ODS 1
Com o filho na escola: o impacto da maternidade na vida das meninas

Em Assis Brasil, no Acre, cidade com a terceira maior taxa de crianças mães, estudantes costumam realizar chás de bebê

(Schirlei Alves e Deyse Cruz-Noronha*) – Criada pela avó, Elza**, de 16 anos, engravidou aos 13 em um contexto de negligência. Ela é moradora da zona rural de Assis Brasil, no interior do estado do Acre — município que registrou a terceira maior taxa de fecundidade do país, entre meninas de 10 a 14 anos, na última década. Com pouco mais de 8 mil habitantes, Assis Brasil fica na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia.
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Elza não frequentava a escola e passava longos períodos sozinha em casa. A solidão e o confinamento afetaram sua saúde mental e a deixaram em estado depressivo, chegando a tentar suicídio. Foi nesse cenário que conheceu o homem que a engravidou — alguém que se aproximou com palavras de apoio, mas a abandonou na primeira oportunidade.
Quando a conhecemos, em abril deste ano (2025), Elza vivia com a mãe, a filha e mais 10 irmãos menores em uma casa de madeira, na área urbana de Assis Brasil. Enquanto falávamos, sua filha, com 2 anos, mamava no colo. As demais crianças corriam e brincavam à nossa volta.
Acompanhamos Elza até a escola, onde ela está cursando o EJA – Educação de Jovens e Adultos. O trajeto inclui uma caminhada de quase um quilômetro, entre descidas e subidas em uma rua com pouca iluminação até a parada do ônibus escolar, que fica em uma esquina escura. Elza carrega a filha nos braços e a mochila nas costas, com os materiais e uma muda de roupa para a menina.

Oito alunas com seus filhos em sala de aula
Na sala de aula, havia mais uma aluna com seu filho. Eram 11 alunos no total. Segundo a coordenadora da escola, Meire Dantas, os casos de meninas mães são recorrentes. No turno da noite há pelo menos oito alunas nessa situação. Os colegas costumam, inclusive, organizar o que chamam de “baby chá” para as gestantes. A educação sexual, opina Meire, é “muito superficial” e insuficiente para a compreensão das estudantes mais jovens.
Os relatos de abuso nem sempre chegam até a escola porque, muitas vezes, as meninas não falam — seja por vergonha, medo de represálias ou por não compreenderem que estão sendo vítimas. Meire conta que a escola já enfrentou ameaças ao denunciar casos de violência sexual em que os agressores foram presos.
Pela legislação brasileira, toda relação sexual ou ato libidinoso com menores de 14 anos é considerado estupro de vulnerável — um crime previsto no artigo 217-A do Código Penal, independente de consentimento ou vínculo afetivo. No entanto, em muitos casos, essa violência não é reconhecida pelas instituições públicas. Em vez de serem tratadas como vítimas de um crime grave, as meninas são empurradas para a maternidade, sem a responsabilização do agressor ou acesso à informação sobre seus direitos, incluindo o aborto legal.

Elas assumem responsabilidades de adultas
A professora de Elza começou a dar aulas na escola há pouco tempo, ela conta que ficou assustada ao perceber a quantidade de meninas com filhos. “Eu acho que falta estrutura, acolhimento e orientação – coisas que ainda são muito escassas aqui em Assis Brasil”, comentou a educadora.
Os colegas são acolhedores e não se incomodam com a presença das crianças. Enquanto Elza realizava o exercício em uma folha de papel, a bebê de 2 anos fez xixi. Sem fraldas na bolsa, ela saiu da sala com a filha para higienizá-la e trocar sua roupa. O banheiro feminino da escola, porém, não contava com papel higiênico nem toalhas de papel para secar as mãos. A coordenadora confirmou que a falta de itens de higiene ocorre de vez em quando por irregularidades nas datas de entrega do material.
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Veja o que já enviamosA conselheira tutelar Daniela Regis, que atua em Assis Brasil, aponta que a maioria dos casos acompanhados pelo Conselho local envolve meninas de baixa renda, criadas em situações de vulnerabilidade. Para ela, esse contexto de sobrecarga, violência e falta de apoio contribui diretamente para situações de evasão escolar, gravidez precoce e outras violações de direitos.
“São meninas criadas só pela mãe, algumas que vivem só com o pai; e elas cuidam da casa, assumem a responsabilidade de um adulto, olham os irmãos e quando não cuidam direito, são agredidas, xingadas”, relatou Daniela.
Procurado, o Ministério da Educação (MEC) não citou nenhuma política específica voltada diretamente para meninas grávidas na escola, mas diz que elas estão contempladas dentro de políticas gerais de inclusão e recomposição de aprendizagem. O MEC também remeteu parte da responsabilidade para o Ministério da Saúde via Programa Saúde na Escola (PSE).

