ODS 1
Os prazeres que o morro dá
Multitarefas, ativista social luta por saúde, saneamento e cultura em favela do Rio de Janeiro
Ela saiu de Pernambuco aos 13 anos de idade, quando ainda se chamava Zoraide Gomes. Escolheu o Rio de Janeiro, cidade dos sonhos, como destino, mas foi obrigada a conviver com o pesadelo de morar nas ruas durante meses. Em 1986, mudou-se para o Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, e ganhou nova identidade. Hoje, não há quem não conheça a ativista social Cris dos Prazeres, 46 anos, mãe de três filhos e avó da pequena Anna Júlia.
Desde que chegou ao morro, começou a desenvolver pequenos trabalhos voltados para promoção de saúde. Depois, se interessou em tratar da prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (IST) e Aids. Foi além e passou a cuidar da reciclagem do lixo jogado diariamente nas encostas do morro. Assim, decidiu fundar o Grupo Proa (Prevenção Realizada com Amor), que tem uma sala na sede da Associação dos Moradores dos Prazeres desde 2000. Lá, um dos vários multiplicadores fica à disposição dos moradores para distribuir preservativos e, principalmente, dar orientação sexual, muitas vezes individualizada.
[g1_quote author_name=”Cris dos Prazeres” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Estamos sempre buscando dar cidadania plena para nossa gente. Educação, saúde, meio ambiente organizado e limpo. Decidi trabalhar duro por isso quando me vi gritando, inconformada, sobre qual seria meu papel nesse mundo. Acho que já encontrei
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosCris também coordena atividades de consciência dos direitos da mulher, promove debates e ações de cidadania na comunidade, encabeça campanha de conscientização no combate às doenças transmitidas pelo mosquito da dengue e ainda é o elo entre pais e professores nas escolas que atendem a alunos moradores do Morro dos Prazeres.
“Estamos sempre buscando dar cidadania plena para nossa gente. Educação, saúde, meio ambiente organizado e limpo. Decidi trabalhar duro por isso quando me vi gritando, inconformada, sobre qual seria meu papel nesse mundo. Acho que já encontrei”, lembra, aliviada.
Esse grito de alerta ecoou no morro em 2010, quando um deslizamento de terra matou 34 pessoas. A tragédia fez os jovens pensarem em como a comunidade poderia fazer algo para evitar novos problemas. Sob a liderança de Cris, procuraram parceiros no governo e entre organizações não governamentais. Assim nasceu o ReciclAção.
Para Cris, que desistiu da faculdade de Serviço Social no 2º período, a cumplicidade e o trabalho duro fizeram o projeto se consolidar. O Morro dos Prazeres, localizado no Centro do Rio, tem uma das mais belas vistas da cidade. Mas era a visão do lixo que se acumulava pelas vielas que tornava o cenário macabro e insalubre. Para transformar essa realidade, o ReciclAção promove educação ambiental, ensinando moradores a realizar coleta seletiva e a construir objetos com lixo reciclado, diminuindo a quantidade de dejetos que eram jogados nas vias públicas.
[g1_quote author_name=”Cris dos Prazeres” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Eles chegam certos de que vão nos ajudar muito. Mas saem com a certeza de que aprenderam demais. No fundo, eu dou a oportunidade para que eles se desenvolvam humanamente, para que entendam como é a realidade desse país, muito diferente desse turismo de samba e bunda vendido por aí
[/g1_quote]Com a ampliação do trabalho de prevenção de IST/Aids, foram estabelecidas novas parcerias com escolas – municipais, estaduais e privadas – e ONGs, em especial o Cedaps (Centro de Promoção de Saúde). O órgão, ao longo dos anos, vem fortalecendo o trabalho do grupo de diversas maneiras, com capacitações, elaboração e realização de projetos e apoio técnico.
“Conseguimos parcerias com a unidade local de saúde, escolas municipais e estaduais, creches públicas e particulares, órgãos públicos e uma grande rede de amigos. Temos também o apoio do Instituto Sadia, que nos garante um investimento anual imprescindível para a continuação do projeto”, comenta Cris, anunciando que o grupo vai se tornar OSC (Organização Social Civil) em abril.
Outro foco que traz benefícios para a comunidade dos Prazeres é o Turismo Solidário. Há cinco anos, ela recebe turistas de países como Estados Unidos, China, Egito, Peru e de várias partes da Europa. Alguns dão aulas de informática, outros trabalham no pomar mantido pelo grupo e, claro, todos aprendem muito sobre como é a vida no morro. Eles ficam hospedados numa boa casa em Santa Teresa (pagam por isso), mas passam o dia trabalhando na comunidade.
“Eles chegam certos de que vão nos ajudar muito. Mas saem com a certeza de que aprenderam demais. No fundo, eu dou a oportunidade para que eles se desenvolvam humanamente, para que entendam como é a realidade desse país, muito diferente desse turismo de samba e bunda vendido por aí”, opina.
Mas, assim como os moradores, os turistas precisam se acostumar com os intensos tiroteios, que tiram a paz da comunidade nem tão pacificada assim. Em janeiro, a base da UPP foi atacada a tiros, e uma adolescente foi morta por um tiro de fuzil. Quase um mês antes, um turista italiano foi morto ao entrar por engano na comunidade. Neste mês de março, pelo mesmo motivo, a turista argentina Natalia Lorena Cappetti foi baleada. Nos momentos de perigo, Cris se recolhe e ouve seu instinto de sobrevivência.
“Essa guerra não é nossa! A gente recua diante do bandido e diante do policial, fica esperando a batalha acabar. Estamos tentando sobreviver para beneficiar o morador, fortalecer a comunidade em meio a tantos problemas”, declara.
A guerra de Cris dos Prazeres é vencer suas pequenas batalhas pelo bem comum e tornar seu lugar no mundo mais prazeroso de se viver. E ainda encontrar espaço para exercer as atividades de produtora cultural e roteirista, que negligenciou nos últimos tempos. Mas, cuidando de tanta gente por tanto tempo, resta saber se vai conseguir.
Martha Esteves é jornalista esportiva há 33 anos. Começou na revista Placar, trabalhou no Jornal do Brasil e foi subeditora do caderno de esportes de O Dia por 20 anos. Também trabalhou como freelancer para a TV Globo e as revistas Claudia, Caras, Playboy, Quatro Rodas e Marie Claire. Ela joga nas 11.