanhadas por quedas temporárias no número de mortes, pois as pessoas reduziram seu uso ou substituíram por alternativas menos letais em uma overdose. Porém, mais recentemente, vimos aumentos significativos nas mortes por fentanil – um opióide sintético – na América do Norte, por isso devemos estar alertas para a possibilidade de que revendedores e usuários do Reino Unido se voltem para essa substância perigosa à medida que os suprimentos de heroína secam. Como o fentanil é significativamente mais forte que a heroína, é também mais fácil armazenar e movimentar-se devido à menor quantidade necessária em cada dose.
Mesmo quando um usuário sabe que comprou fentanil em vez de heroína, consumir uma dose segura é desafiador e isso só pode se tornar aparente quando é tarde demais. O Reino Unido já tem a maior taxa de mortes relacionadas a drogas na Europa, e o perigo agora é que a taxa possa subir ainda mais. O governo britânico está continuamente enfatizando que é guiado por evidências de pesquisa para combater a pandemia do covid-19, mas isso não se estende a agir de acordo com a recomendação de seus consultores de que deveria criar salas de consumo de drogas para reduzir o número de mortes por overdoses . É difícil imaginar um momento mais importante para seguir esse conselho.
Crises de abstinência
Agora que estamos em isolamento, um conjunto perfeito de ingredientes – ansiedade, tédio, escapismo e solidão – está reunido. Todos esses ingredientes são candidatos a deflagrar uma auto-medicação com mais drogas (ilícitas e também lícitas) – assim também como a mudança abrupta de rotina e a convivência com a família.Da mesma forma como vimos pessoas em pânico comprando rolos de papel higiênico e paracetamol, os consumidores de drogas recreativas, se tiverem os meios, armazenarão a droga de sua preferência. Mais de 1,5 milhão de pessoas são usuários regulares de drogas apenas na Inglaterra e no País de Gales; o aumento da demanda – por conta desse tipo de “compra por pânico” – veio acompanhado de relatos de aumento no preço das drogas.
O armazenamento em estoque pode levar as pessoas a tomar mais drogas do que o habitual. Se eles forem dependentes e, logo depois, não puderem obter a droga, poderão acabar subitamente com uma grave crise de abstinência. Isso aumenta o risco de que eles tentem uma droga substituta, o que torna mais provável que eles sejam prejudicados, uma vez que podem não estar acostumados ao medicamento ou saber qual deve ser a dose segura.
O Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência emitiu recentemente alguns conselhos gerais aos usuários sobre a redução de danos durante a disseminação do coronavírus. Isso foi bem-vindo, mas não disse nada sobre os riscos das drogas em si no momento. Estamos falando de um mercado sem nenhum controle ou regulamentação de qualidade, no qual os consumidores não têm idéia da força do medicamento de uma dose para outra ou a quais produtos químicos estão se expondo. Espelhando a falta de testes para o COVID-19, não há testes de rotina para drogas no Reino Unido e em muitos outros países – além de, por exemplo, em certos festivais de música.
Ameaça crescente
A Public Health England – agência executiva do Ministério da Saúde e Cuidado Social – solicitou a unidades de saúde que tratam de dependentes que alertem para exemplos de substituição de drogas ou produtos contaminados. Reunir esse conhecimento faz sentido, mas é de pouco benefício, a menos que seja comunicado diretamente às pessoas em risco. Para alguns, isso pode ser visto como uma agência governamental apoiando o uso de drogas – por isso é improvável que a Public Health faça isso diretamente.
Já existe um processo semelhante para problemas com medicamentos prescritos, pois a Agência Reguladora de Medicamentos e Produtos para Saúde alerta farmacêuticos, clínicos gerais e outros envolvidos na prescrição ou distribuição desses medicamentos para perigos ou riscos emergentes. No caso de drogas ilegais, a rede óbvia para fornecer informações equivalentes são os serviços especializados de tratamento de drogas. Infelizmente, essa rede encolheu significativamente na última década porque o governo cortou violentamente o orçamento do tratamento. Mesmo assim, essa rede não atinge a maioria das pessoas com problemas com drogas, que não está em tratamento. Por razões óbvias, essas pessoas guardam sua identidade.
O ponto principal é que precisamos ser mais inteligentes e melhor informados sobre essa parte grande, porém oculta, da nossa economia. A pandemia está expondo o pouco que sabemos sobre ela e também a nossa incapacidade de proteger o número significativo de pessoas envolvidas nesse mercado consumidor. Existe base de convencimento para mudar nossa abordagem política em relação às drogas, incluindo o potencial de reduzir os danos causados através de não criminalizar os usuários ou até legalizar as vendas e recolher as receitas tributárias.
“Fazer o que é preciso para proteger as pessoas” deve incluir todos – não apenas aqueles a quem aprovamos moralmente.
*Ian Hamilton é professor de Dependência e Saúde Mental da Universidade de York (Inglaterra) e Alex Stevens é professor de Justiça Criminal da Universidade de Kent (Inglaterra)
Tradução: Oscar Valporto
The Conversation é uma fonte independente de notícias, opiniões e pesquisas da comunidade acadêmica internacional.