“Mainha é diarista todo dia em uma casa diferente. Quando explodiu o lance do coronavírus, meu irmão me mandou um zap dizendo que minha mãe não queria entrar em casa pois a patroa teria dito a ela que estava com febre e que era pra ficar atenta. O que ela fez foi tomar banho de álcool em gel, por desespero de que alguém que ama em casa pudesse pegar”. A “mainha” no caso é a mãe de Yane Mendes, de Totó, no Recife. Esse é só um dos muitos relatos contidos numa carta-manifesto criada e compartilhada na página #PelaVidaDasNossasMães, que pede a dispensa remunerada das empregadas domésticas e diaristas durante o período da pandemia.
A criadora da página é a professora e atriz Juliana França, 29 anos, moradora de Japeri, na Baixada Fluminense. Com a mãe, Catarina dos Santos, trabalhando há mais de 30 anos como doméstica e uma madrinha com 75 anos também diarista, as situações bem próximas a motivaram para a ação.
“’O medo foi um dos principais incentivos. É preciso entender o processo estrutural em que a profissão está inserida, para podermos escrever uma carta feita por filhos e filhas”. Até a finalização desse texto, a mãe de Juliana havia conseguido ficar em casa; já a madrinha (75 anos, lembre-se) não teve a liberação dos patrões.
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Veja o que já enviamosCom a ajuda da produtora Adrielle Vieira, moradora de Austin, também na Baixada, a mobilização começou a ganhar corpo. A adesão foi tamanha que motivou a criação de um grupo no Whatsapp com pessoas de diversos locais do país. ”São mais de 70 pessoas criando coletivamente. Ficamos 48 horas escrevendo, e agora gerando conteúdo a partir dos relatos que estamos recebendo no site e também nas redes. Todo o trabalho é horizontal”, ensina Juliana.
Ela é “como se fosse da família”, “uma segunda mãe”
No Brasil de 2020, em pleno período de pandemia, tornou-se muito mais conveniente ser empático com a personagem Lurdes, interpretada por Regina Casé na novela “Amor de Mãe”, da TV Globo do que para aquelas que estão nas casas de verdade, exercendo a velha dupla jornada: acorda, pega uma, duas ou até mais conduções; serve, diariamente, o café em casa e na casa dos patrões; arruma, diariamente, a própria casa e a dos patrões. As noções de empatia parecem se perder no labirinto de pensamento e ações.
É mais um retrato da desigualdade. No país onde o ministro da Economia, Paulo Guedes, acredita que essas mulheres vão à Disney com facilidade, a elas também é imputada a vulnerabilidade diante de um vírus que atinge a população em escala geométrica. O que sobra para os trabalhadores domésticos é a precarização, como constatou a jornalista Flávia Oliveira em artigo n’o Globo.
[g1_quote author_name=”Juliana França” author_description=”Professora, atriz e filha de empregada doméstica” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]É preciso entender o processo estrutural em que a profissão está inserida, para podermos escrever uma carta feita por filhos e filhas
[/g1_quote]No Rio, a primeira morte confirmada por coronavírus foi justamente a de uma empregada doméstica com 63 anos, hipertensa e diabética. Os primeiros sintomas de que estava com o Covid-19 foram perceptíveis no último domingo, quando foi à unidade de saúde de Miguel Pereira, no Sul Fluminense, para ser atendida. O quadro teve agravamento no dia seguinte (terça), quando o material do exame seria levado para o laboratório.
Depois da morte, a família da trabalhadora doméstica passou a sofrer preconceito na cidade, sendo impedida até de ir ao mercado, comprar comida. Com a patroa, não há informações de qualquer contratempo.
As empregadas e diaristas – além de jardineiros e caseiros – representam 6,3 milhões de trabalhadores, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, o IBGE. Trabalhadores ativos e que fazem a roda da economia girar. Todos os dias. Desse total, 1,5 milhão de pessoas trabalham com carteira assinada; 2,3 milhões sem, e 2,5 milhões são diaristas. A vulnerabilidade parece estar servida na mesa dessas pessoas.
Mas alguns bons exemplos estão surgindo de todos as regiões do país durante essa quarentena. É o que testemunha a diarista Raquel Fernandes, de 41 anos e moradora de Queimados, também na Baixada. A empregadora dela manteve o pagamento da diária e a liberou para ficar em casa. Solidariedade e empatia funcionam dos dois lados – e Raquel dá um minicurso de culinária, via Whatsapp, para a própria patroa. “Foi uma experiência totalmente nova pra mim. Pude ajudar e ela me ajudou, mantendo minha diária. Até brinquei que se desse certo, cozinharia do meu sofá em casa e ela no telefone”’, graceja, pedindo que a atitude seja replicado por mais pessoas. “Seria bom se todos empregadores tivessem essa visão e também condições para fazer isso. Que tivessem um relacionamento de ajuda via celular ou mesmo que pagassem o transporte para as pessoas irem ao trabalho sem aglomeração”, sugere.
O analista de mídias sociais Carlos Alberto Ferreira, que contrata semanalmente o serviço de uma diarista, decidiu, em acordo com ela, pela dispensa remunerada, para que a profissional também pudesse ficar em casa cuidando da mãe. “Tive e continuo tendo domésticas na família. Nesse momento, só lembrei delas. Quando dei a notícia à minha diarista ela ficou feliz e na hora nem acreditou, quis vir, mas não concordei”, relata Carlos, que prega nas redes sociais que amigos tenham o mesmo cuidado e carinho.
Porque empatia nunca fará mal a uma sociedade.