Induzida a manter a gravidez
Quando descobriu que estava grávida, Elza fugiu da casa da avó e foi morar com a mãe. O então parceiro, que desapareceu após a gravidez, a incentivou a abortar. Confusa, Elza passou muito tempo sem saber se manteria a gestação ou se faria um aborto. A pessoa que mais insistiu para que ela levasse adiante foi o padrasto. “Minha filha, você não vai abortar, você vai se ver feliz com sua filha”, ele dizia.
Ela começou o pré-natal, sem ser informada do direito ao aborto legal – por ter engravidado antes de completar 14 anos (tendo sido vítima de estupro de vulnerável). E, no decorrer das consultas, quando expressou o desejo de não ter aquela filha, foi desencorajada por um enfermeiro. A conversa foi permeada por medo e culpa: ele teria dito a Elza que, grávida de 7 meses, poderia morrer se abortasse, e cravado: “você tem que aceitar, ela é sua filha”.
Elza nunca teve acesso a um atendimento que esclarecesse seus direitos de forma segura e acolhedora. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), o aborto pode ser feito de forma segura em qualquer estágio da gestação, desde que sejam utilizados os métodos adequados para cada fase e o procedimento seja realizado por profissionais treinados e em ambiente seguro.
Conforme a Secretaria de Estado de Saúde do Acre (Sesacre), a Maternidade e Clínica de Mulheres Bárbara Heliodora, na capital Rio Branco, e o Hospital da Mulher e da Criança do Juruá, em Cruzeiro do Sul, oferecem o serviço de aborto legal no estado. Nós ligamos várias vezes para os dois hospitais para confirmar a informação, porém não conseguimos contato. Embora o Mapa do Aborto Legal, da ONG Artigo 19, aponte 115 unidades de saúde cadastradas no CNES como prestadoras do serviço, menos da metade confirmou essa informação por telefone em 2022. A Maternidade Bárbara Heliodora, inclusive, já constava como de difícil contato, situação que se repetiu agora.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) orienta que, na ausência de um serviço de saúde que realize a interrupção no município de residência da criança ou adolescente, ela deve ser encaminhada para o serviço mais próximo – o que nem sempre acontece. E, quando acontece, este serviço pode estar a milhares de quilômetros de distância.
Para realizar um parto, por exemplo, a cidade mais próxima é Brasiléia, que fica a 110 km de distância, entre uma hora e meia e duas horas de carro. Para acessar o serviço de aborto legal, se considerarmos as unidades hospitalares listadas no Mapa do Aborto Legal, os locais mais próximos ficam em outros estados. A Maternidade Nossa Senhora de Nazaré, em Boa Vista (Roraima), está a cerca de 2.446 km de distância, o que equivale a aproximadamente 36 horas de carro. Também foi listada a Santa Casa de Misericórdia, no Pará, localizada em Belém, a 3.334 km de distância, algo em torno de 55 horas de carro.
Se considerarmos os hospitais informados pela Secretaria de Estado de Saúde do Acre (Sesacre) que realizam aborto legal, o serviço mais próximo fica na Maternidade Bárbara Heliodora, na capital Rio Branco, são 342 km de distância, o que representa cerca de 5 horas de carro. O outro serviço listado pela secretaria é o Hospital da Mulher e da Criança do Juruá, que fica a 978 km de Assis Brasil, mais de 14 horas de carro. A equipe do projeto Meninas Mães, de AzMina, tentou ligar para as unidades de saúde informadas pela secretaria para confirmar se elas, de fato, realizam aborto legal, mas não conseguiu contato.
Grupos antiaborto influenciam famílias
No Brasil, alguns grupos contrários ao aborto têm agido de maneira estratégica para influenciar as famílias, muitas vezes incitando a desistência do procedimento, como avalia Beatriz Galli, assessora sênior de políticas e advocacy do Ipas (organização global de apoio à Justiça Reprodutiva). Ela explica que esses atores disseminam informações falsas, como o alegado risco de morte durante o aborto, e distorcem dados sobre os próprios serviços de saúde. “É um campo em disputa, especialmente quando se trata das meninas”, afirma. “Eu acho, no mínimo, estarrecedor que a gente viva em uma sociedade que normaliza a gravidez infantil”, acrescenta Beatriz Galli.
No caso de Elza, ela sofreu rejeição de parte da própria família, e chegou a cogitar entregar a filha para adoção. Após muitos conflitos emocionais permeados pelas opiniões de outras pessoas, decidiu manter a gravidez. Com o nascimento da menina, já determinada a cuidar da filha, enfrentou tentativas de familiares de tomar a guarda da criança e acusações de maus-tratos, além do peso do julgamento social.
Logo que a bebê completou o primeiro ano, Elza voltou a estudar, mesmo tendo de levar a filha para a sala de aula. Ela pensa em se tornar professora e sonha em ter um emprego, uma casa própria e dar uma vida melhor à pequena.

