África conta com vacina para apenas 10% da população

No hospital Baragwanath em Soweto, na África do Sul. pesquisador voluntário se submete a um teste com uma potencial vacina. Foto Siphiwe Sibeko/AFP. Junho de 2020

Em meio à corrida mundial por imunizantes, lideranças do continente buscam apoio entre laboratórios e empresas

Por Vinicius Assis | ODS 3 • Publicada em 26 de janeiro de 2021 - 08:33 • Atualizada em 3 de fevereiro de 2021 - 09:42

No hospital Baragwanath em Soweto, na África do Sul. pesquisador voluntário se submete a um teste com uma potencial vacina. Foto Siphiwe Sibeko/AFP. Junho de 2020

Johanesburgo (África do Sul) – Na atual corrida mundial contra o tempo para frear a pandemia, “nenhum país deve ser deixado para trás” na visão do atual presidente da União Africana, Cyril Ramaphosa, que anunciou a reserva de 270 milhões de doses de vacinas contra o coronavirus para países africanos, que devem ser distribuídas ainda este ano. As vacinas serão fornecidas pela Pfizer, Johnson & Johnson e AstraZeneca (por meio de um licenciado independente, Serum Institute of India), de acordo com a Equipe Africana de Aquisição de Vacinas, criada em agosto pela UA para tratar do assunto.

Pelo menos 50 milhões de doses devem estar disponíveis entre abril e junho. “Foi um passo adicional para garantir vacinas de forma independente, usando nossos próprios recursos limitados”, disse Ramaphosa, que também é o presidente da África do Sul, país responsável por 40% do número de casos de covid-19 no continente. A África do Sul enfrenta, oficialmente, uma segunda onda de infecções, bem mais preocupante que a primeira, segundo autoridades sul-africanas.

Levando em consideração que serão duas doses por pessoa, as 270 milhões de vacinas imunizarão apenas 10% da população africana. Os 54 países da África formam o segundo continente mais populoso do mundo, com quase 1,3 bilhão de habitantes. Juntos, confirmaram até agora 3.177.181 casos de covid-19 desde fevereiro, quando o primeiro caso foi divulgado no Egito. Isso representa 3,5% dos casos no mundo. Deste total de infectados, 76.757 (2,4%) morreram e 2.594.285 (81%) se recuperaram. Números menores que os do Brasil, que tem bem menos habitantes (cerca de 211 milhões) que toda a África.

Na coletiva semanal para tratar da pandemia na África, a diretora da Organização Mundial de Saúde para a região, Dra Matshidiso Moeti, comemorou o anúncio da estratégia, que complementa a ação da Covax, iniciativa da OMS para garantir o acesso equitativo a vacinas da covid-19 a 190 países. “A Covax cobre apenas 20% da população africana, por isso é realmente maravilhoso ver os esforços da União Africana para garantir 270 milhões de doses provisórias até o final de 2021”, disse.

Professora primária mede a temperatura dos alunos no portão do berçário Obele-Odan, em Surulere, Lagos, na Nigéria. Foto Pius Utomi Ekpei/AFP. Janeiro/2021
Professora primária mede a temperatura dos alunos no portão do berçário Obele-Odan, em Surulere, Lagos, na Nigéria. Foto Pius Utomi Ekpei/AFP. Janeiro/2021

As doses não são doações, os países pagarão pelas vacinas. O Banco Africano de Exportação-Importação (Afreximbank) apoiará a estratégia garantindo até US$ 2 bilhões aos fabricantes em nome de países africanos, de acordo com o presidente Cyril Ramaphosa. “Cada caso será analisado. Os países terão até 7 anos no máximo para pagar” disse à reportagem o vice-presidente do Afreximbank Denys Denya.

A União Africana e o Banco Mundial também estão trabalhando juntos para permitir que os membros da UA tenham acesso a US$ 5 bilhões para comprar mais vacinas. “É necessário vacinar 60% da população da África. Nós temos que engajar toda a África, não um país apenas. Caso contrário não atingiremos a meta de imunização”, completou Denys Denya.

Governantes de países ricos, onde vivem 14% da população mundial, compraram mais de 50% das vacinas disponíveis até dezembro, segundo a Aliança Vacina para Todos, da qual fazem parte a Anistia Internacional, Oxfam e Justiça Global. São bilhões de doses que seriam suficientes para imunizar habitantes desses países ricos mais de uma vez.

Cyril Ramaphosa havia dito, na semana passada, que o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau,  telefonou para o líder africano dizendo que o Canadá compartilharia vacinas extras com países necessitados assim que os suprimentos estivessem disponíveis.

