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Veja o que já enviamosAntonio Cicero: a sabedoria em deixar a festa antes da xepa
Suicídio assistido do poeta, acometido por Alzheimer, lança luz sobre o direito de viver sob seus próprios termos
Na minha família, as crianças são acostumadas a dormir desde cedo com qualquer barulho, com luz, e o diabo a quatro. Facilita depois, nos festejos: quando bate o sono e é só fechar os olhos e apagar, não importa o quanto o fuzuê esteja em curso. Por outro lado, lá em casa somos muitas gerações de “inimigos do fim”: a gente quer sempre ficar mais um pouquinho, tomar a saideira, comer mais um pedaço de bolo, ouvir a última música… perder absolutamente nada da festa.
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Com o tempo, a vida foi me ensinando que depois de uma certa hora, qualquer festa só tem um destino: ladeira abaixo. Mesmo assim, ainda que não com a implacabilidade dos meus 20 e poucos anos, vira e mexe me pego perseguindo até o último suspiro da festa, na ansiedade de não perder momentos, não deixá-los escapar. Não raramente, acabo só cansada – e de ressaca, se for este tipo de programa. Há que se aprender a deixar a festa enquanto ela ainda é festa, e não um respiro forçado de heróis da resistência.
Quanto mais eu envelheço, mais acho isso sobre a vida também. Na semana passada, fui, como muita gente, surpreendida pela morte do poeta e filósofo Antonio Cicero, famoso por assinar letras imortalizadas em vozes como as de sua irmã Marina Lima e de Adriana Calcanhotto, entre muitas outras. Em sua tocante carta de despedida, ele relata que sua vida havia se tornado insuportável devido ao avanço do Alzheimer,: já não reconhecia as pessoas, não fazia boa poesia ou filosofia, não reconhecia as pessoas, e não sentia prazer nas coisas que mais amava. Diante disso, estava na Suíça, onde o suicídio assistido é legalizado, para se despedir da vida. Atualmente, oito países da Europa autorizam algum tipo de ajuda médica para morrer.
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Veja o que já enviamosExiste uma sabedoria imensa, e até uma elegância, em, como Cicero, deixar a vida antes que ela se torne um fardo, deixar a festa antes da xepa. E assim também fizeram o ator Alain Delon e o diretor Jean-Luc Godard. Não por acaso, homens que tiveram vidas grandiosas, e que foram vendo se apequenar e esvaecer com doenças incapacitantes. Se achamos plausível que nossos animais de estimação tenham seu tempo na Terra abreviado quando estão sob sofrimento, por que ainda nos escandalizamos quando alguém decide viver nos seus termos, quando a alternativa é uma existência intolerável?
Como sociedade, ainda nos agarramos a ideias de vida que não correspondem à imensidão de seu significado: um feto, uma existência desprovida de qualquer consciência, um corpo que vai perdendo seus atributos até que a gente não seja mais capaz de funcionar, e reconhecer aos outros e a si. Viver é bom demais, mas não a qualquer preço. E sobre escolher dar um fim a uma penúria que não tem reversão, Antonio Cicero tomou o caminho que já preconizava em música, a decisão derradeira em que “nada machuca, nem cansa”.
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Muito a matéria! Temos que amadurecer para aceitar a finitude e respeitar o direito de cada um em sair da festa na hora que melhor aprouver. Respeito a antecipação da viagem do grande poeta e filósofo e mais ainda por ele ter aberto a discussão sobre o morrer dignamente.