Infância entre muitas violações
Ruth**, de 14 anos, também tem um sonho, o de se tornar juíza, e persiste nos estudos, apesar das dificuldades. Nosso encontro em Assis Brasil ocorreu quando ela cursava o 9º ano do Ensino Fundamental. Com uma mochila em um braço e a filha recém-nascida no outro, a menina atravessava seus dias com o peso dos livros e da maternidade precoce. A gravidez ocorreu assim que ela completou 14 anos. O suposto genitor, um homem maior de idade, desapareceu quando soube da gestação.
A infância dela não foi apenas interrompida pela gravidez. As memórias de medo e tensão, que a levaram a tirar notas baixas na escola, mostram que ela cresceu em um ambiente onde a infância não teve espaço para existir. Ela precisou conviver com os abusos sexuais e maus-tratos do padrasto. Em uma das tentativas de agressão, o padrasto levantou o mosquiteiro de sua cama à noite. Ao gritar por socorro, ouviu da mãe que ele “nunca faria uma coisa dessas”.
O pai de Ruth, um senhor de 72 anos, confirma os relatos. Segundo ele, cinco de suas filhas foram vítimas do mesmo agressor. Além de uma denúncia anônima feita por um desconhecido, o próprio pai procurou o Conselho Tutelar de Assis Brasil em 2019. A conselheira Daniela Regis, que acompanha a adolescente, afirmou que o padrasto enxerga as enteadas como “mulheres dele”. “A gente tem relatos de outros casos de abusos (na mesma família). Elas foram embora de casa com 12, 13 anos”, contou a conselheira.
Cansada de ser maltratada e ameaçada pelo padrasto, sem acolhimento da mãe, a menina pediu para ir morar com o pai, que assumiu a guarda dela e da irmã. Passaram a morar com o pai, irmãos, sobrinhos e um cunhado – ao todo, vivem 12 pessoas na mesma casa, em um terreno dividido com outros vizinhos. Mas só aí, ela fala, teve mais liberdade para brincar e sorrir.
Durante a entrevista, descobrimos que o padrasto havia registrado a bebê como se fosse dele, sem o consentimento de Ruth e do pai, o atual responsável pela guarda dela. O padrasto ainda vive em uma casa vizinha à deles. A delegacia da cidade está investigando o caso.