O presidente do Instituto Brasil Africa, professor João Bosco Monte, acha que o maior desafio do continente africano é “cada país entender a sua necessidade específica e trabalhar em conjunto”. Um problema tão complexo dificulta, na visão dele, uma resposta imediata quando se trata de solução. Porém, tentando identificar uma saída para o continente africano, o presidente do IBRAF acredita que a resposta possa ser trazida de fora do continente. “Com as empresas, com a diáspora, com os países desenvolvidos que de uma maneira muito objetiva precisam ser solidários”, completou, destacando ainda a importância da participação do setor privado. “As grandes empresas, corporações que fazem negócio e ganham muito dinheiro no continente africano precisam trazer uma resposta. E a resposta há de existir com a solidariedade. Sem solidariedade não há condição de resolver um problema tão sério como a pandemia na África e em outras regiões do mundo”, concluiu.

Entre os dias 28 de dezembro e 10 de janeiro, segundo a OMS, foram registrados, em média, 25.223 novos casos por dia em todo o continente. A maioria na África do Sul, que demorou quase 4 meses para  confirmar os primeiros 100 mil casos, mas que em cerca de uma semana confirmou 100 mil novos infectados

A velocidade do aumento das infecções tem preocupado as autoridades sul-africanas porque estão sobrecarregando algumas unidades hospitalares. O  vírus está se espalhando muito mais rapidamente agora por conta da variante identificada por uma equipe de cerca de 40 cientistas que pesquisam o genoma do coronavírus há meses. O time é liderado pelo bioinformático brasileiro Túlio de Oliveira, que mora na África do Sul há 23 anos. “A gente tem que começar a vacinar as pessoas, e rapidamente”, disse o brasileiro em uma entrevista no início deste mês.

Antes do anúncio dessa semana feito pela União Africana, o governo sul-africano já havia dito que deve receber este mês um milhão de vacinas da India. Outras 500 mil doses devem chegar no mês que vem. A meta do país é imunizar 67% da população de, no total, quase 60 milhões de habitantes. Mas neste primeiro trimestre a prioridade serão os profissionais de saúde.

Em frente ao hospital Steve Biko, que fica na capital Pretória, a reportagem encontrou Johanna Shihlene, uma auxiliar de enfermagem de meia idade que tinha acabado de receber o resultado do teste de covid-19: positivo. “Senti alguns sintomas na semana passada. Febre, dor de garganta”, disse. Ela contou que no dia a dia não trabalhava diretamente com os pacientes infectados pelo coronavirus, que têm sido atendidos em tendas montadas do lado de fora do hospital Steve Biko. Um vídeo viralizou na África do Sul, na semana passada, mostrando alguns desses pacientes sendo atendidos em uma área mal coberta em um dia de muita chuva.

Perguntada pela reportagem se irá se vacinar, a auxiliar de enfermagem foi direta ao dizer que não. “Não confio”, disse. Ela não é a única. Em várias regiões do continente pessoas demonstram desconfiança, medo de serem esterilizadas e até mortas após a vacina. O medo ganha força com boatos e teorias conspiratórias que circulam em redes sociais, como um vídeo onde um homem – se ouvia a voz, mas não se via o rosto dele – afirmava que antenas de internet 5G estariam sendo usadas para espalhar o coronavírus e matar pessoas por aqui. No início do mês três torres de duas companhias telefônicas foram destruídas na província de KwaZulu-Natal. Os desafios de países africanos, que logo no início da pandemia fecharam suas fronteiras, suspenderam voos e proibiram aglomerações, vão além de conseguir comprar as vacinas e armazená-las adequadamente.

Por e-mail, a OMS AFRICA disse que cada país vai determinar se as vacinas serão obrigatórias e/ou gratuitas para a população. Para a OMS, a melhor estratégia é cada país incentivar e facilitar o acesso a vacinas para que as pessoas reconheçam os benefícios para sua saúde e segurança. Para isso, a população precisa receber informações precisas sobre as vacinas, seus benefícios e limitações. Isso é extremamente importante por conta da disseminação de boatos e teorias conspiratórias que circulam sobre as vacinas no continente africano. O e-mail ainda diz que governos da África precisarão de fortes estratégicas de risco envolvendo o público com calma, em vez de correr o risco de entrar em pânico por meio de medidas confusas e incoerentes.

Vinicius Assis

É jornalista desde 2004. Atualmente é correspondente na África para a GloboNews e outros meios brasileiros. Coordenou o projeto de Jornalismo independente "E aí, vereador?", apoiado pela Associação Brasileira de Imprensa. Em 2014 foi um dos palestrantes do Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, em São Paulo, quando falou sobre investigações em câmaras municipais.

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