Sem orientação sobre direitos
Ao buscar atendimento no hospital, com um mês de gestação, Ruth também foi encaminhada diretamente para o pré-natal, assim como Elza, sem qualquer orientação sobre aborto legal – a relação já ocorria quando ela tinha 13 anos e, portanto, se enquadrava em estupro de vulnerável.
Além da gravidez precoce, ela enfrenta problemas de saúde: uma doença cujo diagnóstico é desconhecido e dificulta a locomoção. Para realizar o sonho de cursar uma faculdade, Ruth precisará deixar Assis Brasil, já que não há oferta de ensino superior no município. A opção mais próxima de ensino privado fica em Brasiléia, e de ensino público, em Rio Branco.
Em Assis Brasil, a falta de políticas públicas eficazes e de oportunidades concretas de futuro impacta diretamente a juventude, especialmente as meninas, como explicou a secretária de Assistência Social, Ana Cláudia da Silva Gonçalves. Ela afirma que as iniciativas esbarram na escassez de recursos e na dependência de emendas parlamentares. “Faltam perspectivas reais de vida para essa juventude. O que temos hoje para oferecer a essas meninas?”, questiona.
A reportagem também enviou questionamentos à Prefeitura de Assis Brasil sobre os serviços que atendem as meninas e adolescentes, porém não recebeu retorno.
Falhas na rede de proteção
As histórias de Elza e de Ruth em Assis Brasil (AC) revelam a ausência de uma rede de proteção efetiva. Em vez de serem acolhidas por políticas públicas que garantam seus direitos, como o acesso ao aborto legal, proteção contra violências e direito à educação, elas enfrentaram isolamento, abandono, desinformação e julgamentos. Como tantas outras meninas brasileiras, foram empurradas à maternidade precoce sem que o Estado garantisse suas autonomia, segurança e dignidade.
Uma das principais falhas da rede de proteção ocorre ainda na identificação dos casos de violência sexual. “É muito comum que essas meninas cheguem em uma idade gestacional extremamente avançada por desconhecerem que foram vítimas de violência sexual. Isso revela uma falha inicial na rede, que é a dificuldade em identificar os casos antes que resultem em uma gravidez”, opina Letícia Ueda Vella, advogada e membro do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
Letícia ressalta que isso nem sempre acontece por má-fé dos profissionais. Muitos não sabem, por exemplo, que uma gravidez em menores de 14 anos é considerada violência sexual presumida. “É um desconhecimento que atravessa desde o direito em si até o fluxo de encaminhamento nos territórios”, afirma Letícia.
Procurada, a Secretaria de Estado de Saúde do Acre (Sesacre) afirmou que realiza capacitações sobre os protocolos legais do aborto previsto em lei e iniciou a implementação da Linha de Cuidado para Atenção Integral à Saúde de Crianças e Adolescentes em Situação de Violência, com foco na qualificação dos profissionais e no atendimento intersetorial.
De acordo com a secretaria, casos de gestação decorrentes de violência “são identificados na unidade básica de saúde, acolhidos e acompanhados pela equipe local”. Na sequência, são “notificados” e “regulados para os serviços especializados”, com prioridade à “escuta qualificada, preservação da dignidade e garantia de sigilo às vítimas”.
O Ministério da Saúde, ao ser questionado pela reportagem sobre as maternidades infantis, apresentou dados nacionais indicando queda na taxa de fecundidade entre meninas de 10 a 14 anos entre 2020 e 2024 (de 2,43 para 1,60 nascimentos por mil meninas). De fato, a curva nacional vem caindo ao longo dos anos (ver gráficos acima). Porém, quando se observam municípios específicos, como Assis Brasil, a tendência é inversa: o número de crianças na cidade aumentou no mesmo período, atingindo 28,33 nascimentos por mil meninas – mais de 17 vezes a média nacional mais recente citada pelo Ministério.
O Ministério não respondeu diretamente aos questionamentos sobre falhas locais no acesso ao aborto legal, cumprimento da determinação do Conanda. A pasta afirmou que é comprometida com a “proteção integral de meninas e adolescentes, com a atenção humanizada às vítimas de violência sexual e com o fortalecimento das políticas de saúde sexual e reprodutiva“. Também declarou que “atua em parceria com estados e municípios na produção de materiais técnicos, capacitações e apoio à organização das redes de cuidado“.
Esse contraste das taxas entre as cidades grandes e pequenas brasileiras demonstra desigualdades regionais e reforça a urgência de políticas públicas mais direcionadas para territórios vulneráveis, onde a proteção aos direitos sexuais e reprodutivos de meninas ainda está longe de ser garantida.
*Schirlei Alves, gerente de projetos de AzMina atua com jornalismo investigativo orientado por dados e com foco em direitos humanos. Graduada pela Univali, é mestranda em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina e especialista em Gestão Editorial pela Universidade Tuiuti do Paraná e em Jornalismo de Dados pelo Instituto Insper; Deyse Cruz-Noronha, graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Acre, é fotógrafa há 16 anos e segue a linha humanista em seu trabalho; dedicada também ao cinema, trabalhou nos curtas documentários “Entre Fronteiras”, “Ela Dela”, “A Mulher que Sumiu nas Águas” e no longa-metragem “Seringueiras”.
**Por se tratar de meninas menores de idade, os nomes verdadeiros foram preservados. Optamos por chamar de Elza em homenagem à cantora brasileira Elza Soares, que engravidou aos 13 anos após ser forçada a se casar aos 12. Elza usou sua voz para denunciar o machismo, o racismo e a violência contra a mulher. E o nome Ruth foi escolhido em homenagem à juíza norte-americana Ruth Bader Ginsburg, que dedicou sua vida à defesa dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero.
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